A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades – CARDOSO (TES)
CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro, Editora FGV/Faperj, 2010,463 p. Resenha de: SANTANA, Marco Aurélio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.3, set./dez. 2013.
É moeda corrente que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo. Temos um longo histórico nesta tradição, demonstrando o quão persistente é nossa desigualdade. Nosso ranking global é dos piores. Disso já sabemos não é de hoje. Somos constantemente bombardeados com comparações entre o nosso país e outros para cima e para baixo na escala de presença mundial. Em muitos casos, ficamos ruborizados com os resultados destas comparações. Desta situação decorrem não só estratégias para que tentemos melhorar nosso posto – tantas vezes sem sucesso -, mas também, para acalentá-las, reflexões e investigações acerca do como vamos neste quesito, para entendermos os caminhos trilhados e que nos trouxeram a tal ponto.
O livro de Adalberto Cardoso traz aos leitores um novo alento nesta direção. Incorporando o “mundo do trabalho” em tal mirada, se coloca, de forma instigante, a questão da persistência da referida desigualdade em conexão com “os mecanismos de vertebração da sociedade brasileira”, no percurso de nossa experiência em termos de construção da sociedade do trabalho.
Antes de qualquer coisa, é preciso que se diga que Cardoso primou em seu trabalho pela combinação bem medida, nem tão fácil, nem tão trivial, das perspectivas ‘quali’ e ‘quanti’, o que tem sido uma das características de seus investimentos ao longo de sua trajetória de pesquisa. Aos leitores é fornecido um conjunto de dados produzidos pela literatura sociológica e historiográfica, sempre em diálogo constante com o campo analítico e suas formulações teóricas pertinentes. Transita-se por achados provenientes de análises historiográficas, survey, entrevistas, análise de trajetórias etc. Além disso, percorrendo período lato de tempo, necessário ao tratamento da questão, efetiva finas análises em seu percurso histórico e sociológico, produzindo o que o autor define como “uma sociologia historicamente referenciada”. O leitor é conduzido por operações analíticas que incluem processos ‘macro’ e ‘micro’, os quais, articulados, fornecem uma ampliação da capacidade de entendimento do tema em tela. Ressalte-se, ainda, que dada a forma de redação e desenvolvimento do texto, ele se torna acessível a um público mais amplo que o acadêmico.
Cardoso usa todo este arsenal no intuito de abrir uma nova picada explicativa acerca da persistência regular e indómita da desigualdade em nosso país. Que elementos manteriam sua durabilidade e sua especificidade no Brasil? Como por ele indicado, o ‘ser desigual’já está no DNA do sistema capitalista. O fato é que, em certo momento, a legitimação do sistema dependeu, no mundo ocidental, de “sua capacidade redistributiva, mediada pelo Estado do bem-estar”. Ainda que aberta a questionamentos, Cardoso parte da visão de que o Brasil experimentou “seu Estado de bem-estar”. O mesmo “que aqui, como acolá, é um Estado redistributivo”. Mas aí teríamos uma especificação de nossa formação social e económica: “essa redistribuição jamais se universalizou e não foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis”.
Isso, segundo o autor, se deveria aos seguintes fatores combinados: (1) “padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista no início do século XX, que deixou heranças profundas na sociabilidade capitalista posterior”; (2) “a estrutural fragilidade do Estado, sempre às voltas com seus próprios déficits e sua incapacidade de enraizamento no vasto território nacional”; (3) “a persistente violência estatal contra o trabalho organizado, muito superior à ameaça que este eventualmente representou ao longo da história”; (4) “a diminuta participação do operariado industrial na estrutura social e a enorme fragmentação das formas desorganizadas de obtenção de meios de vida no mundo urbano, fora do mundo do trabalho formal”; (5) “o baixo patamar da riqueza social produzida”; (6) “e o padrão de incorporação dos trabalhadores no mercado de trabalho urbano a partir da década de 1940, resultante da abdicação, pelo Estado, da tarefa de regular o mundo agrário, com isso transformando as cidades em polo irresistível de atração para os trabalhadores pobres do campo”.
