A Escrita da História na antiguidade / Revista de Teoria da História / 2015

Quando os curricula, ementas e bibliografias sugeridos sobre a temática da história da historiografia são analisados alguns poucos nomes de autores antigos aparecem. Geralmente, há breves referências a Heródoto, Tucídides e Políbio e daí parte-se para Agostinho, quando muito Eusébio. O próximo nome a aparecer na lista daqueles que deram alguma contribuição para a escrita da história já é o de Giambattista Vico (1668-1744). Da mesma forma, uma rápida consulta aos planos de ensino das disciplinas que abordam a temática nas universidades brasileiras é suficiente para que se tenha a sensação de que pouca coisa aconteceu antes de Leopold von Ranke (1790-1880). Séculos e séculos de historiografia são, por vezes, reduzidos à idéias como “historia magistra vitae”, de que “os gregos viam o tempo de maneira cíclica”, ou que “na Idade Média se escrevia uma história eclesiástica”. Para Jonh Marincola, isto ocorre porque muitos avaliam a historiografia Antiga com os parâmetros e abordagens dos historiadores do século XIX i. Um outro motivo pode ser acrescentado, mais relacionado à especificidade do contexto brasileiro. Trata-se do fato de que a quase totalidade dos professores que lecionam as disciplinas teóricas dos cursos de história de nossas graduações, nas quais a história da historiografia costuma ser abordada, é composta por especialistas em temáticas contemporâneas ou História do Brasil.

É certo que, por um lado, não podemos nos esquecer das várias tentativas de sistematização do pensamento histórico que permitiram a elaboração de uma Ciência da História, tal qual compreendida pela comunidade dos historiadores profissionais, sobretudo a partir dos debates da historiografia de língua alemã, impulsionados pelo próprio Ranke, e das definições em torno da questão da Historik, tanto de Georg Gottfied Gervinus (1805-1871) quanto de Johan Gustav Droysen (1808-1884). Todavia, por outro, não é possível delimitar o que ocorreu antes deste período a um conjunto simplificado de formas narrativas ministrado muito rapidamente em algumas aulas, por vezes, funcionando apenas como um adendo ou um appendix para compreensão de etapas posteriores da história da historiografia.

Arnaldo Momigliano, ao falar das raízes clássicas da historiografia moderna em suas Sather Classical Lectures, ministradas na Universidade da Califórnia, Berkeley, entre 1961 e 1962, já chamava atenção para esta questão. Nada mais distante do sentido que os gregos atribuiam à história do que acreditar que estes tinham uma mente “a-histórica”, dizia ele, que caracterizava este como um pensamento que recuava a Collingwood, Niebuhr e Hegel. O problema, segundo Momigliano, é a ênfase em Pitágoras, Platão e Zenão, ao invés de Heródoto, Tucídides e Políbio. Somente a escolha de Platão como representante da mente grega poderia apoiar tal decisão. Todavia, Platão não é mais representante do pensamento grego do que Heródoto. No que diz respeito a acreditar em ciclos regulares de acontecimentos humanos, Momigliano afirma que trata-se de uma invenção moderna, não condiz com a historiografia grega, muito menos romana. Há historiadores tanto de língua grega quanto latina que não compartilham desta idéia, são os casos de Heródoto, Tito Lívio e Tácito, para citar apenas alguns exemplos. Além disso, para compreender os princípios mais básicos da historiografia grega será preciso analisar não somente esta, mas a relação da mesma com as concepções de escrita da história judaica e, sobretudo, persa, principalmente no que diz respeito ao uso de registros oriundos de arquivos, uma característica desta última, que possibilitará, por exemplo, que outros historiadores antigos adotem a mesma metodologia ii.

O já mencionado Marincola nos lembra que das Histórias de Heródoto (segunda metade do V a.C.) até as Res Gestae de Ammianus Marcellinus (final do século IV d.C) temos um intervalo de mais ou menos 800 anos no qual historiadores gregos e romanos narraram o passado de acordo com as concepções da época em que viveram iii. Ou seja, as historiografias grega e romana não se restringem a três ou quatro autores. Além disso, são reflexões de períodos, idiomas e contextos diferentes, que merecem análises singularizadas, respeitando-se cada locus de produção.

