A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira | Warren Dean
Há exatamente 137 anos iniciava-se o primeiro programa de reflorestamento da Mata Atlântica com a recomposição das florestas da Tijuca e Paineiras, no Rio de Janeiro, que à época já apresentavam suas constituições florísticas originais consideravelmente degradadas em decorrência de intensa atividade antrópica. Assim como esses, outros segmentos da vasta formação florestal que originalmente recobria a costa leste do Brasil entre 8° e 28° de latitude sul e se estendia para o interior cerca de 100km em sua porção norte e mais de 500km na sul, mostravam-se também sensivelmente depauperados, especialmente em áreas do Nordeste e Minas Gerais. A continuada devastação do bioma Mata Atlântica acabou por reduzir sua constituição original a menos de 10% da área coberta originalmente, o que, independentemente de perdas relativas à sua fitofisionomia e diversidade zoológica, provocou também severas alterações climáticas e pedológicas, notadamente na região nordestina.
O historiador e brasilianista norte-americano Warren Dean, ao discorrer nos 15 capítulos que compõem sua obra sobre a história das relações entre o homem e um dos mais importantes ecossistemas mundiais — a Mata Atlântica —, avalia, através de um estudo pioneiro, as várias fases da interferência humana sobre esse ecossistema único, apontando as trágicas, e muitas vezes irreversíveis, conseqüências do processo. Tal panorama, mostra o autor, só começa a se modificar recentemente com o movimento universal de conscientização ecológica, que tem induzido a criação de legislação de proteção e programas de reflorestamento, educação ambiental e manejo da floresta.
Na esteira da obra clássica de Jean Dordst Antes que a natureza morra, que já em 1964 alertava sobre o crescente desequilíbrio ecológico no mundo moderno em decorrência das invariavelmente desastrosas intervenções humanas na natureza, Dean, após breve introdução à gênese e estabilização das florestas tropicais da América do Sul, nos conduz à real temática de seu livro, que é a chegada da “espécie invasora” e devastadora maior—o homem—a esses biomas. A evolução da ocupação humana da Mata Atlântica, que em seus primórdios abrigou dos primitivos caçadores-coletores aos povos indígenas tupi, é mostrada em paralelo às alterações antrópicas causadas à floresta. Nessa fase pré-portuguesa, o autor destaca as agressões originadas pelas supostamente inofensivas práticas agrícolas “itinerantes” dos indígenas, que através de sucessivas queimadas acabavam por transformar pequenas áreas de floresta primária em focos de mata secundária: as capoeiras. Ainda que observando que tais danos à floresta original não eram irreversíveis, Dean indaga sobre o que teria ocorrido se os europeus não tivessem interrompido a trajetória natural de ocupação e utilização da floresta pelos autóctones. Em qualquer hipótese, o processo histórico de degradação da Mata Atlântica acabou por tomar Rimo trágico com a chegada dos europeus, cuja desastrosa interferência naquele ecossistema acelerou consideravelmente o processo de sua destruição.
Nos capítulos subseqüentes, Dean proporciona-nos um vivido e bem documentado relato dos sucessivos ciclos econômicos que caracterizaram a exploração e degradação da Mata Atlântica após 1500, que, a princípio, se resumiu a atividades extrativistas de essências nobres—mormente o pau-brasil —, e prosseguiu com a gradual derrubada de áreas florestadas para o cultivo de espécies exóticas, principalmente a cana-de-açúcar, que representava o esteio da economia colonial. O agravamento da destruição da Mata Atlântica dá-se com a descoberta de depósitos de ouro e diamante ao longo de sua porção interna, tendo as atividades de mineração transformado certos pontos da floresta original em “região escalvada e deserta”. É importante notar que, nesse cenário de contínua ocupação humana e sistemática destruição florística, muitas espécies desapareceram por completo de certas áreas, o que ocorreu antes mesmo que um inventário preliminar da biodiversidade da Mata Atlântica pudesse ser produzido. Os botânicos atuais, por exemplo, consideram a existência de três variedades de pau-brasil, tendo uma delas já sido extinta. O autor, ao examinar as causas e conseqüências biológicas da expansão européia sobre a floresta Atlântica, não se preocupa em discutir a postura filosófica da sociedade da época em relação ao meio ambiente, que assumia que os recursos naturais eram inesgotáveis e que, conseqüentemente, a supremacia do homem sobre a natureza lhe dava o direito de dominá-la e transformá-la de acordo com suas conveniências.
