A Escrita da História. Lisboa: Temas e Debates | José Mattoso
A escrita da História é um livro que compila conferências e palestras várias do historiador português José Mattoso, proferidas entre 1986 e 2000, em diversos lugares do globo. Como o próprio afirma, com elas não procura “o sentido da História” (p.8), antes aí encontra uma forma de “juntar-[se] à sinfonia da História” (p.11).
Esses textos reunidos no exemplar em análise abordam temáticas que o autor deseja particularmente úteis para quem lê, nomeadamente, a construção crítica do texto historiográfico, o ensino da História, os arquivos e a sua ligação à construção histórica e temas outros, vastos, como o nacionalismo ou as iluminuras. Principiando pelo capítulo um – A escrita, contam-se cinco textos sobre, na perspetiva daquele estudioso, as especificidades da História e da Historiografia (e seus rumos).
O primeiro alude aos documentos escritos que, não sendo uma opinião, pois fundados na evidência histórica, aproximam-se de “um discurso pessoal”, também dependente “dos pontos de vista, que são muitos” (p.29). O seu conteúdo marca-se pela relatividade e necessária inclusão numa totalidade e, ainda, numa perspetiva histórica. Usando a escrita talvez como um subterfúgio, o historiador sublinha certos ‘nãos’ relativamente à História: o passado não é a memória (coletiva) que dele se tem, daquela História não se pode escolher o que mais agrada ou a mesma não deve ser usada para comemorar o tempo pretérito. E salienta, em simultâneo, a sua metodologia própria, que aglutina a “natureza científica” e os “processos da imaginação e da perspicácia” (p.25).
Já o texto subsequente bipolariza a História como ciência e como arte. No primeiro caso, quando, por entre a positividade, os conceitos operatórios, a argumentação baseada na quantificação, se recorre sistematicamente à crítica para a seleção dos dados e às categorias das Ciências Humanas para o estabelecimento de nexos relacionais. Daqui se anseia a eficácia e a comunicabilidade. Enquanto arte, olha-se a História como “uma representação de representações” e, portanto, como um saber que não se aliena do rigor científico, mas que, em simultâneo, não precisa de ser “meramente demonstrativo, monótono ou informativo” (p.40).
No terceiro artigo, José Mattoso, à data de 1987, apontava os novos rumos da Historiografia. De modo muito linear, e aqui francamente sintetizado, indiciou os lapsos do presentismo, apontando a relevância de se saber reconstruir os conceitos e padrões de comportamento do passado a partir desse mesmo passado. Na sua opinião, pelo acicatar do espírito crítico, mais do que pela multiplicação de publicações superficiais e mistificatórias, é possível “descobrir o sentido e a coerência própria da visão do mundo coletivamente aceite ou pressuposta pelas sociedades de outrora” (p.50).
No penúltimo texto, lança para o debate a destrinça entre a investigação histórica e a mera divulgação com intenções superiores de sucesso editorial. Porquanto aquela primeira, pesquisa científica que precisa de alcançar o público também, não pode deixar ao acaso a epistemologia da História. Com maior veemência, segundo o historiador, essa investigação tem de ocasionar uma outra consciência individual na relação com o coletivo. É, no final, o “tentar ver-me ao espelho da vida do outro e aprender nele a experiência vital da alteridade” (p.68).
Por fim, no texto que fecha o capítulo, aborda a contemplação numa dimensão filosófica que se conecta com a História. Essa ‘sua’ história contemplativa permite aos sujeitos perceberem a sua relação com o passado e, por inerência, a condição humana. Na verdade, perfilha-se uma conceção de História que ocasiona “a capacidade para «ver» de um só golpe o desenrolar da História humana” (p.87), aquela que perpassa três tempos distintos.
Porventura, sob a forma de súmula desta primeira parte do livro, é possível usar as palavras do autor: a História não é óbvia e “só meditando nela se percebe bem isso” (p.92).
O capítulo dois – O ensino – engloba quatro textos sobre o ensino e a aprendizagem da História em contexto escolar. Tal reflexão faz-se do mais geral (História a ensinar nos dias de hoje e a sua função social) para o mais particular (lendas, mitos e o texto literário como recursos didáticos).