Considerando também os Fragmenta, ou seja, obras que sobreviveram porque foram mencionadas, apropriadas, reutilizadas, ressignificadas por historiadores posteriores, o que não faz das mesmas menos importantes, este número aumenta significativamente. O catálogo monumental elaborado por Karl Wilhelm Ludwig Müller (1813-1894), por exemplo, tem cinco volumes e sua versão em PDF ocupa 3.808 páginas. Intitulado Fragmenta Historicorum Graecorum, é a maior coletânea dos fragmenta historiográficos gregos já realizada até hoje. São mais de 600 textos reunidos e que agora são digitalizados pelo Digital Fragmenta Historicorum Graecorum (DFHG) Project, um sub-projecto do Open Philology Project: the Leipzig Open Fragmentary Texts Series (LOFTS), coordenado por Monica Berti, da Universidade de Leipzig, Alemanha iv.

Outro que trabalhou na mesma seara foi Felix Jacoby (1876-1959), um filólogo e classicista alemão. Além de lançar muitas das questões importantes para a historiografia herodoteana, Jacoby sistematizou entre 1923 e 1959 Die Fragment der griechischen Historiker (FgrHist / FGrH), contendo a edição crítica de 856 historiadores gregos cuja obra nos chegou a partir de fragmenta v. Marincola explica que o autor dividiu os escritos dos historiadores gregos em cinco subgêneros: Mitografia, que reunia e ordenava as tradições gregas e as narrativas mitológicas; Etnografia, um estudo dos países, povos e seus costumes; Cronografia, que catalogava os eventos de anos individuais utilizando um sistema de datação local, mas mapeando eventos de toda a Grécia; Zeitgeschichte, agrupando a história grega contemporânea ou ocorrida até o tempo dos autores que a estavam registrando; Orografia ou História Local, que geralmente concentrava-se em narrar a história de uma Cidade-Estado específica vi .

Também temos fragmenta de historiadores romanos. Hermann Wilhelm Gottlob Peter (1837-1914) os reuniu e catalogou sob o título de Historicorum Romanorum Reliquiae (HRR) vii. Assim como FgrHist, a obra de Peter também reúne vários textos remanescentes encontrados em documentos posteriores e aborda os escritos desde os primeiros historiadores romanos até Lucius Scribonius Libo e autobiografias até a de Lucius Cornelius Sulla. Baseada na HRR, a L’Annalistique Romaine (AR) também segue os mesmos propósitos. Trata-se de uma obra de três volumes, editada por Martine Chassignet, contendo os fragmenta dos primeiros historiadores romanos viii. Outra obra importante é Die frühen römischen Historiker (FRM), de Hans Beck e Uwe Walter, dividida em dois volumes, o primeiro abordando textos historiográficos romanos de Fabius Pictor até Gellius e o segundo contendo as narrativas que vão de Coelius Antipater a Titus Pomponius Atticus ix. Recentemente, T. J. Cornell, junto com uma série de estudiosos da historiografia romana, editou The Fragments of the Roman Historians, continuando este esforço de sistematização dos textos dos primeiros historiadores romanos x.

Assim, considerando apenas a escrita da história em língua grega e latina, apesar de todos os problemas lacunares pelo fato de muitas obras terem se perdido, mencionar somente Heródoto, Tucídides, Políbio, Tito Lívio, Tácito, Agostinho e Eusébio representa apenas uma parcela muito superficial da questão. Nomes como Xanthos, historiador e logógrafo da Lídia; Ctésias de Cnido; Teopompo, historiador e retórico de Quios, e tantos outros também deveriam aparecer. Considerando os primeiros logógrafos, os escritores da Grécia Clássica, aqueles do período romano e bizantino, são centenas de autores. Entre os autores romanos que também escreveram obras historiográficas, como é possível perceber, as referências também são inúmeras xi. Ainda, é importante salientar que a historiografia antiga não se restringe aos escritores gregos e romanos, com toda sua pluralidade. As diversas culturas cuneiformes, que aparecem em nossos livros sob o título genérico de “Mesopotâmia”, sistematizaram saberes sobre como narrar acontecimentos passados. De igual modo, no Egito Faraônico também encontramos relatos desta natureza.

