A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos – MANDEVILLE (EL)
MANDEVILLE, Bernard de. A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: MELO, Ricardo Pereira de. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 4, p. 113 – 117, jun./nov., 2018.
APRESENTAÇÃO E CONTEXTO HISTÓRICO
Finalmente, os leitores brasileiros e de língua portuguesa terão acesso à versão integral do livro do pensador Bernard de Mandeville conhecida como A Fábula das abelhas ou vícios privados, benefícios públicos. A brilhante e competente tradução foi realizada pelo professor Bruno Costa Simões e publicada pela Editora da Unesp. Sem dúvida que o público foi presenteado com uma belíssima edição pela longa espera da tradução completa em português1.
Bernard Mandeville nasceu em Roterdã em novembro de 1670. Apesar de nascer na Holanda, estudou e viveu por quase toda sua vida na Inglaterra, trabalhando em Londres como médico. O final do século XVII foi marcado por um período de transição importante na economia e na sociedade mundial, onde ele presenciou a transição da hegemonia holandesa para a inglesa2. De certa forma, esse momento histórico, é vivenciado pela mudança de habitat de Mandeville e transcrito nos textos do autor.
Mandeville utiliza-se da sátira e da analogia para mostrar as profundas transformações que se passam na sociedade inglesa na virada do século XVII, principalmente evidenciando o caráter de desenvolvimento e prosperidade da economia. A obra de Mandeville, com certeza, não é um tratado sobre economia, mas podemos dizer que Mandeville, trouxe ao centro do debate, questões que seriam mais tarde abordadas por outros teóricos da economia, principalmente ligados à defesa do laissez faire laissez passer. Em geral, segundo Louis Dumont, Mandeville seria favorável à um “comércio mais livre”, mas não ao “livre comércio puro e simples”3 e, em suas ideias, ainda cultivava muitos pressupostos da economia mercantilista.
Dumont advertiu em sua análise sobre o trabalho de Mandeville que os poemas e escritos, em sua totalidade, reflete a sociedade concreta e, com ela, as mudanças de ontem (sociedade pequena, isolada e estagnada) para o hoje (a evolução da economia capitalista). Para o autor da Fábula, assim como para Hume e Smith, é um momento de transição “que se trata de um eixo maior na transição da ideologia tradicional para a ideologia moderna”4.
O destaque dado por Mandeville sobre o papel do egoísmo na ação humana não passou desapercebido por Adam Smith ao tratar dos problemas econômicos. A Riqueza das nações de Adam Smith, conforme Dumont afirma, é uma resposta às indagações levantadas por Mandeville e que Smith teria tomado contato com a obra nos cursos do professor Hutcheson em Glasgow ainda na graduação5.
Para alguns autores, tais como Rogério Arthmar e Friedrich von Hayek, Mandeville foi o primeiro a colocar o problema das crises de superprodução e de insuficiência de demanda no centro do debate político no capitalismo inglês, cuja a visão econômica estava voltada, exclusivamente, para o consumo, e não na produção. Para Arthmar:
Porém, recuando no tempo, verifica-se que a polêmica sobre a possibilidade de uma escassez geral de demanda possuía antecedentes longínquos nos escritos econômicos do Reino Unido. Em 1705, Bernard Mandeville publicava seu poema The grumbling hive: or knaves turn’d honest, onde enaltecia os vícios e a luxúria como fontes da prosperidade de uma colméia, alegoria pitoresca da sociedade em que vivia. O material, apesar de sua criatividade, passaria totalmente despercebido nos meios literários6.
Na ética da Fábula existe um divórcio radical entre moralidade e religião. O tema central que versa o poema das abelhas na colméia é que a prosperidade econômica e a obtenção de riqueza não possuem relação direta com a moralidade cristã. Existe em sua obra uma preocupação de fundo, presente também nos grandes pensadores da história ocidental: um constante receio do retrocesso, ou melhor, à regressão aos anos de escuridão da civilização, baseado numa economia meramente agrícola e pouco desenvolvida. Nesse sentido, toda A Fábula pode ser lida como uma defesa da circulação de riquezas, da moeda e da atividade do comércio. Segundo Ari Ricardo:
Não se tratava de alguns ricos comerciantes, que traficavam bens de luxo para uns poucos habitantes, mas sim de uma gigantesca máquina de fazer e distribuir mercadorias acessíveis a muitas pessoas. Para Mandeville, essas mudanças representavam uma melhoria de vida, apesar das reclamações, que surgiam em grande número, de que o aumento do luxo enfraqueceria a fibra moral da nação. Foi justamente como resposta a elas que Mandeville escreveu. A favor das mudanças, com certeza. Mostrando que as tais fibras morais, pretensamente responsáveis pela grandeza e continuidade da nação, eram mal compreendidas, que as fontes da prosperidade eram outras, que o que se via como ameaça, o luxo, era positivo para a sociedade, muito embora fosse de fato um vício, como queriam alguns7.
Mandeville tinha como característica provocar as paixões mais inesperadas entre seus leitores. Dessa forma, expressava-se de maneira pouco amistosa ou agradável. Aos acostumados pela polidez, ou pela urbanidade ou, mesmo, pela sensatez acharão no pensamento de Mandeville uma profunda marca de provocação que dificilmente deixariam qualquer um apaziguado ou entorpecido.
A escrita irreverente aguçava o intelecto das pessoas e, dificilmente, alguém não se manifesta com amor ou repulsa aos seus textos. Ao espírito adormecido e ignorante oferecia doses sob medida aos preconceituosos e arrogantes. Para o início do século XVIII, defender a prostituição e atacar a educação popular, pode-se dizer, que Mandeville irritou muitos na sociedade em seu tempo.
