O reconhecimento, nas ciências sociais, da importância do afeto ao lado da razão, do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida, incluindo a política, é o fundamento teórico central do que atualmente denominamos virada afetiva. Nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, nos últimos anos, a abordagem tem sido usada de forma pioneira pelas teorizações feministas e queer. De todo modo, guardadas as diferentes filiações teóricas em torno da virada afetiva, há, pelo menos, duas convergências que merecem destaque: primeiro, a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento (Almeida, 2018, p. 33-32); segundo, o enfoque tanto em “nosso poder de afetar o mundo a nossa volta, quanto o de sermos afetados por ele” (Hardt, 2015, p. 2).
Levando-se em consideração as bases teóricas da virada afetiva, e que os processos de socialização racial não se concretizam sem a produção de corpos racializados, tampouco sem a existência de estruturas mentais que validem as desigualdades produzidas pelas hierarquias raciais, perguntamos: quais são as contribuições que abordagens em torno dos afetos podem trazer para os estudos das relações raciais?
O livro A cor do amor, da socióloga estadunidense Elizabeth HordgeFreeman, trilha caminhos que colaboram para visualizarmos possíveis respostas para essa indagação. Ao longo dos seis capítulos que compõem a obra, a autora aborda a dimensão emocional das relações raciais, enfocando a maneira como o processo de racialização se exprime por meio da linguagem e das interações familiares. Assim, contrariando o mito de que o amor pode tudo, a pesquisadora discute que a afeição pode ser distribuída desigualmente, de acordo com as características raciais dos indivíduos.
No rastro dessa premissa, a obra chama atenção para o fato de que análises que tratam dos processos de socialização racial não podem prescindir das dinâmicas afetivas, especialmente quando se trata da instituição familiar, pois, conforme diz a autora, “o lar é onde o sofrimento está”, mas é também espaço onde a dominação racial pode ser destruída. Sem maniqueísmos, são exploradas as maneiras criativas e contraditórias pela quais as famílias afro-brasileiras negociam hierarquias raciais e se engajam nos processos de socialização racial: seja resistindo, seja reproduzindo ideologias raciais, e, às vezes, realizando simultaneamente ambos os movimentos.
O livro é fruto de pesquisa realizada no Brasil, entre 2009 e 2014. Para tanto, a socióloga realizou observações etnográficas e entrevistas com famílias afro-brasileiras: dez principais e cinco estendidas, totalizando um total de 116 pessoas entrevistadas. Essas famílias negras, cujos membros possuem fenótipos diversos, vivem no bairro Lua Cheia, pseudônimo criado pela autora para um pequeno bairro situado na Cidade Baixa, em Salvador. A capital soteropolitana é conhecida como a cidade mais negra do Brasil, bem como por sua ênfase na cultura afro-brasileira. Esses dois fatores favorecem a ideia de é que o local onde se poderia esperar que os afro-brasileiros estivessem, de alguma forma, blindados contra a supremacia branca. Com efeito, os índices de desigualdades e a pesquisa demonstram o contrário. Sobre as pessoas negras, comenta a autora: “tudo o que lhe pedem é que cuidem de sua negritude e sejam reduzidos a adereços de fundo” (Hordge-Freeman, 2018, p. 287).
No entender da autora, a seleção dessas famílias negras se justifica porque a socialização racial em grupos fenotipicamente diversos pode oferecer uma oportunidade de análise sobre o papel da família enquanto o primeiro local de reprodução de hierarquias raciais dominantes, bem como pode tornar visíveis práticas familiares transgressivas, cujas ações demonstram que a supremacia branca não é impenetrável.
Aliado a esse trabalho etnográfico, a autora debruçou-se sobre uma vasta bibliografia, que inclui teorias críticas raciais e abordagens interseccionais feministas brasileiras e estadunidenses. Ainda em termos teórico-metodológicos, outro elemento que se destaca diz respeito à incorporação de estudos oriundos de outros contextos da diáspora negra. Trata-se de uma prática acadêmica alinhada aos objetivos dos pesquisadores e pesquisadoras do “Atlântico Negro”, cujos trabalhos buscam transcender tanto as estruturas do Estado-nação, como as restrições essencialistas de etnicidade e da particularidade nacional.
Para as análises sobre o livro, cuja pergunta central indaga sobre as contribuições da virada afetiva para o campo das teorias críticas raciais, serão norteadores três eixos analíticos: o primeiro, enfoca a dimensão conceitual, abordando como a autora define afeto ao longo do trabalho e como os conceitos por ela criados podem adensar nossa compreensão sobre os processos de dominação racial e as variadas formas de resistência; o segundo, destaca os usos dos afetos em termos de metodologia de pesquisa e como tais escolhas se expressam na narrativa; o terceiro, descreve, em termos de conteúdo, as novidades que o livro apresenta para o campo das teorizações sobre racismo.