John Van Seters comentou vários aspectos sobre a escrita da história entre as culturas cuneiformes e no Egito Antigo a partir do diálogo com a historiografia específica destas áreas. Segundo ele, no que diz respeito à Historiografia Assíria, por exemplo, em 1916, A.T.E. Olmstead já identificava nas inscrições reais princípios que poderiam interessar à elaboração de uma história moderna xii. J.J. Filkenstein apontou que a origem da historiografia mesopotâmica encontra-se relacionada com os textos ominosos e as informações históricas neles contidas xiii . H. Güterbock, por sua vez, organizou e categorizou os diversos gêneros históricos grafados em cuneiforme xiv. Outros dois autores mencionados por Seters são A.K. Grayson, que produziu uma obra fundamental para a compreensão da historiografia desta região e E. A. Speiser, que afirmou que havia uma noção consensual de história na Mesopotâmia derivada dos Sumérios e que depois foi continuada por Assírios e Babilônicos xv. A partir do diálogo com estes autores, Seters sistematizou o principal corpus documental que contém relatos historiográficos em cuneiforme, mencionados no parágrafo a seguir xvi.

As inscrições reais, de importância fundamental para a questão da escrita da história, que englobam os “letreiros’, inscrições comemorativas contando as façanhas do rei. Anais, narrando campanhas reais em ordem cronológica. Inscrições em oposição, cuja maioria retrata campanhas militares. E as chamadas “carta ao deus”, geralmente contando sobre os atos de determinado rei a um deus específico, como no caso da carta de Sargão II para Assur; Seters explica que na tradição escritural da antiga Mesopotâmia foram produzidas inúmeras listas: silabários, vocabulários bilíngues, catálagos de plantas e animais, observações do céu, listas de deuses etc. Este tipo de narrativa também é muito importante historiograficamente, as listas reais. Dentre elas, por exemplo, temos as “listas de data”, utilizadas para datação dos documentos, de transações comerciais, ou de eventos jurídicos. São textos desta natureza a Lista Real Suméria (LRS) e a Lista Real Assíria (LRA); Textos Ominosos, que contêm comentários de valor histórico utilizados pelos advinhos na aplicação de sua arte divinatória; As Crônicas, narrativas cronológicas de acontecimentos políticos e religiosos. Alguns exemplos de documentos com estas característica são: a série de Crônicas Babilônicas, a História Sincrônica, a Crônica dos Reis Antigos, Crônica Weidner, Crônica P, Crônica Akitu, Crônica Religiosa, Crônica de Esarhádon, Crônica Eclética e a Crônica dos Preços do Mercado; outra categoria de textos importantes é a chamada de “Epopéias Históricas”, como a Enuma Elish, que aborda a criação do mundo e conflito entre os deuses, a Epopeia de Gilgamesh, a Epopéia de Tukulti-Ninurta I e outras Epopéias fragmentárias, como a de Nabucodonosor I, a de Adad-shumauser, Nabopolassar e Nabonido; E, por fim, as Profecias, que também contém inúmeras informações importantes para compreendermos a escrita da história entre as culturas cuneiformes. São exemplos destes textos o Discurso Profético de Shulgi, o Texto A, e a Profecia Dinástica xvii.

No que diz respeito ao Egito Faraônio, Seters afirma que os estudiosos que abordaram a questão tenderam a se dividir entre a tese de que os egípcios não escreveram história, não produzindo uma forma narrativa que pudesse ser comparada com seus vizinhos da Mesopotâmia (H. Gese xviii, L. Bull xix e H. Cancik xx) e a de que, embora com características peculiares, eles se “empenhavam em registrar os acontecimentos”, “tinham consciência de sua longa história e tentavam chegar a um consenso sobre a mesma” (E. Otto e o próprio Seters) xxi .

