PEREIRA, Bernardo Futscher. A Diplomacia do Estado Novo: Crepúsculo do Colonialismo (1949-1961). Lisboa: D. Quixote, 2017, 312 pp. Resenha de: REIS, Bruno Cardoso. Ler História, v.73, p. 262-266, 2018.
1 Bernardo Futscher Pereira é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Columbia, foi jornalista antes de ingressar na carreira diplomática, foi embaixador na Irlanda de 2012 até 2017, período durante o qual redigiu esta obra. Embora eu resista à ideia de reduzir uma obra às circunstâncias ou a uma das identidades de quem a escreve, parecem ser de notar estes dados biográficos, pois poderão ajudar a perceber algumas das suas opções de partida. A obra assume-se, como seria de esperar, como a continuação, em termos cronológicos e de abordagem, do livro anterior do autor sobre A Diplomacia de Salazar, 1932-1949 (Lisboa: D. Quixote, 2012). Este é, portanto, “um livro essencialmente de história diplomática” o qual “procura sintetizar, em registo narrativo, os lances essenciais da política externa portuguesa, situando-os no contexto internacional da época”, oferecendo numa linguagem acessível uma visão geral da forma como a elite governativa e diplomática portuguesa foi gerindo os principais desafios da política externa.
2 Isso fará sentido tendo em conta as tendências atuais na História? A resposta é sim, a não ser que se queira impor (à maneira do Estado Novo) uma determinada agenda à História. Se o que se pretende é alargar os horizontes da disciplina então trata-se de adicionar novas dimensões às tradicionalmente dominantes, não de eliminar estas últimas. É tão legítima e válida a história “a partir de baixo” como “a partir de cima”, tudo depende das perguntas a que se quer responder. Independentemente das modas, a “alta política” e a diplomacia continuam a ser altamente relevantes. Veja-se o enorme impacto na vida de todos os portugueses, angolanos, moçambicanos, guineenses, e no curso da história nacional e global, das guerras coloniais tardias do Estado Novo. Guerras que, como este livro mostra, foram o pesado preço a pagar pela política seguida por Salazar na defesa do império ultramarino português.
3 Futscher Pereira também deixa claro que esta obra “baseia-se essencialmente em fontes secundárias e em fontes primárias publicadas”. É o normal em obras de síntese deste tipo, que quando muito complementam a sua síntese de obras e fontes publicadas com pesquisa de arquivo sobre alguns temas não suficientemente tratados na literatura existente. Foi o que Futscher Pereira fez, em especial sobre as “provações de Portugal nas Nações Unidas”, a que dá justificado destaque. Significa isto que esta obra se destina apenas ao público em geral, e não tem especial interesse para historiadores focados em análises originais? Como iremos procurar mostrar, esta é não apenas uma obra de referência útil, desde logo para o ensino destes temas, ela tem também elementos novos que merecem ser debatidos no quadro da agenda de investigação da história da política externa portuguesa neste período. É uma obra de divulgação, mas não é simplesmente descritiva.
4 Futscher Pereira avança efetivamente com uma interpretação geral deste período da política externa do Estado Novo. A tese central do livro, que justifica o seu subtítulo, é a de que já neste período a Guerra Fria europeia foi secundária, e o anticomunismo foi instrumental na política externa de Salazar. O foco principal de atenção ao longo da década de 1950, a prioridade da ação externa do regime salazarista, era já, defende o autor, a defesa das colónias, em particular a mais diretamente ameaçada neste período – o Estado Português da Índia. O principal alvo da política externa de Salazar era já o anticolonialismo militante da União Indiana, muito ativo nos fora multilaterais da ONU. Isso importava mais do que a NATO, a defesa face à ameaça soviética, ou mesmo a relação bilateral com os EUA, todas elas, segundo esta obra, estavam subordinadas à prioridade máxima que era a defesa da dimensão ultramarina, colonial de Portugal. Esta é uma ideia fundamental a que voltaremos no final desta recensão.
