Em 1994, Georges Balandier lançou um livro intitulado: O Dédalo. Nele o autor argumentava a eficácia da metáfora sobre o labirinto, o minotauro e o fio de Ariadne para compreendermos nossa própria contemporaneidade, e podermos sair adequadamente do século XX, para entrarmos no XXI.
Do labirinto de que nos fala o mito (em que Teseu recebe de Ariadne um fio que o orienta pelo labirinto, onde encontrou e matou o minotauro) aos labirintos da realidade, que nos conduz a História e a sua escrita (em função da condição sempre fragmentária dos documentos e dos relatos), as distâncias (a)parecem, até certo ponto, intransponíveis para se determinar o ‘princípio de realidade’ que deu base e originou cada uma daquelas diferentes narrativas (míticas e históricas). Mas essa condição de distanciamento entre o mito e a história talvez seja apenas aparente. É o que indicou o próprio Balandier, ao avaliar o processo de elaboração e manutenção de um mito no tempo, e interpretar as mudanças drásticas, rápidas e sutis das sociedades (em especial, as contemporâneas), que lhe foi ensejada por meio da análise do mito do labirinto, não deixando de demonstrar as relações e as trocas complexas que se estabeleceriam entre o mito e a história ao longo do tempo.
Sem ser indiferente a essa questão, Carlo Ginzburg (2007), em 2005, com seu livro O fio e os rastros, pautou-se no discurso do mito do labirinto, ao apreender a rica metáfora do “fio do relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade” (2007, p. 7), e sua relação com os infindáveis rastros, que as sociedades do passado nos legam em formas (definidas como) documentais. Alguns anos depois, Joshua Cooper Ramo (2010) definiu o período contemporâneo, como a era do inconcebível, em função da condição de constante imprevisibilidade sobre que tipos de mudanças podem ocorrer na cultura, na política, na economia, na sociedade, na natureza, ao mesmo tempo em que estas mesmas transformações não nos têm surpreendido mais. E, justamente por isso, a ‘teoria do caos’ pode contribuir para que possamos nos preparar para viver nesse novo ambiente sociocultural.
Para ele, o que aproximaria profissionais de diferentes áreas e lugares de atuação no mundo de hoje seriam suas capacidades de formar um pensamento rápido, inovador e adaptável as circunstâncias de um ambiente imprevisível, onde o contexto de incertezas extremas torna caóticas todos os tipos de previsões, visto que os problemas se configuram, cada vez mais, mundializados, e os riscos advêm de setores não estatais, cujos grupos agem de forma dinâmica. Nesse aspecto, a teoria do caos poderia nos auxiliar a pensar estruturas hoje defasadas, cujos fundamentos tradicionais ainda estariam alicerçando as análises e prognósticos políticos, econômicos e sociais.
Mas antes de “dar esse salto para um novo modelo, desejo voltar à física fundamental do mundo” (p. 29), na qual persistiriam certas orientações baseadas em paradigmas que não são mais capazes de fornecer alternativas para nossa época. A começar pelas teorias da velha física que prescreviam um mundo ordenado e racionalmente orientado. Para ele, ao contrário dessas perspectivas, a “genialidade de Morgenthau [ao analisar o contexto em que se deram as reações de Metternich contra Napoleão em 1813] consistiu em elaborar toda uma física dos negócios mundiais com base na ideia de que o poder atuava segundo […] modos diretos e previsíveis” (p. 43). Além do mais:
Essa visão da cena mundial como uma espécie de oficina foi revolucionária. Foi um ataque contra escolas de pensamento antigas e persistentes que viam o progresso da história como resultado de forças divinas, por exemplo, ou que percebiam na história uma inelutável atuação de alguma magia ideológica, fosse ela o direito natural do fascismo nazista de governar o planeta ou o determinismo econômico do marxismo. Foi também uma resposta às ideias de homens como Woodrow Wilson, que acreditava que com as instituições certas, como a Liga das Nações, seria possível plasmar uma ordem mundial estável e pacífica que apelasse para os instintos superiores dos homens. Morgenthau rejeitava essas concepções como fantasias. Ele concebia sua ordem mundial com base naquele velho raciocínio de refugiado segundo o qual o poder representa sobrevivência e a violência é inevitável. No fim das contas, dizia, tanto no caso de homens quanto de nações, só um instinto importava: o impulso de dominar os outros (p. 44).
Assim, teria criado as condições básicas necessárias para a formação das relações internacionais como uma espécie de ciência. Contudo, mesmo sua percepção do mundo seria limitada para as transformações rápidas e drásticas das últimas décadas. O que seria necessário, além de ver o mundo “como um sistema incessantemente complexo e adaptativo, [o que já] exige uma revolução” (p. 53) em nossas formas de agir e pensar, assim como de uma total reestruturação dos modelos de análise da política, da economia, da física, da sociedade e da cultura, é formarmos instintos adaptativos mais dinâmicos e aptos as rápidas e inesperadas mudanças do mundo em que vivemos. Tal atitude exigiria que víssemos o mundo como um conjunto de ações e reações ‘não lineares’, “exatamente porque sua dinâmica interna perturba continuamente a ideia de que se pode esperar que uma dada ação produza sempre a mesma reação” (p. 63). Isso valeria tanto para as questões mais simples do cotidiano, quanto as mais complexas, como as guerras, o fim de impérios e as crises econômicas mundiais. Mas se todo tipo de estabilidade é passageira, se todo tipo de raciocínio não é durável, se todas as estratégias são limitadas a determinados contextos, como seria possível alcançar uma ‘segurança profunda’?