O artigo inicial remete para a função social da História na atualidade (foi pronunciado, indique-se, em 1999). Com clareza e concisão, o autor salienta uma área do saber que permite, além de uma simples apreciação, a compreensão ampla, diversificada e crítica do mundo e das questões complexas que lhe dão forma. É a História que potencia conhecimentos específicos, e realmente proveitosos, como a identidade e a alteridade, a sincronia e a diacronia, a causalidade e a relatividade, a repetição e a inovação. Em todo o caso, Mattoso não deixou de apontar, aparentemente com intenção, uma “conceção da História que não se compadece com uma mera memorização dos factos (p.106). Porque a memória pode ser útil, mas para a reconstrução global e retrospetiva do passado.
No segundo texto, expõe uma perspetiva favorável ao uso das lendas e dos mitos (neste caso, utiliza como exemplo a lenda do Lidador e uma outra, do touro no seu brasão) nas aulas dos diferentes níveis de ensino, sobretudo porque, às crianças e jovens, “o mais necessário talvez não seja contar-lhe[s] a História de Portugal; é preciso contar-lhe[s] muitas histórias” (p.112). Aquele recurso didático-pedagógico permite, pois, ligar o conhecimento do passado à realidade e vida pessoal de cada um e, concomitantemente, desenvolver a crítica face a uma narrativa que é ficcional. O interesse das crianças pela narrativa terá de ser, apenas, o ponto de partida, depois, e partindo da evidência, ressalva a essencialidade de se fazer a transição daquela para o relato datado no tempo histórico.
O artigo seguinte (do mesmo ano) retoma o assunto anterior e, para tal, recupera uma passagem de Mircea Eliade, apontando o fascínio dos homens de todas as civilizações pelo texto narrativo. Mais uma vez, salienta as potencialidades do uso da narrativa literária (e dos seus processos metafóricos, sintéticos e expressivos) como opção didática na aula de História. No entanto, este discurso histórico que se funda nos recursos do âmbito da literatura detém particular efeito comunicativo quando não se transmuta na “velha narrativa de acontecimentos heróicos nacionais e internacionais, com o intuito de fomentar o patriotismo, o espírito cívico” (p.130).
Reafirmando a ideia inicial deste bloco de textos – de que a História é realmente útil – o autor, no último artigo, questiona quase que retoricamente aquela que deve ser ensinada. Com particular elucidação, volta a recusar a memorização factual, porquanto os estudantes “podem até conseguir saber tudo isso [conceitos]; e todavia não terem bem ideia do que é a História” (p.153). Não tendo certeza absoluta de que uma história de questões é modelo alternativo à história universal, tradicionalmente lecionada em contexto escolar, assume-se mais convicto quando afirma que tal área do saber contribui para o desenvolvimento do espírito crítico e para o aperfeiçoamento do rigor. Já aludindo à noção de multiperspetiva histórica, mencionando-a como explicações que são, ou não, conciliáveis, Mattoso juntou também esse elemento àquele que entende ser o contributo da História para uma “cidadania verdadeiramente responsável” (p.148).
Aparentemente, naqueles finais do século XX requeria-se, segundo o autor, uma mudança de mentalidade no que dizia respeito ao ensino da História. Hoje, já no começo da segunda década do século XXI, há quem ainda clame pelo mesmo.
O terceiro capítulo do livro – Os materiais – inclui seis textos distintos: três deles sobre os arquivos em específico; um sobre a ciência histórica e as fontes documentais em Portugal; e dois outros que, de novo, ligam a História a outras áreas do saber.
O primeiro texto, de 1987, e porque foi redigido no âmbito das atividades do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, faz referência breve à história de tal instituição portuguesa, antes de generalizar aquele como o ano em que “o setor dos arquivos começa a agitar-se” (p.164). Assume este ponto de partida para uma espécie de enaltecimento intencional do papel dos arquivos na dinamização cultural de um país, além do seu contributo para uma identidade nacional que se pretende distanciada da História mítica, alienante e de seleção ‘interesseira’ ou arbitrária. Depois, conhecer o presente implica conhecer os antecedentes e, naqueles lugares, reúnem-se e classificam-se, de modo sistemático, certos testemunhos que permitem aceder a “um passado vivo e atuante, diretamente relacionado com o presente, connosco” (p.167).