Roberto B. Gozzolli também adverte que se aplicarmos nossa forma de compreender o conceito de história aos textos egípcios não teremos mesmo uma historiografia. Um dos principais problemas ocorre justamente por conta de uma das principais características que permeia este corpus documental, a visão predominante é a de paz e estabilidade de sul a norte do Nilo por tempos incontáveis. Assim, segundo o autor, “é na escala de tempo representada pela eternidade que os egípcios situavam seus eventos” xxii e que “a conjunção da Maat e da eternidade implica que a visão que os egípcios tinham de seu passado não podia ser qualquer outra coisa além do que repetição” xxiii. No entanto, os egípcios tinham seus textos históricos.

Recorrendo a obra de E. Otto, Seters menciona que “a historiografia egípcia representa uma tensão entre o mundo dos fatos e um ideal histórico. Embora os egípcios fossem bastante conservadores, o ideal não se manteve o mesmo ao longo dos séculos”xxiv. O autor afirma que nenhuma outra sociedade do que ele chama de “Oriente Próximo” foi tão meticolosa quanto a egípcia, no que diz respeito à conservação dos registros, algo que, segundo ele, impressionou tanto Hecateu quanto Heródoto. Seters entende que, uma vez que este dualismo entre a busca pelo imutável e o devir histórico seja considerado, é possível falar de uma historiografia egípcia.

Uma vez satisfeita tal condição, assim como acontece com as culturas cuneiformes, o Egito Faraônico também terá seu corpus documental dedicado a esta temática: a Pedra de Palermo, um fragmento de pedra que fazia parte de uma obra historiográfica do final da V Dinastia (cerca de 2.350 a.C.) contando sete séculos de história; o Cânon de Turim, registrado em papiro na época de Ramsés II, por volta do século XIII a.C., e outras Listas Reais; as Inscrições Reais, que registram várias cenas relacionadas ao faraó e suas campanhas; as Inscrições Dedicatórias, que apresentavam os títulos do rei, construções, presentes, oferendas etc; Inscrições Comemorativas, registrando os grandes feitos do rei, como as Estelas de Kamose, os Anais de Tutmés III, os Anais de Amenhotepe II, os Escaravelhos Comemorativos, os Relevos Comemorativos, as Inscrições Comemorativas da XIX e da XX Dinastias e a Estela de Pianqui; a Novela Histórica, que se refere ao rei e a um alto oficial, como as Königsnovellen, a Estória de Sinube e a Viagem de Wenamun; o Uso do Passado como propaganda que, segundo Seters, era uma ferramenta para tentar legitimar um governante ou apagá-lo da memória; e, por fim, as Biografias.

Ou seja, o debate sobre a escrita da história na Antiguidade tem inúmeras ramificações. O leitor perceberá que nada foi dito aqui sobre a China e a Índia Antiga e o próprio Israel. Outra questão importante é que, geralmente, quando uma obra nega a existência de uma historiografia antiga o mesmo é dito com relação ao período Medieval, com ou sem a presência de uma historiografia árabe, tão importante, ou mesmo de Byzantium. Assim, inúmeros textos escritos por bispos, monges, clérigos, catedráticos e oficiais do governo, ou seja, os produtores da historiografia do período, que escreviam história como parte ora da gramática ora da retórica, são desconsiderados.

Desta forma, muitos anais, diários, calendários, crônicas, feitos, biografias, hagiografias e catálogos de vida de santos, a seanchas irlandesa, relatos presenciais, poesia oral e escrita, crônicas urbanas, comentários de obras de arte ou de partes da bíblia, elaboração de textos que serviam de auxílio para homilias, textos científicos ou computacionais, documentos legais, narrativas paroquiais, escrita de histórias de mosteiros, de instituições, obras lendárias ou literárias, étnicas, de ordens religiosas, ou textos relacionados com dinastias sequer são analisados a partir desta ótica da história da historiografia. Segundo Debora Deliyannis, os autores destas narrativas tinham como eixo de concentração: a preocupação com a verdade; a memorização de eventos ou de nomes de pessoas do passado, bem como de suas funções na sociedade; a recitação dos nomes de mortos nas missas funerárias; criação de cerimônias e rituais públicos; produção de imagens e monumentos; recitação de narrativas genealógicas; e evidentemente a escrita de textos e livros. O problema é que precisamos analisar esta documentação de acordo com o conceito de história empregado pelos autores que a escreveram, do contrário não a compreenderemos xxv.