A segunda parte de seu texto detém-se justamente nesse tópico. De pequenas empresas a transnacionais multimilionárias, de generais e milionários aos limites da persuasão, até a revolução em cada um de nós, detalha um conjunto de circunstâncias em que situações inesperadas, conseqüências inconcebíveis de início, tornar-se-iam a regra, porque a regra estaria justamente no imprevisível, no não estrutural, no circunstancial, mas, ainda assim, permeado por uma interdependência com os acontecimentos e as mudanças globais. Nesse contexto, “mesmo que um mundo interligado torne a análise mais difícil, não a torna impossível”. Para isso é necessário “dominar a arte de analisar em profundidade”, e isso não quer dizer que “devemos ignorar como as coisas são, mas que o mais importante é olhar de tal forma que víssemos em que elas se transformariam: pilhas de areia, nossos filhos, a própria física, a ordem mundial” (p. 189). Compreender essas “conexões, por mais perigosas [e arredias] que sejam, também oferecem a melhor forma possível de transmitir mudanças na direção de uma decência radical”; e o que “parece representar um perigo fatal, pode ser a chave de nossa salvação” (p. 223), nesse mundo caótico, em que tanto as representações sobre o meio, como as medidas de salvaguardá-los estão sendo inúteis, por que alocaríamos a responsabilidade de nossas ações para os outros, quando deveríamos ser os ‘sujeitos ativos’. Assim, precisamos ao mesmo tempo formar um “instinto de generosidade e decoro” com o ‘outro’, quanto “de pensar com base em efeitos” possíveis e ocasionados em função de certas ações diretas, em curto prazo, e indiretas, a médio e longo prazo, e, por isso, quase sempre imperceptíveis.
Em certas ocasiões, nossos “erros estão embutidos nas instituições que desejamos que sejam eficazes, que realizem o trabalho de ajuste de um sistema imunológico em tempo real” (p. 282), mas que, de fato, não o fazem, e nossa atitude de impessoalidade deve ser convertida num tipo de ação direta e responsável. Nesse sentido, a mudança começa em cada um e, aos poucos, se dirige a todos nós, pois, ela constitui “ao mesmo tempo, causa para muita esperança e para muito medo”, por que estamos “vivendo um daqueles momentos em que a história vai mexer com a vida de cada um de nós”. Contudo, “e isso é inconcebível se usarmos qualquer uma das formas antigas de sonhar com nossas vidas”, para alcançar a meta de que “agora também podemos mudar a história” (p. 290), antes temos que ser capazes de mudar nossas formas de agir e pensar, porque “nossas decisões atuais, que tomarmos hoje, num momento em que a história mexe com cada um de nós, afetará o futuro de todos” (p. 292).
Portanto, ao separarmos adequadamente nosso lixo, respeitarmos ao próximo, participarmos ativamente dos processos de tomada de decisão coletiva nos âmbitos sociais e políticos, sermos capazes de alterar antigos modelos de pensamento, enfim, das atitudes mais simples as mais complexas, seríamos, como menciona o autor, como as borboletas que com o bater de suas asas causariam verdadeiros tufões do outro lado do mundo. Por que não existe revolução coletiva, sem que antes cada um de nós se revolucione. Essa é a maior expectativa do texto: fazer com que seus leitores mudem suas formas de agir e pensar, para estarem preparados a essa ‘era do inconcebível’, onde os sistemas ‘não lineares’, o aparentemente aleatório, é a regra. Visto assim o conjunto do texto, ele se apresenta como uma mensagem otimista, com vistas a criar novas expectativas sobre a maneira de como vemos o mundo e agimos diante dele. Se em vários momentos seus princípios parecem utópicos, seus argumentos se apresentam meio frágeis, sua análise do contexto é parcial, seus exemplos são pouco convincentes, nem por isso deixaria de ser uma interpretação realista e estratégica da conformação das relações internacionais no mundo contemporâneo, situando de que maneira cada um de nós estaria posicionado neste imprevisível tabuleiro de xadrez global. Novamente é necessário que tenhamos a capacidade de agir, como imaginaram Balandier e Ginzburg, e agora Ramo, sob novas perspectivas, e saibamos como Teseu seguir as trilhas deixadas pelo fio de Ariadne para nos orientar pelo labirinto (do mundo, nessa era de coisas, formas e questões até então inconcebíveis), e encontrar e matar o minotauro, que representaria nossos preconceitos, impessoalidades, falta de ação, e formas de agir e pensar totalmente ultrapassadas.
Referências
BALANDIER, G. O Dédalo: para sair do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
GINZBURG, C. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Resenhista
Diogo da Silva Roiz – Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS e Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
AMO, J. C. A era do inconcebível: por que a atual desordem no mundo não deixa de nos surpreender e o que podemos fazer. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ Diogo da Silva. Meridiano 47, v.12, n.126, p.54-56, jul./ago. 2011. Acessar publicação original [DR]
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