Os festivais da canção realizados ao longo das décadas de 1960 e 1970 constituem, sem dúvida, marcos significativos na trajetória da história da música brasileira. Nesse período, novos talentos foram descobertos, movimentos musicais se renovaram e redimensionaram a música popular brasileira. Uma revisão do conceito de MPB impulsionou intensos debates acerca das relações entre a música e a política, fomentou discussões sobre a estética e suas articulações com o social. No bojo dessa efervescência cultural, compositores, músicos e intérpretes se depararam com as limitações impostas pelo regime militar, seus atos de exceção e, principalmente, pela ação censória. Não por acaso, muitos dos artistas envolvidos nos embates estéticos e políticos do período foram exilados, perseguidos e presos.
A Era dos Festivais – Uma Parábola reporta o leitor à magia dos festivais e o coloca diante da euforia do público, da competitividade entre os participantes, dos bastidores dos eventos musicais. O volume que integra a coleção “Todos os Cantos”, publicada pela Editora 34, se mostra envolvente como uma crônica, mas alia à narrativa romanceada uma vasta documentação, capaz de suscitar múltiplos interesses e chamar a atenção das mais distintas gerações. Zuza Homem de Mello atua como “testemunho ocular da história” – parafraseando o locutor do memorável programa Repórter Esso; envereda pela atmosfera agitada daqueles anos e apresenta versões controvertidas de casos pitorescos flagrados durante a realização dos festivais.
Mello comenta o resultado final do festival de 1966 e explica a polêmica que envolveu o empate entre as canções A Banda (de Chico Buarque) e Disparada (de Geraldo Vandré e Théo de Barros). Assim, relata que o compositor da primeira música foi informado de sua vitória na coxia, mas, manifestando certo desconforto com o resultado, dirigiu-se ao então diretor da Record, Paulo Machado de Carvalho, solicitando a alteração da decisão do júri e, enfaticamente, afirmou: Se “A banda” for premiada, eu devolvo o prêmio em público. Desse modo, embora A Banda tivesse ganhado por sete votos a cinco, teria prevalecido a exigência de Chico Buarque.
Esse, entre outros tantos casos excêntricos, integra a memória seletiva do autor, que, a um só tempo, reúne detalhes da festa e das alcovas que a história oficial tentou silenciar, por força das conveniências políticas e da repressão. Ao tratar da história de uma das mais significativas manifestações artísticas do país até a atualidade, Homem de Mello apresenta uma pesquisa realizada durante cinco anos, a qual reúne uma seleção de fotografias (140 imagens), depoimentos de cantores, músicos, compositores, jurados e pessoas do público presente e telespectador (cerca de 80), artigos e matérias jornalísticas, inclusive sua própria memória, revista através do resgate de documentos e registros sonoros de seu arquivo pessoal.
Os episódios comentados pelo musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello revelam visões de alguém que vivenciou intensamente os anos de 1960 a 1972. Tal fato não imprimiu à sua obra autonomia discursiva; muito pelo contrário, uma das maiores virtudes do livro A Era dos Festivais – Uma parábola é justamente o fato de apresentar vasta pesquisa documental, que propicia o aprofundamento da análise dos elementos estéticos e técnicos das canções exibidas nos concursos musicais destacados. É notória a sua formação musical como contrabaixista e aluno de Musicologia da Juilliard School of Music-EUA.
Do destempero à harmonia, da música romântica à canção de protesto, Zuza Homem de Mello se atém no estudo da I Festa da Música Popular Brasileira, transmitida pela TV Record (realizada no Guarujá, em São Paulo) e ao VII Festival Internacional da Canção Popular (FIC), organizado pela TV Globo em conjunto com a Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro, em 1972. Auditórios e teatros repletos, moços politizados, tietes, jovens românticos e militantes, todos esses personagens parecem ganhar vida na narrativa de Mello, que nos reporta aos prazeres da MPB. Desse modo, o autor reconstitui a trajetória histórica de A Banda, Disparada, Arrastão, Roda-Viva e BR-3, entre outras canções que caíram no gosto popular, bem como a experiência efêmera do sucesso vivido por artistas das mais diversas tendências musicais: de Geraldo Vandré a Chico Buarque, de Elis Regina a Jair Rodrigues, de Caetano Veloso e Gilberto Gil aos Mutantes e a Tony Tornado, entre tantos outros nomes que empolgaram e comoveram o público dos festivais.