Sobre a dimensão conceitual, apesar de, ao longo do trabalho, não haver uma descrição explícita de como o termo afeto é definido, a forma como o amor, ou seja, a noção central discutida pelo livro, é tratado, oferece pistas teóricas significativas. Em primeiro lugar, o amor é abordado como uma prática situada, e não como um sentimento abstrato. Em outras palavras, a afeição é tomada em termos de condições de possibilidades, ou seja, a autora faz questão de explicitar que os afetos são atravessados pelas mesmas contradições, estigmas, dores e violências existentes em uma sociedade construída sob hierarquias raciais.
Assim, valendo-se de uma narrativa fluida, que acompanha as sutilezas da vida, a pesquisadora detalha, por meio de inúmeros exemplos, que um dos efeitos mais perversos das hierarquias raciais e de gênero diz respeito ao fato de que o trabalho afetivo exercido pelas mulheres engloba tanto a vigilância dos seus próprios corpos, que serão elas que, via de regra, irão transmitir as etiquetas e os rituais raciais que julgam necessários para que os familiares aprendam a lidar com os efeitos das opressões racistas. Assim, destaca a autora:
Elas [as mães] se encontram dilaceradas pelas barganhas raciais generificadas que devem atacar enquanto lutam para preparar seus filhos para um mundo exterior que os trata como sub-humanos, enquanto também tentam preservar e até mesmo apreciar a humanidade deles. No centro desse trabalho está a evidência de que as trocas afetivas, a linguagem e as práticas concretas de socialização racial devem ser contextualizadas como respostas a uma sociedade absurda e perversa na qual simplesmente existir enquanto negro é considerado ofensa. (Hordge-Freeman, 2018, p. 285)
A supremacia branca arrasta famílias negras brasileiras para processos de racialização e socialização racial. Para tornar visíveis essas complexas dinâmicas, a autora cria três conceitos que merecem destaque: capital afetivo, capital racial incorporado e fluência racial.
No que tange ao conceito capital afetivo, a pesquisadora afirma que, num sistema racializado, os recursos afetivos podem ser distribuídos desigualmente. Desse modo, capital afetivo diz respeito aos “recursos emocionais e psicológicos que uma pessoa adquire ao ser positivamente avaliada e sustentada, além de frequentemente receber demonstrações significativas de afeto” (Hordge-Freeman, 2018, p. 18). Essa distribuição desigual fornece a base para que, em uma mesma família, algumas pessoas construam projetos pessoais mais ambiciosos, completem a educação formal e sejam capazes de contornar com mais facilidade questões de autoestima que outras, cujos traços físicos e comportamentos se distanciam mais da normatividade hegemônica branca.
No caminho aberto pela noção de capital cultural, do teórico francês Pierre Bourdieu, que trata das predisposições e sensibilidades aprendidas ao longo da vida, a autora cria o conceito de capital racial incorporado. A abordagem sugere que, quanto mais uma pessoa negra se apresenta como alguém que possui e incorpora predisposições e sensibilidades do grupo dominante − ou seja, gostos, linguagem, vestimentas e maneirismos das pessoas brancas −, mais bem-sucedida ela poderá ser na sociedade, inclusive, em termos afetivos. Diante disso, capital afetivo e capital racial incorporado estão imbricados e se retroalimentam.
Vale a pena destacar que, apesar de evidenciar as relações de poder que atravessam a distribuição dos afetos, a socialização racial, para a autora, não pode ser essencializada como uma reprodução cega das hierarquias raciais, fenotípicas e de abusos emocionais. Por isso, é necessária a construção de abordagens conceituais que evidenciem como as famílias afro-brasileiras lidam com as limitações estruturais, apoiando-se em um conjunto de práticas, estratégias discursivas, que vão desde o uso do humor até mesmo inovações ideológicas. A manipulação e a negociação das normatizações raciais foram definidas pela autora como fluência racial, que é aprendida, cultivada e desenvolvida continuamente por meio de esforços colaborativos de familiares próximos e outras pessoas íntimas.
