A Era Vargas – BASTOS; FONSECA (EH)
BASTOS, Pedro; FONSECA, Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: UNESP, 2012. 476p. Resenha de: CARVALHO, Marina Helena Meira. A construção de uma era: Vargas e a formulação do desenvolvimentismo. Estudos Históricos, v.27 n.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014.
Pedro Zahluth Bastose Cezar Dutra Fonseca organizaram uma coletânea para analisar o desenvolvimentismo, que se teria iniciado na Era Vargas. Na apresentação eles se posicionam contra o liberalismo econômico e acreditam ser o conhecimento histórico importante ferramenta na busca de modelos de maior desenvolvimento econômico e justiça social. O livro elogia a prática intervencionista do Estado varguista para superar as crises econômicas e transformar o perfil do Brasil, de uma economia agrário-exportadora, em uma economia industrializada. A inovação está na interpretação de que o governo Vargas adotou, ao mesmo tempo, medidas ortodoxas e heterodoxas.
Além de a apresentação justificar a relevância do livro para o momento em que foi publicado, 2012, outros artigos também o fazem. Luiz Carlos Bresser-Pereira cita a pesquisa realizada pela Folha de São Paulo (2007) que elegeu Vargas o maior brasileiro de todos os tempos. Francisco Luiz Corsi afirma que o modelo econômico varguista, que vigorou até hoje, se teria esgotado, mostrando incertezas quanto aos rumos da economia. Diante da crise mundial de 2009 e das dúvidas sobre suas consequências para o Brasil, o livro ganha novo significado. Analisar as estratégias de Vargas diante do crash de 1929 torna-se relevante, 70 anos depois, pois a possibilidade de crise assombra novamente a economia brasileira.
A coletânea faz prevalecerem as análises dos organizadores, uma vez que os dois são autores da metade dos artigos que ela abriga. Apesar desse discurso hegemônico, ela abre espaço para abordagens diversas: econômicas, políticas, sociais, históricas, simbólicas. A análise do desenvolvimentismo une as múltiplas vozes. As interpretações contêm alguns pontos de divergência, como o uso ou não do termo “populismo”, o que as enriquece com um debate interno.
Apenas quatro textos da coletânea são inéditos. Os demais constituem versões modificadas de artigos publicados. A organização de textos antes dispersos muda-lhes o sentido, pois eles ganham uma coerência e uma unidade antes não existentes, evidenciadas, por exemplo, nas recorrentes citações de artigos anteriores do próprio livro.
Os dois capítulos iniciais, de Fonseca, dissertam sobre a genealogia do desenvolvimentismo e sua primeira experiência: o governo de Vargas no Rio Grande do Sul, em 1928. Fonseca conclui que quatro elementos antes experimentados separadamente no Brasil, o nacionalismo, a industrialização, o papelismo e o positivismo, ao se fundirem, mas se superarem individualmente, geraram o desenvolvimentismo.
Ângela de Castro Gomes e Bresser-Pereira, logo a seguir, lançam um olhar sobre a figura de Vargas e o autoritarismo pós-30. Se Gomes analisa como o personalismo foi uma modernização da cultura política brasileira paternalista, Bresser-Pereira identifica Vargas como estadista, homem que tinha a “visão antecipada do momento histórico que seu país ou sua nação está vivendo” (p. 94). Gomes mostra como o discurso de pensadores autoritários (Oliveira Vianna, Francisco Campos e Azevedo Amaral) foi incorporado para criar um Estado corporativo, forte e centralizado, em que a democracia passou a ser social. Para Bresser-Pereira, entretanto, a democracia só seria possível no país após um regime autoritário que realizasse a revolução nacional brasileira, ou seja, transformasse o povo em nação e completasse a transição econômica para o capitalismo. Apesar das divergências entre os dois autores, há uma confluência quanto à importância do mito do líder diante de um Estado autoritário. A narrativa de Bresser-Pereira deve, contudo, ser tomada com cuidado, uma vez que realizações políticas aparecem como justificativas para a censura e as violações de direitos (p. 115).