O vigor narrativo de Homem de Mello permite ao leitor vislumbrar parte da comoção popular suscitada pela interpretação da canção Caminhando, de Geraldo Vandré – aliás, uma apresentação acompanhada de perto pelos militares e seus censores. A exatidão das palavras do autor parece reproduzir os movimentos de Elis Regina e Jair Rodrigues (gesticulando sem cessar) quando esses interpretaram as músicas Disparada e Arrastão, respectivamente; a tensão de Caetano Veloso ao ser vaiado na apresentação de É Proibido Proibir; o sabor amargo da rejeição experimentado por Tom Jobim e Chico Buarque (quando a platéia vaiou Sabiá) e sentido por Sérgio Ricardo, que destruiu seu violão, arremessando-o contra o público.
A obra constitui importante contribuição no campo da história da cultura nacional, uma vez que, embora centrada na problemática musical, não deixa de enfrentar temas afins, como os embates da produção artística e com a política cada vez mais intensos frente ao acirramento da ditadura militar. Não negligencia a problemática da sociabilidade artística paulistana, manifesta nos lugares festivos da cidade, nos pontos de encontro dos compositores, intérpretes, intelectuais, militantes políticos, entre outros agentes sociais. A atmosfera dos bares e dos bastidores da televisão brasileira, em franca expansão naquele período, não escapou ao olhar atento do autor, que, ao longo de quinze capítulos, apresenta uma característica importante do ponto de vista da pesquisa histórica: reúne em dois apêndices uma série de documentos. No primeiro deles, levanta uma listagem dos participantes, enumera obras, compositores e intérpretes, seccionado-os entre os festivais destacados no livro e os eventos musicais de projeção nacional e regional. Noutro anexo, apresenta a discografia oficial dos festivais analisados por ele.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de a análise reconhecer a tendência dos festivais a popularizar as canções concebidas como práticas de resistência ao recrudescimento do regime militar, sem ignorar a tentativa do governo de reverter essa popularidade dos festivais em prol da propaganda política e da legitimação das ações dos militares. Noutro extremo, o autor também não deixa de mencionar o colapso da carreira de ídolos que, por razões políticas e militares, alheias ao meio estritamente musical, caem no esquecimento, como Erlon Chaves e Wilson Simonal, ou são fadados ao anonimato, como Geraldo Vandré.
Inúmeros são os comentários positivos em relação A Era dos Festivais – Uma Parábola. Alguns especialistas destacam que se trata de um texto bem-articulado, outros salientam que o livro procura estabelecer uma ligação entre a estética da música popular do período e os acontecimentos políticos da época, e ainda, que tece uma interpretação cuidadosa dos aspectos técnicos das canções. Por certo, embora essa obra não se caracterize como uma produção acadêmica, nem tenha sido concebida com esse fim, apresenta refinada leitura da estética musical. Todavia, a análise poderia ser enriquecida mediante o trato das correntes musicais que informaram as tendências deflagradas no período, especialmente aquelas que afloraram nas mais diversas manifestações musicais conjugadas nos festivais da canção analisados.
As articulações de Zuza Homem de Mello com o meio artístico e com o tema do livro explicam algumas singularidades do seu texto. Ele teve acesso a uma série de documentos e a um conjunto de pessoas nem sempre disponíveis a outros pesquisadores. Esse envolvimento pessoal ora favoreceu, ora comprometeu algumas passagens da sua obra. Apesar de toda a licença poética que lhe cabe, tece considerações que tendem a sacralizar esse período da história da música brasileira e a tratá-la mediante uma retórica linear. Refiro-me aos excessos cometidos por Melo quando este taxativamente afirma que o fim da “era” dos festivais (1972) fatalmente teria causado o rompimento de uma cadeia criativa da música popular brasileira.