5 Como avaliar genericamente esta primeira história geral da diplomacia do Estado Novo por um só autor? Desde logo, notando que esta é uma obra bem escrita, numa linguagem acessível, adequada ao seu objetivo de fazer divulgação de qualidade. Tem uma estrutura clara. Embora nos pareça questionável a opção por os títulos dos capítulos serem um par de datas. Os títulos temáticos dos subcapítulos tornam, apesar disso, relativamente fácil navegar na obra; dão também uma ideia de algo em que os praticantes da política externa insistem: a dificuldade de terem de lidar com problemas urgentes e inesperados em partes muito diversas do mundo simultaneamente ou em rápida sucessão. Mas isso não deixa de afetar um pouco a coerência da exposição e da análise. Depois, deve ser sublinhado que este tipo síntese, um tour d’horizon por um só autor, é uma novidade. Existem outras sínteses da história da política externa do regime de Salazar, mas não por um só autor e como parte de obras mais genéricas.1 Além disso, há que destacar que a obra tem uma base empírica e bibliográfica sólida. Como já vimos anteriormente, o livro resulta da consulta de fontes publicadas, mas também de alguma pesquisa original de fontes de arquivo. De notar também como ponto positivo que o autor utiliza inclusive algumas teses de doutoramento ainda inéditas sobre temas relevantes.2
6 Antes de terminarmos destacaríamos duas interpretações mais específicas desta obra, uma que nos parece particularmente pertinente, e a outra que nos suscita dúvidas. Sendo que, no entanto, qualquer delas nos parecem ser contribuições pertinentes para o debate sobre a política externa do Estado Novo. Quanto à primeira, um ponto forte desta obra é efetivamente a análise dos principais atores da política externa portuguesa. Poucos discutirão a afirmação de Futscher Pereira de que embora Salazar deixe de ser formalmente Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1947, continua a ser a figura central da política externa portuguesa. Apesar da mudança de título deste volume para o anterior, a Diplomacia do Estado Novo, é, no fundo, mais um volume sobre a Diplomacia de Salazar. O peso de Salazar é especialmente marcante quando o titular da pasta é fraco, como é o caso de Caeiro da Matta, entre 1947 e 1950. Mas Salazar continua a pesar na diplomacia portuguesa mesmo com os mais sólidos Paulo da Cunha, entre 1950 e 1958 (sendo que este terá ficado diminuído por razões de saúde a meio do seu consulado), ou Marcelo Mathias, entre 1958 e 1961.
7 Salazar nunca abdicou de escolher os principais embaixadores e de comunicar diretamente com eles. Vários deles são ainda, neste período, escolhas pessoais e políticas do ditador vindos de fora da carreira. É nova, no entanto, a tese de Futscher Pereira de que entre os diplomatas “no estrangeiro” neste período “o papel de maior destaque coube a Vasco Garin”, pois que “como embaixador em Nova Deli e, de seguida, em Nova Iorque, foi ele que, na primeira linha, sofreu o embate dos conflitos diplomáticos” mais importantes. Este parece-nos um ponto válido. Garin é, claramente, uma figura a merecer um bom estudo de fundo. Também de notar, por ser rara a valorização da história das informações e das operações especiais neste tipo de obra, é a atenção de Futscher Pereira à figura menos ortodoxa de Jorge Jardim, que por várias vezes foi os olhos e os ouvidos de Salazar em zonas de crise. O real papel de Jardim pode ser difícil de avaliar com rigor, mas esta dimensão de diplomacia paralela e recolha de informações secretas merece atenção.
8 Outro ponto forte na análise por Futscher Pereira dos atores da política externa é o destaque dado Delgado, a Henrique Galvão e à ação internacional da oposição. Uma oposição que desenvolve, pela primeira vez, uma estratégia internacional paradiplomática e mediática eficaz que cria dificuldades sérias ao regime. Teria sido interessante que o autor tivesse dado mais atenção ao papel da rede diplomática na vigilância e gestão da presença internacional da oposição, assim como ao papel do PCP e da sua relação especial com a URSS. A acção internacional dos movimentos independentistas africanos é referido pelo autor – sobretudo a presença do líder da UPA em Nova Iorque, aquando do início do levantamento armado no norte de Angola, feita precisamente para coincidir com a discussão da situação angolana no Conselho de Segurança da ONU.
