A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura | Hilário Franco Júnior

Comecemos com um clichê imperdoável: existem 180 milhões de técnicos de futebol no Brasil. Todo mundo pensa que entende do assunto. É uma reconhecida tradição nacional que praticamente a totalidade desse imenso exército de amadores chame o profissional que comanda a Seleção Brasileira de burro. Muitos, mesmo sem entender totalmente a lógica da regra do impedimento, declaram aos berros que podem fazer melhor. Melhor que os técnicos e melhor que os jogadores. Tudo ou nada é o lema. Um segundo lugar na Copa, medalha de prata ou bronze nas Olimpíadas são consideradas campanhas fracassadas. Erros não são permitidos. Perder um pênalti é imperdoável. Sofrer um frango é motivo de vexame eterno. Fazer gol contra é uma heresia.

A cultura do futebol está entranhada na cultura nacional. Seu jargão, seus hábitos, seus mitos. Estranhamente, até mesmo sua história. Não é tão raro que indivíduos que não sabem dizer quem foi Tiradentes ou D. Pedro I sejam capazes de dar a escalação completa do Guarani de Campinas, campeão brasileiro de 1978. O brasileiro médio que, outro clichê, não faz a mínima questão de cultivar a memória nacional, cultiva cuidadosamente sua história futebolística. Diversos programas esportivos de televisão ajudam nessa preservação, passando diariamente cenas de arquivo. Algumas imagens, de tão repetidas, entraram para o imaginário coletivo. Os resultados práticos desse amplo esforço educacional são continuamente comprovados ao final de cada partida de futebol, profissional ou amadora. Os torcedores, por mais simplórios que sejam, destilam orgulhosamente sua erudição esportiva nas rodas de conversa após os jogos. Enfim, todo brasileiro, de modo macunaímico, além de técnico de futebol também é um historiador do futebol.

Apesar do número inflacionado de especialistas, estranhamente, havia pouquíssimas livros no mercado editorial brasileiro que analisassem de modo profundo o futebol. Existem, sim, centenas de livretos introdutórios, biografias de atletas, coletâneas de crônicas, guias de regras, livros de arte e assemelhados. Essa carência foi diagnosticada pelo historiador Hilário Franco Júnior. Até então conhecido, e reconhecido, como um dos maiores medievalistas brasileiros, autor de obras como Idade Média: nascimento do Ocidente e Eva Barbada. Em 2003, Franco Júnior decidiu ministrar, em conjunto com o professor Flávio de Campos, um curso sobre futebol na pós-graduação em História da Universidade de São Paulo. Como resultado direto do curso escreveu o livro A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura, lançado em 2007 pela Companhia das Letras. Segundo o autor, a proposta essencial da obra é analisar “o futebol como fenômeno cultural total”. Pretensão explicitada já no título. Para alcançá-la lança mão não apenas de metodologias da ciência histórica, mas também de conceitos da antropologia, análises lingüísticas, psicológicas, teológicas, heráldica etc.

Numa visão superficial, pode parecer inusitado um medievalista dedicar tanto tempo e energia a um projeto de fôlego numa área tão distante de seu usual campo de atuação. Não é. Dois exemplos são notórios. Georges Duby, neófito em pintura moderna, escreveu um livro sobre o artista oitocentista Cézanne, após ministrar um curso sobre sua obra. Umberto Eco, atualmente reconhecido como um polivalente crítico cultural, especializou-se academicamente nos estudos medievais, experiência que o ajudou a escrever o best-seller internacional O Nome da Rosa. Curiosamente, Eco que afirmou ter abandonado o medievalismo devido aos altos custos das pesquisas, tendo ficado milionário com sua literatura, pôde transformar o antigo ofício em hobby de luxo, inclusive comprando um castelo medieval para casa de veraneio.

A dança dos deuses é dividido em duas partes. Na primeira, Futebol, micro-história do mundo contemporâneo, o que temos é, verdadeiramente, a história mundial recente contada por meio do desenvolvimento do futebol, de esporte praticado pelas elites inglesas à diversão de massa. A chegada à América do Sul, a utilização política pelos regimes fascistas, seu papel na Guerra Fria e durante o Regime Militar brasileiro. O futebol contemporâneo, globalizado e milionário também é contemplado, fechando o circulo num apanhado bastante completo, crítico e erudito. A narrativa dessa primeira parte é, considerando as particularidades da Europa e do Brasil, cronológica. O período enfocado vai do início do século XIX até as vésperas da publicação do livro. Notícias de jornal bastante recentes são citadas.