ESTRUTURA DE A FÁBULA
A tradução aqui apresentada deve-se ao trabalho extraordinário de compilação das obras completas organizadas F.B. Kaye que trabalhou na preservação do legado mandevilleano. Como bem avalia Jacob Viner que “a partir da publicação, em 1924, da magnífica edição da Fable of th bees de F.B. Kaye, ninguém pode tratar seriamente do pensamento de Mandeville, sem apoiar-se firmemente nele”8. No mesmo sentido, Dumont afirma:
Devemos muito a F.B. Kaye pela sua edição crítica monumental da Fábula, e especialmente por sua laboriosa coleção das fontes certas ou possíveis de Mandeville, pelas passagens paralelas dos escritos anteriores de uma parte, e, de outra, por seu catálogo de referências a Mandeville na literatura subsequente: ele contribuiu com profusão para que pudéssemos captar com um golpe de vista o lugar de Mandeville na história das idéias9.
Aos 35 anos, no ano de 1705, Bernard de Mandeville iniciou o seu itinerário intelectual ao publicar um poema na forma de sátira contendo seis vinténs em versos intitulado Acolmeia ranzinza ou De canalhas a honestos (The Grumbling Hive or Knaves turn’d honest), cuja a publicação passou em silêncio diante à crítica e “o impacto inicial do poema foi quase nulo”10. Em 1714, ele republica o poema, agora contendo um novo capítulo de comentário chamado Uma investigação sobre a origem da virtude moral (An Inquiry into the Origin of Moral Virtues)e também acrescenta outro texto de Observações com extensas glosas explicativas sobre o significado de seus versos. Agora, o poema em versos torna-se um livro sob o título de A Fábula das abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos (The fable of the bees, or private vices, publick benefits) que, mais uma vez, não lograria a atenção do público.Para alguns comentadores, como Ricardo Ari Brito, Mandeville acrescentava esses textos ao poema inicial, como se fosse necessário, para o bomesclarecimento“que o leitor tivesseuma visão mais ampla do terreno que está pisando, uma espécie de introdução às explicações”11.
A segunda edição do livro publicada em 1723, Mandevile adiciona mais um texto intitulado Ensaio sobre a caridade e as escolas de caridade (An Essay on Charity and Charity-Schools) e diferente da edição anterior, tanto o poema como os comentários causaram um grande tormento na sociedade inglesa da época. O Ensaio despertou muita indignação entre os críticos que, ironicamente, provocaria com isso outras cinco edições da obra em menos de uma década, um recorde para a época12. Com o Ensaio, Mandeville tornar-se muito famoso e, em pouco tempo, seus escritos começaram a abalar a tradição religiosa. No mesmo ano de 1723, ele recebe a denúncia das entidades religiosa, acusando-o como um anticristão e contra os costumes sociais e, com isso, sendo obrigado a comparecer diante do tribunal de justiça.
Ao final do livro, a tradução brasileira ainda vem acrescentada do texto Defesa do livro a partir das difamações contidas numa acusação do grande júri de Middlesex e numa carta insultante endereçada a lord C. que foi apresentada ao Tribunal do Rei (King’s Bench) no condado de Middlesex como defesa à acusação imposta como um anticristão. Infelizmente, apesar da importante tradução feita por Bruno Costa Simões, ainda faltam os diálogos de resposta de Mandeville às críticas do filósofo George Berkeley intituladas Letter to Dion. Em todo caso, já temos uma tradução completa e acadêmica para futuros estudos da obra do pensador holandês.
Notas
1 Já circulava no Brasil a tradução de Laura Teixeira Motta, mas composta apenas do poema inaugural A Colmeia murmurante ou os velhacos que se tornaram honesto. A tradução faz parte do Apêndice do livro A Pré-história da economia: de Maquiavel a Adam Smith da professora e pesquisadora da USP Ana Maria Bianchi de 1988. Houve uma tradução espanhola muito utilizada no Brasil publicada em 1982 pela editora Fondo de Cultura Economica do México contendo a tradução na íntegra do livro de Mandeville.
2 Cf. ARRIGHI, Giovanni. O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Unesp, 1996, pp. 1-58 e, especialmente, pp. 130-148.
3 DUMONT, Louis. Homo Aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Trad. José Leonardo Nascimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 103.
4 DUMONT, Homo Aequalis, p. 112.
5 DUMONT, Homo Aequalis, p. 97.
6 ARTHMAN, Rogério. Mandeville e a lei dos mercados. Economia e Sociedade. Campinas, SP: UNICAMP, v. 12, n.1, 2003, p. 88.
7 BRITO, Ari Ricardo Tank. As Abelhas egoístas: vício e virtude na obra de Bernard Mandeville. São Paulo: USP, 2006, p. 27. (Tese de Doutorado em Filosofia).
8 VINER, Jacob. Ensaios selecionados de Jacob Viner. Trad. José Maria Gouvêa Vieira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972, p. 318.
9 DUMONT, Homo Aequalis, p. 107.
10 FONSECA, Eduardo Giannetti da. Vícios privados, benefícios públicos? a ética na Riqueza das Nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 134.
11 BRITO, As Abelhas egoístas, p. 21.
12 “No século XVIII, as edições seguintes de The fable of the bees apareceriam em 1724, 1725, 1728 e 1729. Nesse último ano, Mandeville lançava também a segunda parte do livro, contendo um prefácio e seis diálogos, a qual receberia duas edições isoladas em 1730 e 1733. Os dois volumes seriam publicados em conjunto nos anos de 1733, 1755, 1772 e 1795, além das traduções para o francês em 1740 e para o alemão em 1761” (KAYE citado por ARTHMAR, Mandeville e a lei dos mercados, p. 88).
Ricardo Pereira de Melo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
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