A evolução do conhecimento dos ecossistemas brasileiros, com as primeiras tentativas de converter o saber empírico dos indígenas quanto à identidade e uso das espécies da floresta para a linguagem científica universal, é registrada por Dean já no Brasil colônia. O inventariamento científico da fauna e flora, porém, somente se intensifica a partir do início do século XIX, em decorrência dos esforços individuais de inúmeros naturalistas viajantes estrangeiros e brasileiros que coletaram espécimes durante expedições pelo país. O conhecimento preliminar da riqueza faunística e florística da Mata Atlântica, contudo, não produziu qualquer efeito inibidor em relação ao processo de sua contínua destruição, nem mesmo quanto à proteção de seus recursos explotáveis.
A transição do governo colonial para o imperial é considerada pelo autor como tendo acelerado ainda mais o processo de devastação da Mata Atlântica, já que os brasileiros, exercendo então plena soberania sobre a floresta, passaram a “atacá-la com redobrado vigor e entusiasmo” visando benefícios imediatos. Cabe citar a dominância da cultura do café à época, que, por utilizar áreas de plantio impróprias para a cultura canavieira, como as regiões montanhosas, acabou por contribuir para a destruição de porções até então intactas da floresta.
O cenário de agressão à floresta acelera-se consideravelmente a partir do início do século XX em decorrência, entre outros fatores, da explosão demográfica, do crescente extrativismo predatório e das práticas da mono-cultura e pecuária. Somados a esses, outros fatores tão ou mais agressivos, como a poluição atmosférica, a degradação do solo e a contaminação dos sistemas hídricos — provocados principalmente por atividades industriais —, contribuíram para a drástica redução de áreas saudáveis da floresta original.
Nos últimos capítulos do livro, o autor discute as iniciativas de recuperação e preservação das áreas remanescentes de Mata Atlântica, destacando a saga dos ambientalistas — cientistas e leigos — para a instituição de códigos florestais e a criação de parques e reservas, medidas que têm se revelado razoavelmente eficientes. Nesse contexto, o autor nos revela as primeiras tentativas, realizadas ainda no século XIX, de conservar e reflorestar a mata — no caso, a Floresta da Tijuca —, para proteger os mananciais da cidade do Rio de Janeiro. Registra também o alerta, à época, dos cientistas brasileiros Francisco Freire Alemão, Guilherme Schüch de Capanema e Ladislau Netto em relação ao desaparecimento de populações localizadas de espécies animais e a preocupação dos mesmos em conservar as áreas restantes de cobertura original. A despeito, porém, da ação dos conservacionistas e da legislação que a protege, a Mata Atlântica segue sendo sistematicamente agredida. Governos recentes têm associado a seus discursos desenvolvimentistas a necessidade de preservação do meio ambiente, mas têm se mostrado ineficientes em coibir agressões às florestas brasileiras.
Por se mostrar atualmente reduzida a fragmentos e ainda abrigar uma grande diversidade de espécies endêmicas de plantas e animais, a Mata Atlântica foi recentemente incluída pela conceituada organização de proteção ao meio ambiente Conservation International entre os 17 pontos mais críticos do planeta em termos de biodiversidade ameaçada. A conscientização universal de que o ser humano é um mero componente de um planeta vivo e que sua sobrevivência depende de complexos ciclos interdependentes de uma cadeia trófica está apenas começando a se difundir. Nesse sentido, a obra de Warren Dean presta-se como um alerta-denúncia para a necessidade de se compreender o funcionamento de um ecossistema antes de alterá-lo, especialmente em se tratando de sistema da complexidade de uma floresta tropical. Por sua ampla abordagem e expressivo volume de dados apresentados — tanto de fontes primárias como bibliográficas — constitui ainda excelente fonte de consulta para todos aqueles que se interessam por temas relacionados à conservação e exploração de recursos naturais.
Resenhista
Magali Romero Sá – Pesquisadora do Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz.
Referências desta Resenha
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Resenha de: SÁ, Magali Romero. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.3, n.3, nov. 1996. Acessar publicação original