Deslocando-se para o uso dos afetos em termos metodológicos, observa-se que uma das preocupações que atravessa a proposta é a de tornar visível que os conteúdos do trabalho resultam das afetações mútuas entre a autora e as pessoas que acompanhou durante a pesquisa. Essa prática se expressa por meio de uma narrativa construída rente aos corpos: o da própria pesquisadora e os das pessoas com as quais conversou. Isso ocorre porque a autora, negra, estadunidense, procura estar consciente de sua posicionalidade, não como uma fragmentação em diversos níveis, mas como negociação dupla e bifurcada. De certa forma, valendo-se da teoria feminista negra, a pesquisadora aprofunda a ideia que é preciso rejeitar a falsa dicotomia entre insider e outsider. Assim, narra: “As maneiras pelas quais as implicações da minha racialização e posicionalidade mudavam, às vezes de forma rápida e inesperada, eram tanto fascinantes quanto desconcertantes” (Hordge-Freeman, 2018, p. 304).
Tratando do terceiro ponto de análise, que diz respeito às novidades em termos de conteúdo para os estudos críticos raciais, destaco que, partindo da ideia de que onde há relações de poder, há práticas de resistência, a autora explora como determinadas famílias subvertem as normatizações racistas, apontando caminhos possíveis para resistir. No entanto, esses caminhos não se fazem sem a advertência de que práticas isoladas não têm o poder de transformar as estruturas. Ao contrário, a autora questiona se devemos enfocar a luta na dissolução de um modelo de sociedade construído sob a égide da desumanização de corpos não brancos.
Outra contribuição que se destaca no livro diz respeito ao foco de estudo nas famílias negras. De certa forma, o combate ao mito da democracia racial tem favorecido que grande parte dos estudos sobre as famílias negras enfatize questões concernentes às relações inter-raciais brancas e negras. Nessa perspectiva, A cor do amor torna visível os agenciamentos de famílias negras, já que são numericamente mais expressivas. Vale destacar que apenas 30% dos casamentos, incluindo tanto os informais como os formais, ocorrem entre categorias de cor. Pesquisas têm demonstrado que a maioria da população brasileira casada está em uma relação com alguém da mesma categoria de cor. Mesmo quando os pardos estão agregados, os níveis de relacionamentos inter-raciais são ainda menores. Desse modo, o livro chama a atenção para um campo ainda pouco explorado: as famílias negras.
A conclusão geral da pesquisa demonstra que a presença de pessoas multirraciais ou fenotipicamente diversas não significa a existência de uma democracia racial ou a entrada em uma era pós-racial. Nesse sentido, o colorismo emerge como uma ferramenta útil para entender o tratamento diferencial baseado na cor da pele e nas características físicas. Contudo, deslocando-se de visões simplórias sobre o tema, a autora adverte que o penteado e mesmo o alisamento capilar nem sempre refletem a reprodução da branquitude hegemônica ou o racismo internalizado. O hibridismo, a miscigenação e a fluidez racial são assuntos importantes na pesquisa em ciências sociais, e esse livro promove avanços sem subestimar as distinções fenotípicas.
Além das valiosas contribuições sobre as famílias negras, A cor do amor traz conceitos e abordagens metodológicas que podem adensar nossa compreensão sobre os processos de socialização racial nas famílias brancas, cujas análises podem desvelar o investimento afetivo dos brancos na dominação, bem como a forma como desenvolvem a fluência racial. Ademais, estudos nessa direção são de grande utilidade para visualizarmos processos por meio dos quais as famílias brancas constroem e preservam as fronteiras raciais, cujos contornos perpetuam o acesso ao capital material incorporado e afetivo.
A cor do amor reforça que o afeto, por estar imbricado com a vida, é terreno da política. Ao navegar de forma sofisticada e crítica pelos territórios da psicologia e sociologia, estrutura e agência, emoções e práticas, oferece ferramentas potentes para as análises das relações raciais.
Referências
ALMEIDA, Mariléa. Apresentação. In: ______. Territórios de afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro. 2018. 302 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2018. p. 32-33.
HARDT, Michael. Para que servem os afetos? Intersemiose – revista digital, Recife, ano IV, n. 7, p. 9-14, jan./jun. 2015.
HORDGE-FREEMAN, Elizabeth. A cor do amor: características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. Tradução Victor Hugo Kebbe. São Paulo: EdUScar, 2018.
Resenhista
Mariléa de Almeida – Doutora em História pela Unicamp. E-mail: marileaatm@gmail.com
Referências desta Resenha
HORDGE-FREEMAN, Elizabeth. A cor do amor: características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. Trad. Victor Hugo Kebbe. São Paulo: EdUScar, 2018. Resenha de: ALMEIDA, Mariléa de. Famílias negras e socialização racial: O que podem os afetos? Acervo. Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 225-230, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR/JF]
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