Diante das incertezas, avanços e recuos no enfrentamento ao novo coronavírus no mundo, Boaventura de Sousa Santos elabora o livro publicado em 2020, intitulado “A cruel pedagogia do vírus”. Trata-se de um livro com poucas páginas para ler, com uma escrita simples e de fácil compreensão, onde o autor, em 32 páginas, apresenta suas opiniões sobre os ensinamentos que decorrem da pandemia do coronavírus, assim como da adaptação da sociedade diante da doença e de quem está em melhores condições para seguir as medidas de prevenção e recomendações da OMS perante a pandemia. No final da obra, o autor se permite, igualmente, a pensar o “futuro” que se apresenta vestido de uma utopia que ele chama “normalidade”.
No trabalho em questão, Boaventura de Sousa Santos não se esgota, uma vez que apresenta as entrelinhas, faz questionamentos e permite ao leitor a desenhar possíveis cenários diante da realidade que se vive atualmente. Partindo dessa premissa e da experiência vivida desde a declaração da pandemia e das distintas experiências da quarentena, “A cruel pedagogia do vírus” é uma proposta realista e hostil, uma vez que o vírus diante de vicissitudes cruéis e até fatais vai permitindo aos sobreviventes a compreender o mundo em que vivem e a pensar no tipo de sociedade que pretendem.
É diante disso, que o espaço académico foi contemplado com a obra (ISBN 978-972-40- 8496-1), lançada pela editora Edições Almedina, S.A. inserida no Grupo Almedina, cuja presença na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é bastante forte, de tal forma que edita, para além de conteúdo de áreas do conhecimento técnico, publicações de obras que contribuem para o pensamento crítico e reflexivo.
O livro é composto por cinco capítulos. O primeiro é intitulado Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar. O segundo versa sobre A trágica transparência do vírus. O terceiro capítulo, A sul da quarentena. O quarto aborda sobre A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições. O quinto e o último tem como título, O futuro pode começar hoje.
No primeiro capítulo o autor mostra que desde a década de 1980, à medida que o neoliberalismo foi se impondo como versão dominante do capitalismo o mundo tem vivido em permanente estado de crise. A pandemia do coronavírus veio, apenas, agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser sujeita. Há dez ou vinte anos atrás, os serviços públicos de saúde estavam melhor preparados para enfrentar a pandemia do que estão hoje. Essa situação se agravou quando as áreas sociais como educação, saúde, energia, água e outras se tornaram áreas de investimento para a iniciativa privada, de forma a gerar o máximo de lucros, refreando a capacidade dos serviços públicos de responderem às situações de calamidades.
O coronavírus é uma doença de dimensões globais. Apesar disso, a Europa e a América, com o intuito de manterem a sua hegemonia e superioridade, na luta contra o vírus, invisibilizam as situações de extrema vulnerabilidade que afetam alguns países da Europa e a fronteira Sul dos Estados Unidos da América (EUA). As mesmas situações de invisibilidade podem ser vivenciadas por mais países no mundo e presenciadas sem muito esforço, bem perto de cada um de nós.
Por sua vez, no segundo capítulo, o autor refere que, desde o século XVII, através da educação e doutrinação, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são os principais modos de dominação ao nível dos Estados. No capitalismo, as relações interpessoais e estatais apregoam um sentido comum de que todos são iguais. Já, o colonialismo e o patriarcado por reconhecerem diferenças naturais entre as pessoas e os Estados, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores. Atualmente os três se apresentam de forma dissimulada, onde o capitalismo se transformou em capitalismo financeiro e contra-insurgência; o colonialismo se valeu das independências das colónias europeias e passou a se apresentar em forma de neocolonialismo, imperialismo, dependência e racismo e; o patriarcado assumiu as formas de violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio. Quando somente os três juntos, são todo-poderosos, ou seja, enquanto houver capitalismo, haverá colonialismo e patriarcado.
Noutro prisma, referindo-se, sobre a transparência do vírus o autor denota os perigos decorrentes da susceptibilidade dos Estados se aproveitarem da declaração do estado de emergência para adquirirem poderes excessivos que possam pôr em causa a democracia, assim como da falsa ideia de um “comunismo global”, que se caracteriza por uma sociedade para além do Estado-nação, alicerçada na ideia de solidariedade e cooperação global.
Já no terceiro capítulo, sem perder de vista o facto de que qualquer quarentena pode ser discriminatória, Boaventura de Sousa Santos analisa outros grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil, cuja vulnerabilidade precede a quarentena e se agrava com ela. Esse grupo que compõe aquilo a que o mesmo chama Sul: são as mulheres; os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos; os sem abrigo e trabalhadores da rua; os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas, barriadas, slums, caniço, entre outros; os internados em campos de internamento para refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente; os deficientes e os idosos. Assim, na sua análise considera que a quarentena não só torna visível a vulnerabilidade desses grupos, pela informação que é veiculada pelos media e pelas organizações internacionais, mas também reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido.
No quarto capítulo, o autor deixa as seis primeiras lições que decorrem da prevalência da pandemia na sociedade, onde na primeira, apresenta os riscos que a sociedade contemporânea corre, como consequência do atual estágio político, assim como a postura do media e dos poderes políticos que, muitas vezes, propõem soluções, não orientadas as causas, mas sim as consequências das crises. Na segunda lição mostra que a pandemia é discriminatória, na medida em que grande parte das populações do mundo não podem seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), por viverem em condições precárias, em espaços exíguos, por serem obrigadas a trabalhar em condições de risco para alimentarem as suas famílias, por estarem presos nas prisões ou em campos de internamento, por não terem sabão e água potável ou apenas pouca água disponível para beber, cozinhar e outras necessidades.
