A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil | Gilberto Hochman
As temáticas relacionadas ao campo da saúde pública e da medicina têm merecido, nas últimas duas décadas, crescente atenção de historiadores e sociólogos brasileiros. Este fenômeno, aliás, não é circunscrito ao nosso país: trata-se de uma tendência internacional. De fato, nos Estados Unidos a tradição de utilizar abordagens das ciências humanas no estudo da medicina e saúde pública é mais antiga. Rats, lice and history, por exemplo, uma reflexão sobre o impacto das epidemias nas sociedades humanas, foi escrito em 1934 pelo bacteriologista Hans Zinsser (1984), que se dizia impressionado com a “negligência quase completa de historiadores e sociólogos” no estudo do papel desempenhado pelas epidemias no “destino das nações”. Se Zinsser foi um solitário na década de 1930, na de 1950 já existia uma tradição de estudos neste campo, onde se destacavam homens como George Rosen, com seu clássico A history of public health, de 1958, e Erwin Ackerknectht, e seu A short history of medicine, de 1955.
No Brasil, o estudo das temáticas associadas à saúde foi, por muito tempo, marcado por uma tradição diversa, originária dos brilhantes trabalhos de Michel Foucault. Tornaram-se referências fundamentais, nesta linha, os trabalhos de Machado et alii (1978) e Costa (1979). Entretanto, podemos observar uma tendência de análise que se distancia da interpretação foucaultiana, por muito tempo hegemônica no Brasil. Neste caso está, por exemplo, Cidade febril de Sidney Chalhoub, uma abordagem de história social onde cortiços, epidemias de febre amarela e o serviço de vacinação são pontos de partida para o estudo das políticas sanitárias implementadas no Rio de Janeiro do século XIX. Incluído nesta tendência, mas seguindo um caminho diverso daquele traçado por Chalhoub está A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil, de Gilberto Hochman.
No livro, o autor, que é pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e professor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), da mesma instituição, analisa “a formação de políticas públicas e nacionais de saúde” (p. 15), tendo como foco principal as políticas de saneamento rural durante a chamada era do saneamento, ou seja, as duas últimas décadas da República Velha, quando surgiu o movimento pelo saneamento dos sertões. O corte cronológico é justificado porque, neste período, o tema da saúde pública — fortalecido pelo nacionalismo da campanha do saneamento rural — tornou-se prioridade na agenda nacional. O livro tem como base a tese de doutorado em ciência política, defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e laureada com o prêmio José Albertino Rodrigues de 1997.
Hochman toma como ponto de partida a concepção de que, para a operacionalização das políticas de saúde, foi necessário ocorrer um ponto de encontro ideal entre as idéias e os interesses materiais dos atores envolvidos na questão, associados com as condições que permitiram a efetivação da coletivização da saúde. Ou seja, Hochman busca a origem das políticas sanitárias no ponto ótimo entre ação consciente dos atores sociais, seus interesses materiais (não exclusivamente econômicos), e as condições históricas que emolduraram a decisão de transferir, para o Estado, a responsabilidade sobre a saúde.
Um dos maiores méritos do livro está no entrelaçamento realizado entre as questões levantadas pelo autor e o diálogo travado com as fontes. A documentação utilizada é múltipla, onde se destacam legislação e debates parlamentares, periódicos, relatórios e mensagens, além dos panfletos produzidos pelo movimento sanitarista. A lógica do texto e a narrativa histórica que sustenta as hipóteses são construídas a partir de quatro questões, que permanentemente voltam ao leitor, num movimento de constante diálogo com as fontes e a bibliografia. As questões são: quando e por que a saúde se torna objeto de interesse público; quais as condições que tornaram possível transferir as responsabilidades sobre a saúde para o Estado; quais as relações entre conteúdo das políticas de saúde e o arcabouço legal e institucional existente para sua efetivação; e, finalmente, qual a relação entre a instituição de políticas nacionais de saúde e a expansão do Estado no Brasil.
Ao responder a estas questões, Hochman empenha-se em desfazer certas versões correntes na bibliografia e dá uma contribuição fundamental para construção de uma nova interpretação sobre a história das políticas de saúde e também sobre a história do Estado brasileiro. Inspirado nos trabalhos de Reis (1979) e Castro Santos (1987), o autor vai mostrar que a República Velha não foi um período de interregno da autoridade do Estado nacional, e que as políticas de saúde pública, em crescente ascensão a partir da década de 1910, não foram mero “reflexo” do crescimento do poder do Estado, porém um instrumento de expansão deste poder na sociedade e no território brasileiro. Ao questionar versões economicistas, Hochman convence o leitor de que as políticas sanitárias não foram uma “inevitabilidade histórica” (p. 23) decorrentes do desenvolvimento do capitalismo. A decisão de promover a saúde pública foi uma opção consciente, pontilhada de cálculos e barganhas políticas entre os diversos atores sociais envolvidos nesta questão: as elites políticas, o Estado e o movimento sanitarista, não sendo, portanto, fruto de um processo decorrente de condições abstratas e intangíveis.
Isto não significa, entretanto, que os atores sociais terão sempre absoluto controle sobre o produto de suas decisões. A médio e longo prazo, a estratégia destas elites, ao conciliar o projeto centralizante do movimento sanitarista com suas prerrogativas de autonomia, foi além do desenho originalmente traçado. Resultado: as políticas de saúde converteram-se num dos instrumentos mais significativos de fortalecimento do poder da União sobre os estados, mesmo antes de 1930.
