A Criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo | Eli Alves Penha

O trabalho de Eli Penha, inicialmente sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ em 1992, tem como proposta investigar o significado da criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, sua importância para a geografia e para a sociedade. Segundo o autor, mais um ponto de partida para a recuperação da memória institucional e menos uma história do Instituto.

Estruturada em quatro capítulos, introdução e conclusão, a publicação é prefaciada por Pedro Pinchas Geiger, geógrafo do antigo Conselho Nacional de Geografia, nome de peso na formação do campo disciplinar da geografia (Machado, 2009). Complementam-na os anexos referentes aos esquemas dos Sistemas de Serviços Estatísticos e Geográficos, o Plano Rodoviário Nacional e a “Lei Geográfica do Estado Novo”, isto é, o Decreto Lei, n° 311 de 1938, que dispôs sobre a divisão territorial do país, entre outros documentos.

Não obstante o foco de Eli Penha gravitar em torno da contribuição da entidade com o fortalecimento do Estado Nacional, o autor não trata o IBGE como mero aparelho estatal. O trabalho acompanha de perto a via de mão dupla entre o processo de centralização do Estado Novo e a criação daquele órgão da Administração Pública Federal.

Com complexidade e sutileza, Eli Penha traça os meandros e as nuances da formação do Instituto, pari passu à construção do Estado Novo, em meio a idas e vindas, discussões, embates e uma realidade em veloz transformação. Capta, como nos bons trabalhos de geografia política, a retroalimentação entre Estado, território e o pensamento dos intelectuais brasileiros, direta ou indiretamente relacionados ao IBGE.

Não por acaso a geografia política e a geopolítica ocupam toda a extensão do capítulo destinado ao referencial teórico. Formado e informado nesta tradição, tendo Bertha Becker, nome de ponta da geografia brasileira, por orientadora, no mestrado e no doutorado, Eli, lastreado principalmente nas análises de Wanderley Messias da Costa,1 soube delinear o quadro geral das discussões daquele campo de estudo. Nele, coerentemente, procurou localizar as raízes do(s) pensamento(s) que alimentaram a criação do IBGE.

No painel traçado, que se estende do final do XIX até a década de 1990, o autor apresenta uma constelação de pensadores europeus, norte-americanos e brasileiros – de Friedrich Ratzel a Everardo Beckheuser, por exemplo, todos imersos nas temáticas da Geografia Política. Embora entre os pensadores brasileiros temáticas como a projeção externa do país, integração do território e segurança nacional tenham tido grande destaque Eli Penha não se restringiu a esses temas, apontando a importância dos debates sobre o federalismo. Neste sentido, recuperou em seu trabalho discussões históricas acerca do mesmo (dentro e fora do Brasil), considerando seus detratores e defensores.2

Na década de 30, seja em decorrência de fatores externos, como a crise de 29, seja por injunções internas de cunho político, ou a confluência de ambos, o federalismo foi associado à instabilidade da Primeira República e pensado como elemento desestabilizador da unidade nacional. Esse ideário ganhou força no staff estadonovista.

O Brasil não tardou a assistir a uma reação intervencionista por parte do governo central. A centralização foi percebida, e implementada, como meio de controle dos regionalismos, de modo a driblar os efeitos da crise na economia e enfrentar as questões sociais. Preconizou-se a atuação racional do Estado como garantia para se obter outro patamar econômico e político para o país. Em decorrência dessa premissa, o intervencionismo, via razão técnica, foi tomado como antídoto do “espontaneísmo” federalista. Nas palavras de Eli Penha:

Nesta perspectiva, a oposição a que nos referimos entre “espontaneismo x racionalidade” parece encobrir, na verdade, o embate presente no período entre Estado Unitário x Estado federalista, mas que teoricamente se apresenta através de múltiplas formas, como as que opõem centralização x descentralização, poder central x poder local, autoritarismo x democracia e, last but not least, a que opõe Estado x mercado (p. 42).

Com o processo de centralização do Estado descrito em suas linhas mestras (segundo capítulo), Eli Penha, no capítulo seguinte, focaliza o processo de institucionalização, propriamente dito, do IBGE.