Estes seis pontos serão fios orientadores na condução da análise que se dividirá em duas partes. Na primeira, centra-se na questão da construção da sociabilidade capitalista no Brasil. Por ‘sociabilidade’ Cardoso define, segundo ele “sem nenhuma pretensão teórica mais geral”, “as inter-relações resultantes do modo de operação das linhas de força que estruturam a ordem social, linhas que organizam as expectativas recíprocas de grupos e classes sociais quanto: aos valores mais gerais de orientação da ação recíproca, ou da ação que leva o outro em conta; e aos padrões prevalecentes de justiça, ou de bem comum, ou ‘do que deve ser’ a vida em comum; e, com ambos, as próprias ações recíprocas”.
Neste particular, o autor defende a posição de que “a escravidão deixou nela marcas muito mais profundas do que o conhecimento acumulado sobre o tema se dispõe a aceitar”. Segundo ele, “Não só a sociabilidade capitalista moldou-se pela inércia da ordem escravista, como o próprio Estado capitalista construído no quarto século brasileiro estruturou-se pela escravidão e para sustentá-la”. Com isso, ele acabou “transferindo muito de sua dinâmica (e inércia institucional) de uma geração a outra, dificultando e retardando a problematização da questão social como relevante para a sustentabilidade da ordem”.
Tal processo, mais longevo, acabou por receber reforço exatamente do período no qual houve a tentativa de implantação de uma dinâmica que marcasse uma ruptura com a escravidão. Quando no período Vargas, ao regular-se o mundo do trabalho, deixou-se de “equacionar as relações de trabalho no campo, ao tempo em que instituía a promessa de proteção social e trabalhista nas cidades”, gerando forçosamente “um campo gravitacional urbano que atraiu muito mais gente do que o mercado de trabalho capitalista em construção foi capaz de incorporar”. Aí, teríamos, a explicação de “boa parcela da persistência da desigualdade entre nós”.
Na segunda parte, o autor avança na análise do “processo estrutural de construção da sociedade do trabalho no país a partir de 1940”. Ele foca “na transição da escola para o trabalho, tomada como momento privilegiado da construção de anseios, projetos e ambições individuais e coletivas numa sociedade capitalista embalada por promessas de igualdade, liberdade e realização pessoal”. Nesta parte, Cardoso defende a posição de que “apesar das enormes tensões e conflitos que cortam a sociedade brasileira de alto a baixo, e por todos os lados, sua sustentabilidade no longo prazo é assegurada pela adesão da maioria dos brasileiros às promessas de nosso parcial Estado de bem-estar”. Esta ‘adesão’ se daria também “e muito especialmente ao capitalismo como um conjunto de oportunidades de promoção pessoal”. Tudo isso ocorreria “apesar da resistente frustração das expectativas a que seu caráter inercial deu guarida”.
Este ponto, aliás, subjaz ao longo de todo o livro a animar a reflexão e a investigação. Diante de ordem social tão desigual, por que os menos aquinhoados não se rebelam contra ela na tentativa de pô-la abaixo? Se em outras experiências o Estado de bem-estar, via redistribuição, abriu caminho para a legitimação de sua ordem, no caso brasileiro, com toda esta herança e um Estado de bem-estar a nosso modo, ‘parcial’, por que é que os do andar de baixo não se sublevam ao ponto de mudar a ordem estabelecida?
A questão da percepção dos atores sociais se torna muito importante. Uma ordem social pode ser percebida de formas muito diferentes pelos atores, classes e grupos sociais, levando-se em conta critérios, tais como ‘justiça/injustiça’, ‘igualdade/desigualdade’ e ‘legítimo/ilegítimo’. Nestas percepções, nem sempre o ‘desigual’ se associa com o ‘ilegítimo’. O que poderiam parecer conjugações ‘óbvias’, ‘imediatas’, ‘necessárias’ etc., nem sempre o são. É exatamente neste tipo de conjugação que se assenta o ritmo de dinâmica e inércia apresentada por uma determinada ordem social capitalista.
