A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil | David F. L. Gomes

GOMES D Constituição
David Gomes | Foto: ComoEuEscrevo.com

GOMES D A Constituicao ConstituiçãoDavid F. L. Gomes é professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui longa trajetória de pesquisa nas áreas de Teoria da Constituição, Teoria do Estado, Sociologia e História do Direito.

Fruto de sua tese de doutorado, o livro A Constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil foi lançado em 2019, pela editora D’Plácido. Na obra, utilizando-se de um diálogo crítico entre as teorias de Jürgen Habermas (1929-) e Karl Marx (1818-1883), o autor busca reconstruir o conceito moderno de Constituição à luz da perspectiva materialista, a partir da história da Constituição Brasileira de 1824 [1].

Além disso, Gomes se propõe a problematizar sobre as consequências das tradicionais reflexões e teorias constitucionais brasileiras no Direito, majoritariamente influenciadas por leituras dos chamados “intérpretes do Brasil” [2] – pensadores clássicos das ciências humanas que serviram de alicerce, aos constitucionalistas, para a construção e a consolidação de determinada visão sobre a história constitucional do país. Por fim, o autor apresenta sua conclusão a respeito da relação entre Brasil e Modernidade, enlaçando-a ao conceito moderno de Constituição.

Ao contextualizar o ambiente de formação das constituições modernas, Gomes aponta para a crise do antigo sistema colonial como consequência de um novo modo de produção, que estava sendo gestado desde o século XVI. No final do século XVIII e início do XIX, com a consolidação deste novo modo de produção, denominado de capitalista, a necessidade de romper-se vínculos coloniais que o sustentavam começa a sobressair-se, para que o próprio modo de produção capitalista pudesse desenvolver-se nos termos de sua própria lógica interna.

Gomes alerta para o fato de que é enganoso pensar que as colônias estariam avulsas à lógica das metrópoles; pelo contrário, ambas faziam parte de um mesmo modo de produção como pano de fundo. Sendo assim, a partir desta “unidade contraditória” ou de “capitalismo inclusivo”, a colônia portuguesa na América também incorpora a lógica e o conjunto de processos que consolidavam o modo de produção capitalista na Europa, a saber: a difusão da economia de troca, a troca como meio específico de organização de produção e reprodução econômicas. Explica o autor: “Isso porque, estruturalmente, a troca traz consigo exigências imanentes sem as quais ela não se pode desenvolver plenamente”[3].

A função de regular e limitar as relações de troca de determinada sociedade era realizada por cada corpus normativo. Em razão das novas exigências da prática da troca, visando a exclusão de limitações ou restrições para o ato, para que se realizasse com o máximo de potencialidade, haverá um choque entre normas pré-capitalistas (da tradição e dos costumes), e a nova estrutura da troca, que marcará profundamente a transição dos modos de produção e originará um novo direito – o direito moderno. Dessa forma, os indivíduos, libertos dos “laços tradicionais”, vivenciarão na experiência da troca a suposta condição de liberdade, igualdade e independência. Esta nova estrutura se expandirá também a outras esferas da vida, constituindo uma compreensão de autonomia não só pública, mas também privada.

Paralelamente, o controle inédito sobre as forças da natureza, propiciado pelo desenvolvimento das forças produtivas, conduz a uma mudança na percepção da temporalidade. Isto implica na descoberta de que o futuro pode ser algo pensado e planejado, diferente da repetição cíclica do passado, que tornava os indivíduos dependentes. Assim, surge a noção de que a “vontade geral” pode ser diferente a cada geração, permanecendo, no entanto, soberana, e, portanto, não se limitando àquilo que havia estipulado em ocasião anterior. Nesse sentido, a abertura ao futuro também será interpretada como possível ameaça à ordem constitucional. Para que o risco seja afastado, será preciso elevar as normas constitucionais ao patamar de intangibilidade, em que se possa classificar como inválida qualquer tentativa de afetação de seu conteúdo.

De acordo com o autor, os elementos expostos acima apresentavam-se no cenário brasileiro como constitucionais antes mesmo que a Constituição fosse outorgada: “Os elementos do conceito moderno de Constituição invadiam as páginas do debate público luso-brasileiro agrupados na expressão conceitual “sistema constitucional””[4].

Portanto, para Gomes, o conceito moderno de Constituição pode ser visto como um correspondente teórico de uma nova forma de estruturação e lógica de funcionamento de mundo, necessária às mudanças materiais que se apresentavam no início da Modernidade. Esta nova Constituição, porém, não foi formada apenas de imperativos sistêmicos, mas traz incorporados a seu texto fragmentos de vozes e sentidos constitucionais anteriores, como o constitucionalismo histórico, a separação dos poderes de Montesquieu (1689-1755), a defesa das garantias individuais de Benjamin Constant (1836-1891), bem como de uma versão democrática, que pugnava pela construção das leis pelo próprio povo.