Entre os dias 17 e 19 de Setembro do ano passado a Faculdade de Estudos Orientais da Universidade de Oxford sediou uma conferência intitulada “Historical Consciousness and Historiography (3.000 BC-AD 600)” somente para discutir a temática da escrita da história na Antiguidade. Os organizadores do evento enfatizaram que apesar desta separação do que eles chamam de “historiografia formal” e outras concepções e representações do passado o assunto não era contemplado desta maneira na própria Antiguidade. Ao contrário, frequentemente o mito e o lendário fazem parte das fontes historiográficas enquanto personagens e eventos históricos são mitologizados xxvi. Algumas destas questões já foram pontualmente observadas em nível nacional de forma individual pela mesma Juliana Basto Marques xxvii que colabora com este dossiê, Moacir Santos e Liliane Coelho xxviii e outros estudiosos da Antiguidade, mas, sobretudo, pela oportuna coletânea organizada por Fábio Duarte Joly xxix. No entanto, trata-se de um debate importante e que precisa ser cada vez mais fomentado na academia brasileira. Ele aparecerá nas aulas das disciplinas teóricas de nossos cursos de graduação em História, ou seja, aquelas que costumam ser nominadas nos curricula como “Introdução aos Estudos Históricos”, “Teoria da História”, “História da Historiografia” etc ou ficará a cargo dos professores de História Antiga? A elaboração deste dossiê partiu destas inquietações. Alguns especialistas em Antiguidade foram convidados a colaborar com suas contribuições para pensarmos juntos acerca desta problemática.

Romina Della Casa, da Universidad Católica Argentina, analisa como os Hititas narravam seu passado. Para isso, ela faz uso de vários textos, como alguns dos que foram mencionados até então: tratados, anais, testamentos etc. Desta forma, escrevendo em inglês, a autora aborda alguns dos principais problemas envolvendo a historiografia Hitita e seus pormenores.

Maria Aparecida de Oliveira Silva, da USP, por sua vez, mostra que a escrita herodotiana revela características literárias, etnográficas, arqueológicas e outras. Ela apresenta reflexões sobre o conteúdo das Histórias e das diretirzes que guiaram Heródoto em seu empreendimento. Anderson Zalewski Vargas, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem se dedicado a comprender as relações entre Retórica e Historiografia, analisa uma passagem da obra de Tucídides – o relato dos pathemata (sofrimentos) ocorridos ao mesmo tempo em que a guerra dividia a Hélade entre os partidários de Atenas e Esparta – que contradiz os juízos que fazem da História da Guerra do Peloponeso uma precursora da concepção moderna de história.

Juliana Basto Marques, Professora da Unirio, partindo de uma leitura crítica do já mencionado Arnaldo Momigliano, nos apresenta uma reflexão sobre a importância de Fábio Pictor no desenvolvimento da historiografia ocidental. A autora examina em detalhes os principais pontos da obra do autor romano, como a influência da historiografia grega versus as fontes pré-historiográficas da Roma republicana; a questão da propganda como motor da obra; a adequação do termo “analista”; e o problema da atribuição dos fragmentos. A seguir, Rafael da Costa Campos, professor da Universidade Federal do Pampa, aborda a obra de Públio Cornélio Tácito (55-117 / 120 d.C.) com o objetivo de destacar suas premissas historiográficas e sua aplicabilidade na composição do Princeps Tibério César Augusto. Renato Viana Boy, Universidade Federal da Fronteira Sul, e Lyvia Vasconcelos Baptista, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escrevem sobre os olhares de Procópio de Cesaréia sobre as guerras de Justiniano. O objetivo é problematizar a(s) forma (s) como o historiador bizantino do século VI d.C. retratou as guerras do referido imperador contra os persas, vândalos, mouros e godos, sobretudo destacando a gradativa mudança do olhar que o autor lança para os conflitos e atuação dos personagens.