O desalento do autor pode ser relativizado se levarmos em consideração que, frente ao aumento da repressão, dos exílios forçados, das prisões arbitrárias e da ação censória, reforçados pela decretação do Ato Institucional n.º 5 (1968), os festivais, que haviam surgido predominantemente como reveladores das canções de protesto, viram-se subtraídos, do posto de ponto de encontro, e se transformaram em vitrines para novas contratações da indústria fonográfica. Nessas circunstâncias, a MPB consolida sua popularidade (apesar das reminiscências de uma cultura política de tendência nacional popular) com a cultura do consumo.
Vale lembrar ainda que os caminhos e descaminhos da MPB têm sido interpretados segundo diferentes vertentes explicativas, informadas pelas teses da expropriação e apropriação cultural, da resistência política e cooptação pelo mercado. Aliás, essa reflexão é minuciosamente desenvolvida por Marcos Eugênio Napolitano, que detecta nesse tipo de abordagem a percepção inadequada de uma linha evolutiva da MPB, cujo marco sinalizador estaria centrado na eclosão da Bossa Nova (1959) e cujo marco renovador se encontraria no Tropicalismo – movimento que supostamente estaria articulando a crítica cultural e comportamental, e ainda, rompendo com os limites do mercado, embora estivesse inserido nele (NAPOLITANO, 2002).
Se tomarmos como referência a tese centrada na idéia de expropriação, a MPB apareceria associada ao gênero e ao consumo das classes médias intelectualizadas, mas originalmente seria considerada resultante de um processo de “apropriação” cultural sofrido pelas classes populares. Nessa linha de argumentação, análises críticas defendem a idéia de que a MPB teria diluído a cultura popular, transformando-a numa cultura de massa indiferenciada e consumista. Outros estudos, porém, tendem a considerar que a MPB teria rompido as barreiras culturais da apartheid social, promovendo maior aproximação entre negros, brancos e mestiços (TINHORÃO, 1991).
A articulação entre a música popular brasileira e a resistência político-ideológica ao regime militar também tem despontado nos discursos da mídia e na memória social do período. Gilberto Vasconcelos (1977), por exemplo, assinala a sólida expressão da resistência política marcante nos festivais da TV e propõe que o Tropicalismo teria contribuído para elevar o nível de politização das canções e implodir a esquemática ideologia de protesto das canções voltadas para o nacionalismo. Nesse horizonte, também José Miguel Wisnik (1987) ressalta não apenas a resistência do conteúdo literário do movimento, mas especialmente as características libertárias e catárticas da MPB do período.
Num campo interpretativo diverso dos dois anteriormente apontados, destacam-se as formulações assentadas no estudo da diluição das intenções críticas da MPB e sua conversão ou enquadramento nos moldes da cultura industrializada, conseqüentemente, circunscrita às noções de conformismo e alienação. Contudo, cabe lembrar que a música, como outras formas de comunicação e arte, não se circunscreve aos desejos de seu produtor ou às motivações político-sociais de sua época, mas insere-se no âmbito de um sistema muito mais complexo. Seu projeto é mais amplo: se propõe a redimensionar temas, formas e posturas estéticas. A música se revela na sociedade capitalista não apenas como mero produto de consumo, mas como expressão de contradições sociais, objetivos políticos ideológicos diferenciados e utopias. Marcondes Filho (1982) mostra-se contundente ao afirmar que toda forma de arte e de política cultural manifesta um dado posicionamento humano perante o mundo.