Hochman buscou seu modelo teórico em De Swaan (1990), que propõe um esquema interpretativo da construção do welfare state. De Swaan usa o conceito de “configuração”, definido como um “padrão estruturado e mutante de dependências recíprocas entre os seres humanos” (p. 24), para pensar as sociedades complexas. O conceito de configuração evita o antagonismo indivíduos versus sociedade, trabalhando com a noção de “interdependência” entre indivíduos, grupos e instituições. A interdependência seria a condição fundamental para a construção da identidade de uma configuração. Nesta perspectiva, as “configurações complexas” — como as sociedades capitalistas modernas — criam interdependências também complexas e geram conseqüências que afetam todos os seus membros, sejam eles indivíduos, grupos ou instituições. A resposta aos problemas gerados pela interdependência humana foi dada pelo Estado nacional através das políticas sociais. Sendo os problemas sanitários, como as epidemias, um dos “efeitos indesejados” da interdependência na sociedade moderna, o Estado criou as políticas de saúde para resolver os desafios colocados pela interdependência.
Evidentemente, as coisas não se passam de forma tão simplista quanto os limites desta resenha podem comportar. Apenas para lembrar que os resultados gerados pela dependência mútua não são mecânicos nem inevitáveis, é bom frisar que a decisão de estabelecer políticas públicas, sejam elas de saúde ou de outra natureza, passa por barganhas e lutas políticas, e pelo cálculo de custos/benefícios que os envolvidos na questão, invariavelmente, irão produzir. No caso do Brasil da era do saneamento, propagandeou-se à opinião pública nacional os custos — materiais, humanos, políticos e morais — provocados pelos efeitos negativos da interdependência, no caso, as ‘doenças que pegam’. A frase emblemática que simboliza o movimento, “o Brasil é um imenso hospital”, deu o tom dramático dos efeitos da interdependência sanitária.
Convencidas pelo movimento sanitarista, as elites políticas conscientizaram-se da interdependência que as atava aos outros membros da comunidade nacional e dos perigos representados pelas doenças que pegam. Entretanto, as oligarquias não se mostravam muito receptivas às receitas propostas pelos sanitaristas e seus aliados da Liga Pró-Saneamento do Brasil: a criação do Ministério da Saúde Pública, ou seja, a intervenção do poder federal nos estados em matéria sanitária. Um grande debate político-jurídico se instalou entre atores envolvidos nesta questão. Todos fizeram seus cálculos e barganhas. O resultado foi um compromisso que se manifesta nos decretos de 1918 e 1919, “que criavam e regulamentavam as ações federais de saneamento e profilaxia rural” (p. 170), e que foram ampliados, em 1920, com a instalação do Departamento Nacional de Saúde Pública. Estes marcos jurídicos e institucionais delimitavam a grande coalisão entre movimento sanitarista, elites políticas regionais e governo federal, para a reforma sanitária. Esta estabelecia uma “adesão voluntária” dos estados às políticas nacionais de saúde, através de convênios realizados com o governo federal.
A adesão dos estados a estes convênios foi num crescendo, ampliando a ação do governo federal sobre a sociedade e o território nacional, e constituindo-se num instrumento, ainda que não planejado, de aumento do poder do Estado. Isto porque a implementação da política sanitária, através de uma rede nacional de instituições, burocratas e regulamentos, adquiriu uma dinâmica própria e uma autonomia cada vez maior ante os interesses iniciais que motivaram sua criação. Neste processo, espaços vazios e espaços novos foram preenchidos pelo poder público, cada vez mais fortalecido.
O caso excepcional de São Paulo apenas confirma a regra. Como São Paulo já havia desenvolvido saúde pública antes e de forma independente do governo federal, as elites políticas paulistas participariam da coalizão reformista, desde que a reforma sanitária fosse voluntária e não compulsória. Dessa forma, São Paulo minimizaria os custos da interdependência sanitária em relação aos outros estados, sem arcar com o ônus da perda de autonomia política. Como aos estados da federação faltavam recursos financeiros e técnicos, na realidade, não podiam ter muitas pretensões autonomistas em matéria sanitária. O resultado foi São Paulo ter participado de um acordo que se mostrou compulsório para todos os demais estados e voluntário apenas para a “locomotiva” da federação.
Ao analisar as políticas de saúde durante a era do saneamento, Gilberto Hochman foi capaz de fazer um movimento inverso do tradicionalmente realizado por estudiosos da saúde pública. A maioria dos trabalhos explica a política de saneamento a partir de uma moldura histórica maior: o desenvolvimento do capitalismo ou a centralização do Estado, por exemplo. Hochman faz o contrário e mostra como é possível entender a história do Estado e da sociedade brasileira a partir do estudo da questão sanitária. Nesse sentido, A era do saneamento pode ser considerado referência obrigatória para os interessados em refletir sobre história e saúde no Brasil.
Referências
CASTRO SANTOS, Luis A. de 1987 Power, ideology and public health in Brazil (1889-1930). Tese de doutoramento, Harvard University.
CHALHOUB, Sidney 1996 Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras.
DE SWAAN, Abraam 1990 In care of the state, health care, education and welfare in Europe in the modern era. Cambridge, Polity Press.
REIS, Elisa 1979 The agrarian roots of authoritariam modernization in Brazil, 1880-1930. Tese de doutoramento, Massachussetts Institute of Technology.
ROSEN, George 1996 Uma história da saúde pública. São Paulo, Editora da Unesp.
ZINSSER, Hans 1984 Rats, lice and history. Boston, Little Brown and Company.
Resenhista
André Campos – Professor de história nas universidades Federal Fluminense (UFF) e do Estado do Rio de Janeiro (ufrj). E-mail: camdrepo@cruiser.com.br
Referências desta Resenha
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no BrasilSão Paulo: Hucitec; Anpocs, 1998. Resenha de: CAMPOS, André. Construindo a saúde pública e o Estado nacional na era do saneamento. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.1, mar./jun. 1999. Acessar publicação original [DR]