Este órgão nasceu em 1938, na esteira do processo maior que levou ao fortalecimento do Executivo. “A intenção de Vargas de tornar o Estado de dimensões tão vastas quanto o país tinha o sentido de redimensionar espacialmente o alcance das políticas governamentais” (p 65). O IBGE originou-se da reunião de dois Conselhos, o Conselho Nacional de Estatística e o Conselho Nacional de Geografia. Ambos criados anteriormente, já no governo Vargas, a partir do Ministério da Agricultura. Para Eli Penha, tal modo constituiu-se como meio eficaz de articulação técnica entre a geografia e a estatística3.

A articulação entre os níveis de administração foi obtida através da organização colegiada do IBGE. No Conselho Nacional de Estatística havia duas ordens de entidades, as federais e as regionais. A fórmula se repetiu no Conselho Nacional de Geografia. Também neste órgão foram criados diretórios regionais e municipais de geografia. Sobre esse compromisso de cooperação Eli Penha assim se posicionou:

Através do compromisso de cooperação intergovernamental ensaiava-se no Brasil uma experiência já vivida na Alemanha e com resultados satisfatórios, de profundas repercussões na vida político-administrativa do país. O pacto firmado sobrepunha-se às supostas tendências desagregadoras do federalismo, retirando desse modelo os elementos da ação considerados necessários para o definitivo encaminhamento das questões básicas nacionais, obedecendo ao princípio consagrado no qual a descentralização executiva reforçava a unidade do sistema (p. 72).

Ao Instituto coube levantar e sistematizar informações relativas ao quadro territorial, alimentando a Administração Pública em sua face jurídica, eleitoral e cultural. Coube, ainda, definir rumos e estratégias para o a gestão do território nacional, racionalizar a administração, mensurar e ampliar as riquezas através da construção da infraestrutura de forma a alterar o perfil do país, até então predominantemente rural e agrícola.

Por fim, no quarto e último capítulo, passamos a conhecer mais de perto o impulso de ordenamento do quadro político-territorial brasileiro, com seus projetos e realizações concebidas pelo Instituto, baseadas no ideário “ibgeano”. Nesse ideário, nos lembra Eli Penha, encontra-se sempre presente o espírito de contrabalançar qualquer “veleidade” regionalista e se obter equilíbrio entre os entes federativos.

Partindo de um diagnóstico dos problemas de base do país, tais como povoamento desigual, deseducação, desorganização administrativa e outros, o Instituto traçou algumas diretrizes no sentido de minorar os problemas detectados. Entre as medidas formuladas, encontramos aquelas destinadas a criar equidade na divisão político-territorial, interiorizar a metrópole federal e ocupar efetivamente o território, para ficarmos com as iniciativas de corte geográfico. As medidas territoriais de fato implementadas foram aquelas relativas à divisão territorial, limites interestaduais e meios de circulação.

No âmbito da historiografia da geografia brasileira, ousamos dizer a pesquisa de Eli Penha foi pioneira. Trabalhos nesta linha no país, como a tese de doutorado de Robert Schmidt de Almeida (2000), só viriam a reaparecer muitos anos mais tarde. As duas contribuições tornaram-se, e ainda se constituem, como leitura imprescindível para o conhecimento do IBGE e seu papel no ordenamento territorial do país. Muito mais do que um ponto de partida enunciado por Eli Penha.

Notas

  1. Wanderley Messias da Costa é Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, especialista em Geografia Política.
  2. Entre esses últimos, Penha resgata a contribuição de Norman Pouds, autor que privilegiou a gestão interna dos espaços nacionais, uma das grandes questões enfrentada pelo governo Vargas.
  3. Também não escapou ao autor o fato de a formação do campo disciplinar da geografia subsumir-se à esta engrenagem maior, de centralização do governo e institucionalização do IBGE. Um se fez a partir do outro. O Estado precisou formar e treinar profissionais, criar faculdades.

Referências

ALMEIDA, Roberto Schmidt. A Geografia e os Geógrafos do IBGE no período 1938-1998. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografia, UFRJ, 2000.

MACHADO, Mônica Sampaio. A construção da geografia universitária no Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.


Resenhista

Cristina Pessanha Mary – Geógrafa e Doutora em História Social (UFRJ). Professora da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.


Referências desta resenha

PENHA, Eli Alves. A Criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo. Rio de Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 1993. Resenha de: MARY, Cristina Pessanha. Um trabalho pioneiro e ainda atual sobre o IBGE. Terra Brasilis (Nova Série), 3, 2014. Acessar publicação original

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