9 Um ponto fraco da análise do autor, do meu ponto de vista, é a apreciação repetida ao longo da obra de que as chefias militares leais ao general Botelho Moniz – como Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e, depois, como ministro da Defesa entre 1958 e 1961 – tinham uma boa visão da política internacional e, por isso, defenderam uma boa estratégia militar e política de resposta ao desafio independentista africano, bloqueada pela austeridade cega de Salazar. Ora, como o autor bem assinala, Salazar frequentemente mostrou nas suas comunicações privadas temor pelo elevado preço que seria preciso pagar internacionalmente para o Estado Novo manter a África portuguesa, em contraste com a confiante retórica pública da sua propaganda. Um temor que aumentou com as conhecidas reservas relativamente ao colonialismo do jovem senador John Kennedy, eleito presidente dos EUA em 1960. A realidade é complexa e parece-me claro que Salazar pode ter estado errado na sua opção de política externa para Portugal, mas esteve certo na sua análise da política internacional. Já os militares em torno de Botelho Moniz, a meu ver, estão menos unidos quanto ao que fazer antes e depois do início da luta armada em Angola; estão menos certos quanto à análise que fazem do contexto internacional; e estão claramente errados quanto às possibilidades de uma mudança limitada da política colonial portuguesa ser viável a prazo ou ser recompensada internacionalmente. Moniz e os seus próximos aparentemente acreditavam que Portugal, sem Salazar, manteria as possessões coloniais durante pelo menos uma década e conseguiria consolidar uma federação lusófona depois disso. Estas chefias militares também me parecem sobretudo desejosas de defender o interesse corporativo das Forças Armadas em obter mais recursos, em vez de, como pretendia Salazar, com recursos semelhantes mudarem radicalmente de prioridades e passarem de uma guerra convencional na Europa para uma guerra de guerrilha em África.
10 Para terminar voltamos à tese central desta obra. Afirma o autor: “a disputa com a União Indiana acerca de Goa, Damão e Diu foi a questão principal que ocupou a diplomacia portuguesa nestes anos.” Afirma também que o comunismo no quadro da Guerra Fria é uma ameaça meramente instrumental para a diplomacia de Salazar. Discordo desta última tese. Creio que se trata mais propriamente de um caso da diplomacia de Salazar acreditar na sua própria propaganda. Havia, efetivamente, a ideia na elite salazarista de que muitos destes movimentos anticoloniais eram hostis ao bloco ocidental e estavam dispostos a aliar-se ao bloco soviético, fossem ou não propriamente comunistas. O próprio Futscher Pereira nota de forma pertinente que, em plena Guerra Fria, “a ameaça comunista era o fator decisivo na política externa dos EUA e da Grã-Bretanha, as duas grandes potências ocidentais e atlânticas que eram, também, os principais aliados de Portugal”, acrescentando que “durante a quase totalidade deste período estiveram no poder em Washington e em Londres governos de direita, que olhavam para o Estado Novo com complacência”. Também nos parece apressado dar por adquirido “o descrédito completo das doutrinas raciais” no bloco ocidental ou, mesmo, no soviético. Ainda havia muito racismo, embora de uma variante mais paternalista. Isto não significa que discordemos do autor de que se deve dar muito maior peso à questão colonial na diplomacia de Salazar logo na década de 1950, e de que este facto tem sido algo descurado em favor de uma maior atenção dada à Guerra Fria. Parece-nos, porém, que ambos os contextos estão intimamente ligados, mesmo que seja necessário repensar a respetiva ordem de prioridades na política externa do Estado Novo.
Notas
1 Um exemplo recente são os capítulos sobre política externa nos cinco volumes de António Costa Pinto (…)
2 O que não significa que não seja possível sugerir alguma adição ou notar alguma gralha. Por exemplo (…)
Bruno Cardoso Reis – ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: bcreis37@gmail.com.
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