Nesses termos, a análise da produção musical exige acuidade do pesquisador para que este não venha a incorrer no erro de reduzi-la à estandardização, tampouco a elevar os compositores e interpretes à condição de mitos. A canção deve ser observada enquanto objeto estético, evitando-se uma articulação automática entre o contexto histórico e o objeto artístico. A chamada história cultural nos oferece um instrumental significativo para o estudo da música, seja como representação de uma época ou de sujeitos históricos, seja como paradigma de uma linguagem ou de uma forma discursiva que envolve ritmos, poética e sonoridades.
Não se pode ignorar, no entanto, que a indústria fonográfica freqüentemente privilegia os índices de vendagem e produzem fórmulas de sucesso rápido, substituindo os cantores contratados por outros potencialmente capazes de elevar as taxas de lucros das produtoras. Não obstante, se faz necessário observar que, por mais intensa que venha a ser a imposição da padronização do gosto musical pela indústria da cultura, a uniformidade dificilmente pode ser alcançada. O historiador Michel de Certeau nos lembra que, apesar desse apelo, a popularização da manipulação de equipamentos de imagem e de som possibilita a subversão do produto acabado (1996, p. 338-339). Essa produção é passível de bricolagens, de um arranjo diferenciado capaz de lhe atribuir um novo significado (BOSI, 1995, p.17-18).
Em síntese, se durante a vigência do regime militar no Brasil a música foi utilizada pelos governantes como um meio de convencimento e ufanismo, dialeticamente também foi veiculada como contradiscurso, independente da tentativa da censura em banir a crítica social da produção artística. Se as canções nacionalistas revelam a sonoridade de uma ditadura e de segmentos sociais que buscavam legitimar seu poder na sociedade brasileira, também as canções de protesto propunham um país novo, a revisão das relações entre a pátria e o cidadão. Portanto, uma das maiores virtudes de A Era dos Festivais – Uma Parábola talvez se assente no fato de analisar o contexto da produção musical naqueles anos, bem como os meandros de uma conjuntura favorável à gestão de um veículo diferenciado capaz de movimentar o nascente mercado fonográfico no Brasil.
A despeito das observações acima esboçadas, não podemos deixar de reconhecer a contribuição do volume para o estudo da MPB, tampouco ignorar que nos últimos anos Zuza Homem de Mello, publicou, na cidade de São Paulo, outros dois volumes igualmente significativos sobre a música brasileira, a saber: A Canção no Tempo, em co-autoria com Jairo Severiano, pela Editoras 34, em 1997, que versa sobre a produção musical brasileira ao longo do século XX, e o livro João Gilberto, lançado pela Publifolha, em 2001, que discute a trajetória da bossa-nova, tomando como referência a obra e a performance de João Gilberto.
Referências
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1995.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiros: Vozes, 1996.
CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In: Estudos avançados. São Paulo: EDUSP, 1991, n.11,jan-abr/1991.
MARCONDES FILHO, Ciro. “O Estado e a ação cultural: a imponente linguagem ideológica da música”. In: Caderno de Música. São Paulo: ECAUSP, n. 10 – set./1982.
NAPOLITANO, Marcos E. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume – Fapesp, 2001.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lombada. São Paulo: Art Editora, 1991.
VASCONCELOS, G. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977.
WISNIKY, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Editora Ática, 1987.
AGRADECIMENTOS
Sou grata aos comentários críticos e constantes incentivos de Neide Lebrero Munhoz e Luís Augusto de Oliveira.
Resenhistas
Sandra de Cássia A Pelegrini – Doutora em História Social pela FFLCH- Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de História, da Universidade Estadual de Maringá/Pr. E-mail: spelegrini@wnet.com.br
Luis Augusto de Oliveira – Pesquisador Independente – São Paulo. E-mail: nlmunhoz@hotmail.com
Referências desta Resenha
MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais – Uma Parábola. São Paulo: Editora 34, 2003. Resenha de: PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo; OLIVEIRA, Luis Augusto de. Diálogos. Maringá, v.7, n.1, 283-289, 2003. Acessar publicação original [DR]
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