Na segunda parte, Futebol, metáfora do mundo contemporâneo, Franco Júnior muda o tom. Após debruçar-se sobre os fatos, o que passa a lhe interessar é a simbologia metafórica dos mesmos. Tendo esgotado a organização cronológica na primeira parte, a segunda estrutura-se em blocos de ensaios curtos que mantêm a organicidade pela proposta central de analisar o fenômeno futebol por todas as perspectivas possíveis. Citando Albert Camus, em sua frase testemunho “a maior parte daquilo que sei da vida aprendi jogando futebol”, Franco Júnior justifica seu projeto de falar do futebol como fenômeno simbólico totalizante da experiência humana. Segundo o autor, o “futebol é metáfora de cada um dos planos essenciais do viver humano nas condições históricas e existenciais das últimas décadas” (2007, p. 166).

Proposta audaciosa e escorregadia que, facilmente, poderia resultar em análises artificiais ou artificiosas, como ocorreu com Eduardo Galeano em seu simplista Futebol ao sol e à sombra, de 2004. Porém, Franco Júnior driblou habilmente todas as armadilhas, sem jamais roçar a superficialidade, e conseguiu trabalhar o futebol em suas inúmeras facetas: metáfora da guerra, metáfora sociológica, como dança sagrada, como festa, como fomentador de rivalidades e solidariedades e, até mesmo, como metáfora lingüística. Um feito considerável que transforma A dança dos deuses em um clássico de nascença.

A principal característica do livro é não romantizar seu objeto. Para Franco Júnior, um óbvio admirador do esporte, nem o jogo nem os jogadores são sagrados. Logo na introdução desmonta o decantado mito de sua antigüidade. Para ele, “o futebol tal qual conhecemos hoje resultou de um conjunto de fatores presentes apenas na Inglaterra do século XIX” (2007, p. 20). Trata-se de um fenômeno contemporâneo. Deve-se fugir a tentação de buscar suas origens em práticas esportivas medievais ou do mundo antigo, como o epyskiros grego, o harpastum romano ou mesmo o calcio, praticado na Itália entre os séculos XV e XVIII. O parentesco, se existe, é muito distante. Relaciona a criação do futebol com o darwinismo social. Foi desenvolvido nas universidades britânicas, como Oxford e Cambridge, como parte do projeto do “cristianismo atlético”. Ou seja, “a concepção pedagógica que pretendia desenvolver a fibra moral da elite britânica destinada a governar regiões longínquas e inóspitas, plena de súditos hostis e pouco civilizados” (2007, p. 26).

Diferente, por exemplo, de Nelson Rodrigues, autor de ótimas crônicas de futebol, reunidas em dois volumes, À sombra das chuteiras imortais (1993) e A pátria em chuteiras (1994), onde, por força do estilo mistificador do autor, os jogadores são transformados em deuses que decidiram chutar imperfeitas esferas de couro, Franco Júnior revela-os em suas imperfeições e vaidades. O caso extremo é Pelé. Longe de apenas reverenciar acriticamente seu monstruoso talento, Franco Júnior ironiza sua megalomania ao mesmo tempo em que a coloca em perspectiva. “Pelé, segundo relatam amigos dele, ‘acredita ser um deus tanto dentro como fora dos gramados’” (2007, p. 259). Historiador experimentado, Franco Júnior conhece a fundo os mecanismos de construção dos mitos. Sabe que se Pelé fala da si mesmo na terceira pessoa, como César, e acredita que é uma entidade que encarnou no mortal chamado Edson, é porque a extensão de sua mitologia, de seu culto, permitiu isso. Desumanizou-o, deificou-o em vida. Como acontecia com reis mesopotâmicos, faraós egípcios e imperadores romanos. O título de Rei não é por acaso. No imaginário popular, reis são representantes dos deuses, quando não os próprios deuses.

