As relações internacionais no mundo contemporâneo têm gerado profundos desafios de compreensão tanto para os tomadores de decisão como para a comunidade acadêmica. Esses, por sua vez, têm adquirido uma fecunda preocupação com teorizações adequadas para a compreensão desse mundo complexo que se delineia no limiar do século XXI.
A tradução do clássico livro de Adam Watson, nesse sentido, tem um valor especialmente significante para a comunidade brasileira de relações internacionais. Isso porque ao possibilitar uma reflexão alternativa sobre o conceito-chave de sistema internacional, o livro também propõe profundas questões metodológicas.
Essas questões são derivadas do fato de Watson ter sido um dos membros do Comitê Britânico para a Teoria da Política Internacional. Foram nos trabalhos do comitê que foram desenvolvidas diversas idéias e discussões que acabaram caracterizando essa comunidade epistêmica pela denominação “Escola Inglesa das Relações Internacionais”. Pautado pela diversidade de seus membros, o comitê, assim como Watson, critica um dos princípios basilares das teorias realistas de relações internacionais que acreditam que o sistema internacional estaria em sua condição pré-social. Conseqüentemente é criticada nessa corrente realista uma visão empobrecida dos sistemas internacionais já que o excessivo “presentismo” e “eurocentrismo” acarreta uma visão muito pouco sofisticada da estrutura e processos característicos do sistema além da adoção de pressupostos de uma permanência estrutural que um exame histórico não justifica de nenhuma forma.
Nessa crítica, portanto, o estudo da história dos sistemas internacionais terá um papel central ao possibilitar a reflexão dos méritos e relevância de outros sistemas internacionais na compreensão da prática contemporânea das relações internacionais. Nessa reflexão uma das deduções mais importantes é, sem sombra de dúvida, a percepção de que toda vez que alguns Estados ou entidades são mantidos unidos por uma rede de relações, desenvolve-se algum conjunto de regras e convenções com vistas a regular suas relações.
Esse arcabouço de regras e convenções possibilita a existência de um conceito caro à escola inglesa: a sociedade internacional. Aqui abre-se um amplo leque de questões centrais como a possibilidade de ordem social entre Estados e sociedades; o papel das regras e instituições, além da compreensão da natureza do poder e da autoridade.
O trabalho de Watson dentro do comitê, contudo, é muito peculiar, o que conseqüentemente confere um caráter diferenciado ao seu trabalho. Isso porque, enquanto membros como Hedley Bull e Herbert Butterfield queriam focalizar as discussões do comitê à sociedade contemporânea européia, Adam Watson, conjuntamente com Martin Wight, queria discutir não só outros sistemas independentes de Estados como outros tipos de sistemas, como os suseranos e os hegemônicos.
Essa inovação em relação aos seus pares traduz o desejo, que a união da teoria com a história não só expande o universo empírico o qual a teoria das relações internacionais deve endereçar, como coloca o seu pluralismo metodológico em uma perspectiva mais sistêmica.
A evolução da sociedade internacional, nesse sentido, vai se inscrever no fim cronológico da estrutura formal do comitê (após a morte de Hedley Bull na década de 1980). Mas o fim formal do movimento não deve se confundir com o declínio dessa comunidade epistêmica, já que esforços de pensadores como Barry Buzan, Richard Little e Andrew Hurrell têm realizado um bem sucedido relançamento da reflexão dessa comunidade desde o final da década de 1990.
Tendo considerado esse amplo arcabouço conceitual e epistêmico no qual a obra de Watson está imersa, observamos que o seu estudo parte de uma inédita abordagem comparativa histórica. Dessa forma, o livro se propõe a estudar desde os sistemas dos Estados antigos – como a Suméria e o sistema Islâmico – até a atual “sociedade internacional global”.
Nessa análise histórica Watson reconhece que as distinções entre sistemas de Estados independentes, suseranos ou impérios são muito amplas para descrever a realidade. Conseqüentemente, a melhor forma de enquadrar esses sistemas é utilizar sempre o espectro de noções entre os tipos ideais de independências anárquicas e o império absoluto como categorias explicativas.
Fundado nessa tipologia e no exame de mais de dez sociedades internacionais, Watson vai realçar algumas características interligadas que desempenham papéis importantes na corrente ordenação das relações internacionais. A primeira é a “propensão à hegemonia” que traz interessantes considerações sobre como ela pode ser legitimamente mantida pela força. Segundo, ele explana como a “legitimidade” é um dos fatores que, historicamente, tem determinado a estabilidade de um sistema em um dado momento. Terceiro, vem o “conceito europeu de soberania” que o distingue tanto de outras civilizações como dos sistemas suseranos que prevaleceram em outros lugares. Quarto, a “matriz cultural” na qual uma determinada sociedade está imersa tem um papel fundamental na forma pela qual arranjos regulatórios surgem entre entidades políticas. Por fim, ele analisa a categoria “legado do passado” já que elementos de continuidade que perpassam as sociedades evidenciam que não há uma recriação total dos princípios que regem essas sociedades.
Aqui algumas qualificações podem ser feitas, já que mesmo as considerações que Watson faz ao excessivo eurocentrismo que caracteriza vários teóricos em suas análises, também podem ser direcionados ao seu trabalho. Isso se deve à contrastável atenção que o autor dá à chamada “sociedade internacional européia”, que ocupa grande espaço na sua reflexão. Fora isso, a deficiência na consideração da evolução interna dessas sociedades, além de uma limitação constrita de fontes na sua reflexão, acaba levando o seu esforço de síntese à excessivas generalizações sobre as características e a evolução das mesmas.
Contudo, esses pormenores não conseguem diminuir a especial relevância que esse estudo tem na diminuição da nebulosidade que é caracterizada a nossa hodierna “sociedade internacional global”, além de se inscrever em renovado esforço de estudo da disciplina de Relações Internacionais em uma perspectiva histórica e comparada.
Resenhista
Rogério de Souza Farias
Referências desta Resenha
WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: Uma análise histórica comparativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. Resenha de: FARIAS, Rogério de Souza. Revista Brasileira de Política Internacional, v.47, n.1, 2004. Acessar publicação original [DR]
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