No caso brasileiro, a partir dos elementos apresentados por Cardoso teríamos que a “sociedade é desigual, a sociedade é injusta, a cidadania é impotente diante disso, o padrão de justiça de ricos e pobres é igualitarista, e o Estado é o agente da solução da desigualdade”. Este conjunto atuaria diretamente como fator impeditivo de que “a ordem desigual seja vista como ilegítima, por indicar que, no futuro, as coisas estarão melhores do que hoje, e que cada um pode se beneficiar da melhoria geral do país”.
Há, aí, por esta via, a produção de uma “legitimidade da desigualdade”. Os pobres não perceberiam “a estrutura de posições” como ‘desigual’, mas a aceitariam “como consequência esperada de meios vistos como aceitáveis”. Assim, eles “aspiram a essas posições, mas concordam que não as merecem. É o mesmo que dizer que estariam nelas se tivessem feito por isso”. Nestes termos, o que ocorre é que como a sociedade é percebida como aberta, a “frustração em relação à posição atual, se existe, não é vivida como resultado da injustiça social, ou da dinâmica coletiva, mas sim como fracasso individual”.
O que se tem, a partir do exposto, é que os possíveis processos de alteração da ordem restariam obstados em nome de uma ‘utopia brasileira’, como nomeada por Cardoso, ou seja, as sedutoras “promessas sempre amesquinhadas de inclusão nessa mesma ordem desigual”. Associada à forte repressão às ‘forças do trabalho’ ao longo de nossa história republicana, a crença nesta ‘utopia’ deixaria reduzidíssimo, para não dizer nenhum, espaço para projetos alternativos de transformação social. Como antes, e sempre, repressão e consenso em operação. Ante as mudanças sociais profundas e de largo espectro, estaríamos, na sociedade brasileira, entregues às ‘pequenas’ mobilidades sociais, as quais, em um universo de extrema desigualdade, ganhariam dimensão enorme, ainda que em termos ‘pessoais’, além de sempre garantirem a visão de um campo de possibilidades futuro, aberto à frente. Neste quadro, as propostas alternativas e seus atores foram ‘substituídos’ pelo Estado como “agente da utopia social-democrata”.
O estudo de Cardoso auxilia muito no sentido de pensar a ordem social, sua construção e manutenção ao longo do tempo. É uma reprodução que se trata de entender. Como se preocupa com a ‘persistência’, as forças de possibilidade alternativa acabam ficando marginais, sendo minimizadas ou, ainda, sendo trazidas para o interior da reprodução do sistema. Como em todo estudo deste corte, a força do enfoque da reprodução pode gerar uma certa claustrofobia pessimista. O peso do passado molda o presente e engolfa reprodutivamente as possibilidades de futuro.
Após quatro séculos de escravidão no Brasil, e com ela marcando indelevelmente a sociedade capitalista, como ‘escapar’ desta herança? O arremedo de social-democracia que tivemos, se abriu espaços possíveis de superação, forneceu ainda elementos complicadores aos projetos de transformação. ‘Movimentos’ se transmudaram em ‘mobilidade’. Antes de mudar a sociedade, mudar seu lugar nela. Deslocando ainda da cidadania ao Estado o papel de ‘agente da utopia’. E, sobretudo, garantindo, especificada, a persistente desigualdade.
Interessante pensarmos mais especificamente, sob a luz do trabalho de Cardoso, a sociedade brasileira nos últimos dez anos, nos quais retornaram, ainda que atualizadas, as discussões sobre o desenvolvimento ‘econômico’ e ‘social’ e, com elas, a das formas de lidar com a desigualdade social, através de uma perspectiva para além do mercado. Muitos avanços foram conseguidos. Sobre este período, que seria a mais recente estação de um longo percurso, poderiam surgir questões. Entre outras tantas, tais como: que sendas alternativas puderam ou não ter sido abertas em nossa longa herança? Até que ponto reiteramos onde poderíamos ter diferido? Que papel jogaram ou deixaram de jogar as ‘forças do trabalho’ neste processo? Fomos eficazes em produzir bases sólidas para o enfraquecimento dos pilares de sustentação da desigualdade? Seja lá como for, a questão da persistência de nossa desigualdade está e, pelo visto, estará ainda na ordem do dia. E o livro de Cardoso se impõe, nesta quadra, como leitura indispensável.
Marco Aurélio Santana – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). E-mail: marcosilvasantana@gmail.com
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