Após avaliar as mudanças políticas, principalmente na concepção de sociedade, a coletânea se concentra nas mudanças econômicas. Perpassa os capítulos de Wilson Cano, Fonseca, Bastos e Corsi a ideia de que o projeto econômico estava em construção. Os autores negam a tese de Celso Furtado da inconsciência do governo diante da reorientação da economia, segundo a qual a industrialização do Brasil seria resultado de choques externos e de políticas de proteção do café, heterodoxas. Negam também as análises de Peláez, para quem Vargas teria optado pelo caminho ortodoxo para superar a crise.
Ressalta-se, na coletânea, que a agricultura não foi abandonada em detrimento da indústria. A proteção do café foi perdendo espaço gradativamente para a policultura, voltada para o mercado interno (p. 204). A industrialização como prioridade governamental visou à superação da condição de agrário-exportador, à substituição de importações e à manutenção da soberania política e econômica. A falta de recursos internos para seu financiamento foi um empecilho. Assim, o governo adotou uma política conciliatória, munindo-se de heterodoxia econômica no plano interno, através do incentivo agrário, e de ortodoxia no plano externo, pois necessitava do capital estrangeiro para financiar as indústrias. A Era Vargas não poderia, portanto, ser considerada xenófoba ou entreguista.
Os últimos capítulos analisam as crises do projeto Vargas e o apoio/oposição de determinados segmentos. Jorge Ferreira problematiza os conceitos de trabalhismo, populismo e nacional-estatismo e as intencionalidades do ato da nomeação. Lígia Osório, por sua vez, mostra a oposição surgida no pós-guerra no âmago do Exército, a qual teria gerado o golpe de 1945. Bastos se concentrará no segundo governo Vargas, momento em que as conjunturas políticas eram diversas, o que não permitia o uso dos mesmos instrumentos de barganha empregados no primeiro governo. Esse núcleo como um todo desenha a perda de apoio interno e a falência da estratégia de financiamento externo do programa de desenvolvimento, entravada pelo governo Eisenhower, culminando no suicídio de Vargas.
O legado varguista, entretanto, permaneceria. Seja nas instituições criadas ou modificadas por ele, na CLT, na Justiça Trabalhista, seja na ideia de que o liberalismo não resolve a desigualdade social, mas a aprofunda em épocas de crise. Seja também graças ao continuísmo, ainda que reformulado, do desenvolvimentismo nos governos JK, Jânio e Jango, e até mesmo durante a ditadura militar. A repressão às formas autônomas de organização de trabalhadores, o autoritarismo político e a organização econômica estariam superadas atualmente.
Apesar do uso do termo revolução por alguns dos autores, a relação ruptura/continuidade torna-se um fio condutor do livro, evidenciando as constantes escolhas do governo Vargas, de um lado, e as rupturas e as continuidades dos governos seguintes em relação ao seu projeto, de outro.
Essa abordagem econômica do Estado Novo, que interpreta a concomitância das práticas ortodoxas e heterodoxas, e vê a industrialização como decorrência de escolhas internas incentivadas pela conjuntura externa, entra em embate com estudos clássicos, como os de Furtado e Peláez, que influenciaram toda uma geração.
Nos últimos 30 anos muitos são os autores que se têm dedicado à Era Vargas, usando abordagens culturais e políticas. Este livro realiza importante discussão na perspectiva da História Econômica e faz, ainda, ponte com outras áreas, como Culturas Políticas, História Militar, das Instituições e Cultural.
A coletânea se concentra num estudo de caso brasileiro entre as décadas de 1930 e 1950, mas suas análises ultrapassam os marcos espaciais e cronológicos. Os autores estabelecem conexões com o contexto mundial e especificamente da América Latina e também recuam e avançam no tempo para mostrar as rupturas e continuidades de uma era, revelando-se importante referência não só para os que estudam o varguismo. Deve-se, entretanto, ter cautela com a abordagem militante de alguns capítulos, os quais mobilizam fatos históricos para defender práticas antiliberais e autoritárias e deixam a desejar quanto à historicização do tema. A retomada dessa valoração ganha sentido em um contexto de crise mundial, em que vários governos repensam suas práticas político-econômicas.
Marina Helena Meira Carvalho – Mestranda em História e Culturas Políticas na UFMG (marinahmc@yahoo.com.br).