A Constituição moderna, conforme a mudança de temporalidade mencionada, é voltada ao futuro, datada e assinada por um ente declarado como soberano, no exercício de seu poder constituinte originário. Este ente, ao menos tendencialmente, é conceituado como todo social, povo, nação etc. Largamente influenciada pelos ideais liberais franceses, a Constituição moderna é marcada, ainda, pela garantia de direitos fundamentais e pela divisão de poderes, ao mesmo tempo em que assegura a vivência prática, em curso, das autonomias privadas e públicas dos sujeitos. A configuração que esta Constituição assume é necessária ao sistema econômico capitalista ao estabelecer a equivalência entre os homens em suas experiências de troca, garantindo ainda que um mínimo de direitos cumpra a função de ter-se algo para perder, “além dos grilhões”.

Gomes aponta que o conceito moderno de Constituição é internamente contraditório e dialético, uma vez que comporta em si as condições de reprodução da economia capitalista, ao mesmo tempo em que institucionaliza as expectativas normativas universalizáveis contrárias [5], como os direitos trabalhistas, direitos difusos e coletivos. Todavia, naquela época, os imperativos sistêmicos e as expectativas normativas, por vezes, coincidiam. A necessidade de uma Constituição, portanto, não provinha apenas do sistema econômico, mas também da vontade comunicativa do povo.

Nesse sentido, Gomes critica as leituras de autores consolidados, especialmente aquelas de Niklas Luhmann (1927-1998) e Marcelo Neves, que classifica como um “curto circuito entre história constitucional e teoria da Constituição”. A teoria explicativa de Luhmann para a formação da Constituição, em linhas gerais, assenta-se no acoplamento estrutural entre Direito e Política como mecanismo de projeção de expectativas normativas em face da complexidade da sociedade globalizada, apresentada em sua Teoria dos Sistemas. Todavia, Gomes ressalta que Luhmann não explica a origem e o sentido desta complexidade, menosprezando o imperativo econômico em sua teoria, e reduzindo a Constituição à ligação entre o sistema do Direito e da Política. Em outras palavras, Gomes afirma que na teoria de Luhmann não há vínculo direto do Direito com a Economia, salvo quando mediado pela política. 5 Como exemplo, Gomes cita o fato de que o liberalismo nunca foi incompatível com a escravidão, desde que se baseasse no direito de propriedade. Porém, do mesmo modo que se institucionalizaram as condições materiais para tal, os novos direitos sociais também possibilitaram, pela via comunicativa, a percepção crítica, pela própria população, do caráter insustentável da escravidão.

Com o ofuscamento da indispensabilidade da Constituição moderna para o adequado funcionamento do sistema econômico, poderia concluir-se, pela leitura de Luhmann, que “[…] o desempenho adequado desse sistema não tem nada a dizer sobre a eficácia e a efetividade da Constituição”´[6]. Desse modo, “[…] se esse desempenho bem sucedido, se o livre curso da lógica depurada de autovalorização do capital institucionalmente assegurada pela Constituição, descamba em desigualdades escandalosas” [7], em cisões internas e privilégios de todo tipo, o sistema econômico não teria responsabilidade alguma – o que serve, segundo Gomes, para justificar a histórica e insistente narrativa da ineficácia normativa da Constituição.

Assim, o autor retoma sua explicação de complexificação da Modernidade, baseada na tensão entre imperativos sistêmicos do modo de produção capitalista e as expectativas normativas igualitárias, advindas de um mundo da vida constituído linguisticamente. Portanto, para Gomes, o único sistema propriamente dito seria o sistema econômico, a quem fariam frente expectativas igualitárias populares derivadas da linguagem que ele próprio possibilitou. Desse modo, se a economia sobressai-se no plano estrutural, no plano semântico há o primado das mídias de massa, que expandem as possibilidades espaciais e temporais de interação comunicativa. Em última análise, o primado do sistema econômico e das mídias de massa poderiam corresponder às determinações fundamentais do mundo moderno, ou seja, entre a tensão dos imperativos sistêmicos do modo de produção capitalista e expectativas normativas igualitárias.

Quanto à crítica a Marcelo Neves, Gomes observa a influência, na obra do constitucionalista, da tradição dos míticos “intérpretes do Brasil”, que classifica como “tradição ressentida”, na qual só cabem lamentações da “falta de ação do povo”, da existência de uma Constituição simbólica[8], semântica, e, enfim, de “tudo o que o país não foi e poderia ter sido”. Desse modo, Gomes observa uma ausência, nas teorias constitucionais inspiradas pelas obras destes intérpretes, do protagonismo das lutas populares históricas, sempre presentes, travadas contra privilégios e desigualdades, a favor de bases igualitárias no país.