O futebol é, também, metáfora religiosa. Assim, o que poderia parecer o ponto-fraco do livro, seu título, justifica-se. A referida “dança dos deuses”, que era literal em Nelson Rodrigues, é simbólica em Franco Júnior. O torcedor, e às vezes a imprensa, enxerga deuses onde há homens. Os estádios tornam-se templos e os uniformes “mantos sagrados”. “Em torno a cada divindade futebolística desenvolve-se uma seita” (2007, p. 263). Quando torcedores de gerações, nacionalidades ou clubes diferentes discutem se Maradona, Di Stéfano, Cruyff ou Ronaldo foram melhores do que Pelé, na realidade, o que está em conflito são cultos diferentes. A estrutura simbólica do futebol, até por ser um esporte coletivo, permite o politeísmo, mas em todo panteão há um deus maior, seja Zeus, seja Odin, seja Pelé… Ou Maradona, ou Cruyff, ou outro que esteja, momentaneamente, na moda.

Para alguns, tudo isso é apenas absurdo. Contrariando Camus, Jorge Luis Borges abominava o futebol. Achava-o antiestético e tolo. Uma bobagem inglesa. Considerou a Copa do Mundo de 1978, sediada em sua Argentina natal, “uma calamidade”. Em uma entrevista concedida no ano seguinte, declarou que “o futebol é fundamentalmente ignóbil e agressivo, desagradável e comercial” (1986, p. 89).

Talvez Franco Júnior concorde com a utilização da última palavra: comercial. Longe de alimentar teorias conspiratórias, demonstra como os destinos do futebol estão intimamente relacionados a interesses econômicos, muito maiores do que o esporte em si. As cifras tornaram-se gigantescas, os atletas bens corporativos, os cartolas executivos internacionais. “A mentalidade liberal e mercantil transformou o futebol em negócio mundial” (2007, p. 116). O marketing esportivo dita as regras. Não raramente escala seleções, define horários de transmissão de jogos.

O Brasil apresenta dificuldade em adaptar-se ao futebol moderno. O fantasma do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, está presente também nos gramados. Franco Júnior usa a episódio da eliminação do Brasil pela Argentina na Copa do Mundo de 1990, quando Maradona passeou pela europeizada defesa brasileira, dando passe para o gol fatal de Ganiggia, para demonstrar uma situação política: “Muito acostumada ao contato familiar com jogadores estrangeiros e pouco habituada à nova organização tática, a seleção foi retrato fiel de um governo que sem planejamento maior abriu a economia à penetração dos produtos internacionais” (2007, p. 158). Comparações como essa estão presentes em todo o livro. Em alguns momentos parecem forçadas, como a acima citada talvez seja, mas raramente deixam de ser sagazes.

Franco Júnior não escreve como um torcedor, talvez o grande erro de Galeano. Escreve como um historiador cioso de sua tarefa. Propôs e realizou uma análise científica do futebol. Tão científica quando possível para uma ciência humana, demasiada humana como a História. Tudo o que é humano, por definição, é falível. Ou por outra, o humano, como se sabe, pode ser miraculoso. Na história do futebol não faltam exemplos.

Na Copa de 1958, o Brasil enfrentaria a temida União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na primeira fase. Alardeava-se que a URSS praticava o “futebol científico”. Tudo em seu jogo, da preparação dos atletas ao esquema tático era pensado cientificamente. Ironicamente, esse jogo marcou a estréia de Mané Garrincha em copas. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues, em crônica publicada na Manchete Esportiva de 21 de junho de 1958, para descrever o que aconteceu: “a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável?” (1993, p. 53). Dessa vez o futebol científico perdeu. O estilo clássico e habilidoso do (s) brasileiro (s) foi mais forte.

Porém, a partir da inexplicável derrota da seleção brasileira na Copa de 1982, o jogo europeu ganhou espaço na América do Sul. Dificilmente o individualismo irresponsável de Garrincha sobreviveria à marcação cerrada de hoje, teria que se adaptar. Somente com técnicos conhecidos pelo pragmatismo a européia o Brasil conseguiu vencer duas Copas, 1994 e 2002, após os anos de ouro, entre 58 e 70. Parece ser essa a tendência. O futebol científico, das tabelas e pranchetas, triunfa. Sendo assim, por que não dar a César o que é de César? Da mesma forma que o jornalista João Saldanha teve sua chance no final da década de 1960, proponho Hilário Franco Júnior para técnico da Seleção Canarinho. Ninguém duvide que ele seja capaz de fazer História.


Resenhista

Ademir Luiz da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: ademir.hist@bol.com.br


Referências desta Resenha

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Resenha de: SILVA, Ademir Luiz da. História Revista. Goiânia, v.14, n.2, jul./dez.2009. Acessar publicação original [DR]

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