Prosseguindo, com suas lições, na terceira, o mesmo mostra a impossibilidade do capitalismo se sustentar, enquanto modelo social, devido à falência do neoliberalismo diante da crise, por ter sujeitado todas áreas sociais (educação, saúde e segurança social) ao modelo de negócio de capital, cuja motivação é a aquisição do lucro. Na quarta lição o autor vislumbra a possível queda da extrema-direita e da direita hiper-liberal, pois sob pretexto de salvar a economia estes ocultam informação, desprestigiam a comunidade científica, minimizam os efeitos potenciais da pandemia e utilizam a crise humanitária para despertar as suas rivalidades políticas.
Na quinta lição, o autor afirma que o colonialismo e patriarcado estão vivos e se reforçam com a crise aguda, pois, as pandemias só se transformam em problemas graves quando afetam as populações dos países mais ricos do Norte Global, em detrimento de outras doenças que assolaram países do Sul. Na última lição o mesmo adverte sobre a necessidade de garantir o regresso do Estado e da Comunidade, negligenciados a cerca de 60 anos com a adopção das políticas neoliberais em todo mundo, o que quebrou com a lógica própria de funcionamento das sociedades modernas.
No último capítulo, o autor vislumbra o “novo começar”, que se revela a partir da pandemia e da quarentena. Em sua opinião, as sociedades estão descobrindo alternativas para uma convivência, cujo alicerce é o bem comum. Significa que a pandemia levou a sociedade a repensar nas alternativas para viver, produzir, consumir e de conviver nos primeiros anos do século XXI. Esse novo status consiste em despertar a sociedade de modo a compreender que, nos últimos 40 anos, viveu em quarentena (política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado a si próprio e suas consequências). A sociedade precisa, igualmente, compreender que a quarentena provocada pela pandemia é uma quarentena dentro da primeira. Desse modo, a saída da atual quarentena depende da saída da primeira (o capitalismo), que é a origem da crise.
Frente às suas indagações, Boaventura de Sousa Santos, não se furta de um sentido “metafórico” para apresentar “prováveis” lições que a sociedade pode tirar do vírus, assim como da quarentena, o que traduz, em parte, a importância desta obra. Recordar que, o mesmo não se esgota, uma vez que desde o início da obra, indaga sobre “que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus” (SANTOS, 2020, p.1), num exercício continuado, que permite aos leitores desenharem possíveis cenários sobre o que está a acontecer diante da crise global e da pandemia, em particular.
Nesse sentido, sua obra seduz à “prática da liberdade”, descrita na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, uma vez que as sociedades devem se apropriar dos conhecimentos que decorrem da crise para se reinventarem e pensarem no futuro. A prática da liberdade, de acordo com Freire (1987), só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de reflexivamente se descobrir e se conquistar como sujeito de sua própria destinação histórica. Com efeito, na última parte desta obra, o autor se questiona sobre as alternativas da sociedade, embasadas no ideal do “novo normal” (SANTOS, 2020, p.30).
Na sua abordagem, Santos (2020) se insurge com as causas e as consequências da crise, por considerá-las, de certo modo ou em grande parte, algo extrínseco a ela, como refere Piper (2020, p.8) “isso não é sem precedentes”, uma vez que “estamos a lidar com “nada de novo sob o sol contemporâneo”” (BADIOU, 2020, p.35). A par dessa situação verificada há duas décadas, o autor aponta as origens da crise decorrentes da “incapacidade das […] instituições de manter a Caixa de Pandora fechada” (DAVIS, 2000, p.7), como consequência da adopção das políticas corporativas, que levaram a um generalizado descaso, em relação à “coisa pública”. Nesse sentido, a crise deve ser considerada não apenas, inerente ao neoliberalismo, descrito nesta obra como versão dominante do capitalismo, mas também ao próprio capitalismo, que durante a pandemia tem revelado uma clara tendência em definir quais são os corpos que importam, exercendo segundo a visão de Mbembe, “a expressão máxima da soberania [que], reside em grande medida no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018, p.5).
Em suma, visto por este ângulo, o livro permite a sociedade a refletir, a sistematizar e a produzir conhecimentos sobre o coronavírus, assim como a pensar no tipo de sociedade e nas prioridades do Estado pós-pandemia.
Referências
BADIOU, Alain. Sobre la situación epidémica. In: AMADEO, Pablo (Org.). SOPA DE WUHAN: Pensamiento contempoâneo en tiempos de pandemias. Argentina: ASPO, 2020. 188p. p. 67- 78.
DAVIS, MIKE. A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. In: DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020. 48p. p. 5-12.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1987.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
PIPER, John. Coronavírus e Cristo. São José dos Campos, SP: Fiel, 2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2020.
Resenhistas
Catarina da Esperança Maquile Melo – Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais Universidade Católica de Moçambique. E-mail: cmaquilemelo@gmail.com
Guirino Dinis José Nhatave – Doutorando em Políticas Públicas Universidade Estadual do Ceará. E-mail: desgui69@gmail.com
Referências desta resenha
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2020. Resenha de: MELO, Catarina da Esperança Maquile; NHATAVE, Guirino Dinis José. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.2, p.566-570, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]
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