Argumenta Gomes que, se a Constituição moderna é definida, por um lado, pela institucionalização das condições materiais para a reprodução do modo de produção capitalista, a problemática levantada pelos autores acerca da ineficácia da constituição não faz sentido. Nas palavras do autor, “[…] uma Constituição assim conceituada possui um grau elevado de eficácia e efetividade todas as vezes em que sob sua égide, a economia de troca consegue desenvolver-se adequadamente”[9]. Assim, essas acusações só fariam sentido caso tomasse-se a Constituição apenas como a institucionalização de expectativas normativas igualitárias, criada no seio de um povo soberano que busca equilíbrio político, e manifestada em normas jurídicas fundamentais.

O autor ressalta que, em que pese existirem momentos de inércia social e retrocessos na história brasileira, as expectativas internas de uma prática social comunicativamente estabelecida permaneceram e permanecem operando. Reivindicando um estatuto epistêmico autônomo, Gomes argumenta que, em uma teoria da Constituição baseada nos conceitos de Modernidade e de Constituição moderna, a história brasileira representa não só uma eficácia constitucional do ponto de vista dos imperativos sistêmicos do modo de produção, mas também do da institucionalização das condições de práticas comunicativas que possibilitam a aprendizagem social, que, por sua vez, fazem frente à economia da troca. Sendo assim, esta teoria tem seus fundamentos além da imediata empiria da história e “[…] reinterpreta esta de modo a apreender nela os conflitos internos que ineludivelmente a formam: todos os privilégios dos vencedores, mas também todos os momentos em que os derrotados não cessaram de lutar”[10].

Finalmente, Gomes pontua que o argumento da ineficácia da Constituição em concretizar seus conteúdos igualitários não deve ser atribuído à Constituição, uma vez que são disputas internas a ela, disputas pelo sentido da e na Constituição:

Perante um quadro como o do tempo presente a tarefa que se põe não é simplesmente a de uma defesa ativa da Constituição, mas a de uma defesa intransigente daquilo que nela expressa as expectativas normativas igualitárias oriundas de contextos comunicativos contrafaticamente livres de coerção, opondo-as às tentativas, que já estão em curso e que fatalmente continuarão a procurar adeptos, de reduzir a Constituição àquilo que nela não faz mais do que institucionalizar as condições de reprodução da economia de troca capitalista – as condições de autovalorização do valor. [11]

Ressalta Gomes o crescente número de pessoas que, diante de opressões vivenciadas, voltam-se contra a ordem constitucional, ignorando completamente qualquer sentido emancipatório ou crítico que este campo possa ter. Todavia, não há vácuo de poder. A Constituição, descartada pelos grupos que dela poderiam fazer um uso contrário a apropriações conservadoras, torna-se presa fácil de abordagens vazias, vulgares e superficiais, porém, bastante eficazes “[…] para completar o trabalho de esvaziamento emancipatório que uma certa esquerda ela mesma não se preocupou em interromper – não poucas vezes, aliás, foi essa própria esquerda quem deu início a tal trabalho de esvaziamento”[12].

Diante da indispensabilidade da Constituição para ambos os lados, a luta em torno desta não pode ser menosprezada, motivo pelo qual a leitura de A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil mostra-se tão relevante, oferecendo novas lentes para se repensar o constitucionalismo brasileiro e seus dilemas ainda atuais.

Notas

1. Importante salientar que grande parte da pesquisa de Gomes foi desenvolvida a partir de fontes históricas primárias, sendo as mais relevantes os anais da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, de 1823, os escritos de Frei Caneca, panfletos manuscritos e impressos publicados entre os anos de 1820 e 1823, e outros documentos oficiais. Ademais, a tese originária, concluída em 2016, foi vencedora do Prêmio UFMG de Teses na área do Direito, com menção honrosa no Prêmio CAPES de Teses (Direito) e no Grande Prêmio UFMG de Teses (Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes).

2. Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Raymundo Faoro (1925-2003), Nestor Duarte (1902-1970), dentre outros.

3. GOMES, David F. L. A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. p. 140.

4. Ibidem, p. 164.

5. Como exemplo, Gomes cita o fato de que o liberalismo nunca foi incompatível com a escravidão, desde que se baseasse no direito de propriedade. Porém, do mesmo modo que se institucionalizaram as condições materiais para tal, os novos direitos sociais também possibilitaram, pela via comunicativa, a percepção crítica, pela própria população, do caráter insustentável da escravidão.

6. Ibidem, p. 272.

7. Idem.

8. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. Nova edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

9. GOMES, op. cit., p. 274.

10. Ibidem, p. 276.

11. Ibidem, p. 287.

12. Idem.

Referências

GOMES, David F. L. A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. Nova edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Victor Lemes Cruzeiro –  Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) Professor do Instituto Federal de Goiás (IFG) Cidade de Goiás, GO, Brasil. E-mail: victor.cruzeiro@ifg.edu.br  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2417-6441


Resenhista

Vanessa Ribeiro do Prado –  Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: rpradovanessa@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0858-3373


Referências desta resenha

GOMES, David F. L. A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. Resenha de: CRUZEIRO, Victor Lemes; PRADO, Vanessa Ribeiro do. A Constituição Brasileira de 1824 por lentes materialistas. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.3, n.6, p.1-7, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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