Lorena Lopes da Costa apresenta uma interessante reflexão sobre o Agamêmnon, de Ésquilo, na qual analisa os descompassos em relação à propaganda política e à historiografia, que explicitam um momento da transformação que altera a rede que a concepção dos heróis de guerra, de seu sepultamento, de sua lembrança, de seu culto, e, finalmente, da política se entretecem. Discussão interessante para pensarmos sobre as várias facetas da escrita da história na Antiguidade. Por fim, Edson Arantes Junior, da Universidade Estadual de Goiás, fala sobre a coragem da verdade na obra de Luciano de Samósata. O conceito grego de Παρρησία (parrésia), que o autor traduz por “fala franca”, desempenha papel fundamental não só na narrativa luciânica, mas, como mecanismo que colabora para validação discursiva, também é útil para pensarmos a complexa relação entre História e Verdade. A equipe editorial da Revista de Teoria da História da UFG, juntamente com o organizador deste dossiê sobre a escrita da História na Antiguidade, também entrevistou o Prof. Dr. Fábio Faversani, Universidade Federal de Ouro Preto, e atual presidente da SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, sobre algumas das questões que foram mencionadas nesta apresentação e que ocupam este número específico da revista.

Além do dossiê, publicamos ainda cinco artigos avulsos. Edson Silva de Lima e Pedro Henrique Rodrigues Torres, em Na ordem do discurso: rasgando o contrato ficcional, problematiza a relação entre literatura e história por meio da análise de O alienista de Machado de Assis, reiterando a partir desta obra que a literatura não é uma mimeses da sociedade, mas uma prática discursiva. Já no texto de Barbara Araújo Machado, A função de intelectual: um diálogo entre Antonio Gramsci, Pierre Bourdieu e Edward Said, a autora faz uma análise dos conceitos de intelectual por cada um dos autores citados no titulo, analisando o grau de autonomia relativa do intelectual em suas obras. Em Os caminhos da interação entre história e historiografia e teoria, Johny Santana Araújo tem como tema norteador as relações entre a história e historiografia para refletir sobre (a partir do ponto de vista de Certeau) o que os historiadores fazem quando fazem história.

Charles de Nascimento de Sá, em Historiografia e ensino de história: música popular brasileira e o sentido da colonização do Brasil, trata da permanência da noção de “colônia de exploração” para assim problematizar as relações entre ensino de história e as ideologias. Por fim, João Alfredo Costa de Campos Melo Junior, em Objetividade e Ciências Sociais: reflexões a partir de Max Weber, há uma análise sobre a objetividade do método nas ciências sociais, reiterando Max Weber como um aporte teórico capaz ainda de dar respostas para esses dilemas. Publicamos também uma resenha de João Rodolfo Munhoz Ohara, do livro de Herman Paul Um Hayden White Existencialista: Por uma historiografia da libertação.

Agradecemos aos autores dos artigos, pareceristas, corretores ortográficos, toda equipe que auxilia na produção da Revista de Teoria, ao Prof. Dr. Fábio Faversani pela gentileza de conceder a entrevista que acompanha este Dossiê e desejamos a todos uma boa leitura!

Notas

i. MARINCOLA, John. A Companion to Greek and Roman Historiography. Blackwell, 2007.

ii. MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004.

iii. MARINCOLA, John. Op. Cit. P. 1.

iv. Disponível em: < http: / / www.dh.uni-leipzig.de / wo / projects / open-greek-and-latinproject / digital-fragmenta-historicorum-graecorum-dfhg-project / >. Acessado em: 04 / 04 / 2015.

v. JACOBY, Felix. Die Fragmente der Griechischen Historiker Part I-III. Brill Online, 2015. Os 856 historiadores podem ser consultados online no seguinte link: . Acessado em: 04 / 04 / 2015.

vi. MARINCOLA, John. Op. cit. P 4-7.