Sob o mote “nenhum povo tem o direito de cultivar mitos e esquecer a realidade” (p.180), o segundo artigo deste capítulo retoma os arquivos, mas associando-os aos portugueses e à consciência da sua própria identidade. Se a necessidade dos arquivos foi uma constatação lenta e irregular em Portugal, ao sabor dos regimes políticos em curso, não menos verdade é, para o investigador, a ideia de que a defesa dos valores nacionais implica fazer daqueles espaços centros de cultura e não depósitos de velharias. Com efeito, a preservação dos testemunhos, bem como uma classificação completa dos dados e factos coincidem com uma real História científica e, também por isso, permitem a desconstrução de eventuais memórias míticas existentes. Não colocando de parte certa ironia, Mattoso acrescenta que “é sintomático (…) que o Estado Novo tenha gasto muito mais dinheiro em reparar castelos do que em reorganizar arquivos” (p.178).
O terceiro artigo amplia ligeiramente o âmbito de análise, atribuindo ao arquivo também a função de construção da memória, particularmente quando se pauta pela completude dos elementos que alberga e não tanto pela seletividade. Para desenvolver esta sua ideia, colocando em debate o passado real e o passado imaginário, o investigador parte da peregrinação a Compostela e sua história e, umas páginas à frente, elenca uma série de trabalhos arquivísticos portugueses ao longo do tempo, não desvalorizando o papel dos próprios arquivistas.
No texto subsequente, datado de 1985, parte de duas questões específicas e que remetem para o avanço da ciência histórica em Portugal e para o papel da Academia no campo em causa. É em função das mesmas que, pelas suas palavras, faz um retrato panorâmico da Historiografia contemporânea. Toma como início a História considerada “género literário tecnicamente associado à oratória” e avança até ao “estatuto de ciência exata que hoje reivindica” (p.195). Sendo uma conferência alusiva à publicação de fontes históricas, não deixa de sublinhar os indícios de certo progresso científico no âmbito da História, no século XVII, quando alcançaram particular relevância os documentos escritos e sua autenticidade. A publicação de fontes com crítica, exemplificando com algumas, medievais, em Portugal, é ponto também salientado no texto.
O penúltimo texto apresentado permite que se constate a interação, que o autor marcadamente valoriza, entre âmbitos de pesquisa diferentes. Desde logo, clarifica “os contactos e as interfaces entre a pesquisa histórica e a pesquisa literária” (p.210). As fontes históricas são o elemento central neste texto e, por entre estudos sobre “o conjunto da nobreza portuguesa dos séculos XI ao XIV” (p.214) ou a mentalidade medieval com implicação na interpretação de cantigas d’amigo e canções d’escárnio, salienta que o trabalho interdisciplinar “põe, amiúde, em causa as ideias estabelecidas, contribui, por vezes, para lhes fornecer bases mais sólidas” (p.222).
Essa interdisciplinaridade mostra-se também no último artigo do capítulo, proferido no Encontro da Associação Portuguesa de Linguística, em 1996. Na perspetiva do investigador, “a diferença estimula o diálogo” e, por conseguinte, há um conjunto de perguntas que, como historiador apenas, pode colocar aos linguistas, cruzando as duas disciplinas científicas com fronteiras e métodos diferenciados. Se o primeiro conjunto de questões remete para a língua como indício de mutações, situadas no tempo, não detetáveis em outras fontes históricas, pois as respostas facultadas podem englobar a crítica textual, o léxico ou a análise dos discursos; o segundo diz respeito às alterações de linguagem como testemunho de mudanças de mentalidades ou de alterações civilizacionais, elencando-se já obras deste âmbito que, a partir de diferentes focos, vão percebendo sistemas de pensamento distintos ou fenómenos dialectais com múltiplas influências.
Quase se sintetiza a ideia transversal da necessária, e produtiva, interrelação entre diferentes disciplinas com uma frase do autor: “só com a ajuda dos linguistas se podem resolver devidamente esses problemas” (p.233). Talvez aquela palavra ‘linguistas’ se possa, com certo atrevimento, substituir pela expressão ‘vários saberes’.
O capítulo IV – Os temas, que finaliza o livro, aglutina dez textos sobre temáticas várias.
O primeiro, de 1986, discute a identidade europeia, tomada como sistema com coerência interna, não deixando de aferir “qual o lugar que Portugal tem em tudo isto”1 (p.253). Como uma justificação possível daquele sistema e, ainda, como antídoto face à perversão do mesmo, aborda o Cristianismo, enquanto “conceção do mundo” (p.248), bem como o papel da igreja.
O segundo artigo, do ano anterior, analisa a História nacional e o nacionalismo, que diz afastados do pensamento dos intelectuais durante algum tempo. À época da escrita do mesmo tal parecia ultrapassado e, por conseguinte, Mattoso sublinha, de forma notória, que apesar do fenómeno nacional ser um fenómeno político, a História nacional precisa de estudar, também, “o desenvolvimento de cada uma [poder e nação] delas na sua esfera própria” (p.268).