vii. H. Peter, Historicorum Romanorum Reliquiae. Vol. I, Leipzig 1914 (repr. Stuttgart 1967), Vol. II, Leipzig 1906.

viii. CHASSIGNET, Martine. L’annalistique romaine. Vol. I-III, Paris 1996-2004.

ix. BECK, Hans; WALTER, Uwe. Die Frühen Römischen Historiker. Vol. I, Darmstadt 2005, Vol. II, Darmstadt 2004.

x. The Fragments of the Roman Historians. Volume I: Introduction; Volume II: Texts and Translations; Volume III: Commentary. T. J. Cornell, General Editor. Editorial Committee: E. H. Bispham, T. J. Cornell, J.

xi. MEHL, Andreas. Romische Geschichtsschreibung. Translated by Hans-Friedrich Mueller. Roman Historiography: An Introduction to its basic aspects and development. Uk, Blackwell, 2011.

xii. Cf. A.T.E. Olmstead. Assyrian Historiography. In: The University of Missouri Studies, Social Studies Series III / I, 1916. Apud SETERS, John Van. Em Busca da História: Historiografia no Mundo Antigo e as Origens da História Bíblica. São Paulo, Edusp, 2008.

xiii. Cf. J.J. Filkenstein. Mesopotamian Historiography. Paps, 107, 1963. Pp. 416-472. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xiv. Cf. H. G. Güterbock. Die historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babylaniern und Hethitern bis 1200. ZA, 42, 1934, pp. I-91 e 44, 1938, pp. 45-149. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xv. Cf. E. A. Speiser. Ancient Mesopotamia. In: The Idea of History in the Ancient Near East, ed. R. C. Dentan, pp. 35-76. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xvi. Cf. A. K. Grayson. Histories and Historians of the Ancient Near East: Assyria and Babylonia. Orientalia, 49, 1980, pp. 140-194. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xvii. IBIDEM.

xviii. Cf. H. Gese. Geschichtliches Denken im Alten Oriant. ZThK, 55, p. 128. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xix. Cf. L. Bull. Ancient Egypt. In: The Idea of History in the Ancient Near East, p. 32. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xx. Cf. H. Cancik. Grundzüge. P. 3. Apud SETERS, John Van. Op. Cit.

xxi. SETERS, John Van. Op. Cit. P. 144 e 145.

xxii. GOZZOLLI, Roberto B. History and Stories in Ancient Egypt. Theoretical Issues and the Myth of the Eternal Return. In: Martin Fitzenreiter (editor), Das Ereignis Geschichtsschreibung zwischen Vorfall und Befund. London, 2009. P. 103

xxiii. GOZZOLLI, Roberto B. Op. Cit. P. 104

xxiv. SETERS, John Van. Op. Cit. p. 145.

xxv. DELIYANNIS, Deborah Mauskopf. Historiography in the Middle Ages. Leiden: Brill, 2003. 1-16. xxvi. Acessado em: 04 / 04 / 2015.

xxvii. MARQUES, Juliana Bastos. A historia magistra vitae e o pós-modernismo. História da Historiografia, v. 12, p. 63-78, 2013; MARQUES, Juliana Bastos. Públio (Gaio) Cornélio Tácito. In: Parada, Maurício. (Org.). Os Historiadores: Clássicos da História. Rio de Janeiro: PUC-Rio / Vozes, 2012, v. 1, p. 88-106; MARQUES, Juliana Bastos. Estruturas narrativas nos Anais de Tácito. História da Historiografia, v. 5, p. 44-57, 2010; MARQUES, Juliana Bastos. O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga. Revista de Historia (USP), v. 0, p. 43, 2008.

xxviii. COELHO, L. C. ; SANTOS, Moacir Elias . A Escrita da História do Egito Antigo. Nearco (Rio de Janeiro), v. 7, p. 260-284, 2014.

xxix. JOLY, Fábio Duarte. (Org.). História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. 1. ed. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007. v. 1. 184p

Dominique Santos – Doutor (FURB). Membro do Conselho Editorial da Revista de Teoria da História (UFG)


SANTOS, Dominique. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.13, n.1, abril, 2015. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.