Sobre a formação de uma identidade nacional, num texto proferido em Cabo Verde, mais uma vez alude à dimensão política da nacionalidade, mas àquela acresce a ideia de ‘consciência nacional’, exemplificando com o caso português. No final, deixa um apontamento bem claro: “não há verdadeiros problemas históricos se não dizem respeito aos homens de hoje” (p.284).
No quarto artigo, debruça-se sobre o “estudo da relação entre o homem e o espaço habitado que o rodeia” (p.286), concretizando uma abordagem pessoal da história regional e local. Este estudo do passado regional e local, que pode incluir, entre outros, os poderes e a sua divisão, a periodização ou os documentos, é essencial para o conhecimento de si próprio e do mundo. O artigo seguinte novamente remete para a interdisciplinaridade e, neste caso, para referir-se à “reconstrução da organização do espaço no passado” (p.302), Mattoso recorre ao trabalho rigoroso e cientificamente pertinente, de geografia histórica, de Suzanne Deveau e seus colaboradores.
O texto subsequente quase se pode resumir como um conjunto de “sugestões que de[u] acerca dos problemas e dos métodos para poder estudar a mulher e a família” (p.319), não deixando de sublinhar que parece ser necessário reescrever uma História tradicionalmente centrada no homem. E se em 1986 o ponto de vista era este, hoje, em 2020, não será muito distinto.
O sétimo texto, onde afirma peremptoriamente que “não a entende [a História] como uma comemoração do passado, mas como uma forma de compreensão do presente” (p.320), centra-se na Idade Média para a abordagem da relação entre o sagrado e o profano. Talvez aquela seja a época privilegiada para observar o tema, debatido no Rio de Janeiro.
O texto oito trata da intimidade na arte. Assumindo aquela que é uma dimensão bem pessoal, discute a noção de intimidade em estreita ligação com a de interioridade e, depois, relaciona-as com o indivíduo e sua identidade única. Há, pois, uma tentativa de pensar o Homem nas suas dimensões diacrónica, intertemporal e universal.
O artigo que é penúltimo deste conjunto data de 1999 e apresenta o imaginário da iluminura medieval, porquanto “o mundo medieval aqui, como em tudo, patenteia a sua imensa diversidade” (p.337). E em relação àquela temática encontra diferenças entre as iluminuras portuguesas do século XII em diante e aquelas que se desenharam já depois do século XIV, quando o saber deixou de se confinar aos mosteiros.
O último texto, de 1993, exibe meia dúzia de reflexões sobre os milenarismos. Entende-os como “doutrinas acerca do futuro da Humanidade” (p.357), mas também destaca, quase como contraponto, a imprevisibilidade que subjaz à própria Humanidade. Depois da discussão conceptual do termo, aponta o tempo social e a perceção coletiva do rumo do mesmo como razões, ou não, do (re)aparecimento de um novo milenarismo.
Da imagem escolhida para a capa ao resumo incluído na contracapa do livro, a figura de José Mattoso, quando se considera o estudo da História em Portugal, está ali bem presente. Para ele, e depois para quem o lê, a relação que se descobre entre o ontem e o hoje só pode ser um contributo para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referência nem sentido.
Todavia, não será despropositado entender este livro, como tantos outros (talvez todos), somente como um conjunto de pontos de vista, mais ou menos explícitos, do seu autor. E essa é, além de qualquer outra, a sua relevância: permitir que, pela leitura, possamos refletir sobre assuntos vários que envolvem a História e a Historiografia. Porventura, até, assumindo sobre eles uma posição distinta, que também a partir dali podemos fundamentar de um modo um pouco mais esclarecido.
Nota
1 De notar que a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia aconteceu a 1 de janeiro de 1986.
Resenhista
Ana Isabel Moreira – CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar, Porto. Licenciatura em Educação Básica. Mestrado em Ensino do 1.º e 2.º Ciclos do Ensino Básico. Doutoramento em Educação. E-mail: ana_m0reira@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-6757-8005
Referências desta Resenha
MATTOSO, José. A Escrita da História. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2019. Resenha de: MOREIRA, Ana Isabel. História escrita, História lida. Historia y Espacio. Cali, v. 16, n. 55, p. 130-135, jul./dic. 2020. Acessar publicação original [DR]