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A Coleção Adandozan do Museu Nacional. Brasil-Daomé/ 1818-2018 | Mariza de Carvalho Soares

O livro aqui resenhado, vale ressaltar de início, toma outra dimensão ao relembrar o devastador incêndio sofrido pelo Museu Nacional em 2 de setembro de 2018, transformando em cinzas objetos ali guardados ou expostos, entre eles os da coleção estudada pela historiadora Mariza Soares. Acontecimento que confirma o aspecto trágico e a impermanência que rondam museus e coleções no Brasil.1 Isso torna este livro um material de prova, documento e memória daquilo que foi irremediavelmente destruído. Ele foi escrito, declara a autora, para “dar vida a algo que já não existe”, e feito, muito apropriadamente, juntando o argumento historiográfico às práticas de museus (p. 35).

O ponto de partida para o estudo se deu ao serem levantadas informações de uma carta que levaram à identificação de objetos, carta e objetos guardados em instituições distintas. A carta de 9 de outubro de 1810 enviada por Adandozan, governante do Daomé (1797-1818), para d. João, príncipe regente de Portugal então residente no Rio de Janeiro, foi encontrada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)2 e os objetos nela mencionados como presentes para o governante foram localizados no acervo etnográfico do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em determinado trecho de sua obra Mariza Soares diz que a “leitura da lista dos presentes” possibilitou associar a carta aos objetos (p. 18), porém, considerando a pesquisa e os resultados publicados, trata-se de muito mais. Merece atenção que a associação entre a carta e os presentes revela a atitude detetivesca da historiadora, que seguiu indícios e rastros para elucidar intrincadas conexões.

Mais diretamente, um dos primeiros objetivos do rastreamento da coleção foi separar os “presentes do restante do acervo africano e estudá-los a partir de seus significados e usos no Daomé” (p. 68). Para tanto, apoiada em pesada bagagem interdisciplinar, escolheu ao longo dos capítulos abordagens, levantou hipóteses e alcançou respostas, algumas por dedução ou possibilidades, empreendendo vasto acervo de metodologias, procedimentos e análises, dentre as quais as museológicas.

Acompanhando suas publicações, constata-se sobre o tema do livro um processo desenvolvido passo a passo, ao longo de mais de uma década, com resultados parciais publicados. A Coleção Adandozan preenche lacunas de cunho historiográfico e museológico.

A essa altura poderíamos perguntar: que interesses podem suscitar objetos guardados em museus e qual o alcance do estudo de uma coleção deles? Ou uma pergunta mais ampla: qual a contribuição da cultura material para a história social da cultura? Como lidar com a intrincada trajetória de objetos via de regra deslocados de um lugar para outro e que, neste caso específico, mudaram do estatuto de presentes diplomáticos para objetos de museu? De imediato se impõe para a reflexão mais um ponto no plano propriamente museológico: é possível creditar fidedignidade às informações sobre os objetos a partir de procedimentos técnicos como fichas, listas, inventários, outros registros que podem ou não ter sido anotados e, além disso, se alteraram enormemente com o passar do tempo? Dito de outro modo: como lidar com vácuos de informações fundamentais para a identificação de objetos, a exemplo de dados sobre proveniência, período, modo como chegaram ao museu (o que comumente se dá através de doações, empréstimos, compras, legados, portanto, em circunstâncias e condições diferentes e até indecifráveis)? Da mesma forma, como trabalhar com denominações, categorias e classes que mudaram (e mudam), atribuídas segundo conhecimentos, visões e interesses de época (inclusive os técnicos) e estabelecidas em períodos históricos marcados por diferentes fatores que alteram o conhecimento que deles se tem, a posição que ocupam no interior de determinado acervo e dentro de mesmo um museu?

Fato é que uma pergunta se abre em camadas para tantas outras. São elas que conformam a parte mais significativa dos obstáculos que a pesquisadora enfrentou para circunscrever a Coleção Adandozan, razão para o emprego do termo “construção” no escopo da coleção Africana do Museu Nacional (Capitulo 2).3 Situação que a fez se embrenhar, durante anos, na correlação entre registros e o desenvolvimento de observações diretas e sistemáticas das peças a que teve acesso, para o que aplicou estudos comparativos com acervos similares de outros museus nacionais ou do exterior.4

A autora compôs sete capítulos. Em dois deles, “As galanterias de dadá Adandozan” (cap. 1) e “A construção da Coleção Adandozan do Museu Nacional” (cap. 2) tratam de contextos históricos e museológicos. Cinco capítulos são dedicados ao estudo de objetos selecionados que são tratados detalhadamente: o zinkpo do Museu Nacional (cap. 3); a bandeira de guerra (cap. 4); o pano de dados (cap. 5); o artesanato em couro dos malês de Abomé (cap. 6); e a bolsa de tabaco no culto dos tohosu (cap. 7).

Alicerçada em consistente base empírica, formada por documentos manuscritos e impressos, relatos de viajantes e de outros autores, entre outras publicações (do século XVIII, XIX e mais recentes), Soares demonstra profundo conhecimento do território no qual transita e provê o leitor com generosas notas de rodapé (ao todo 550), em evidente desejo de dar a conhecer os caminhos pelos quais avançou e o que foi descobrindo no trajeto. Principalmente, ela conectou com coerência os dados levantados, propiciando ao leitor acompanhá-la de perto na construção deste livro.

No plano teórico-metodológico, optou por dois conceitos que a auxiliaram na compreensão do acervo africano em seu conjunto: o de “situação colonial” cunhado por Georges Balandier (1951), e o de “situação histórica”, do antropólogo João Pacheco de Oliveira, curador das coleções etnográficas do Museu Nacional (1988). Assim equipada, estabeleceu meios para analisar e discutir as tensões e conflitos das situações coloniais e perscrutar as conjunturas mutantes no tempo para, então, discernir relações de poder, motivações, possíveis significados daquilo que se tornou coleção no Museu (pp. 66-67).5 O que não quer 5 Com base na situação histórica, a autora traz o contexto do estudo da coleção dizer que deixou ao largo a questão da descolonização das coleções africanas. Ao contrário, aportada justamente em contextos históricos, mostra que, desde 2011, pensar a pesquisa foi também pensar a descolonização das coleções coloniais e em particular o acervo africano do Museu Nacional, posicionamento erigido justamente para liberá-lo do “lugar subalterno a que foi(ram) destinado(s)”, e o mesmo faz para instituições de ensino e pesquisa, inclusive com vistas a evitar as artimanhas (“contaminação”, nas palavras da autora) que os sujeitaram ao mercado de arte (pp. 69-70).

A determinação do embasamento teórico-conceitual abriu em leque a possibilidade de esquadrinhar circunstâncias e acionar relações – históricas, políticas, sociais, culturais, as de produção, circulação e uso – investigadas e descritas em cada segmento dos capítulos. Cobre, assim, um amplo espectro de tópicos, como o comércio atlântico de pessoas escravizadas, discute lideranças políticas e diplomáticas africanas, contribuindo, portanto, para a historiografia da África Negra. A Introdução, nesse particular, se refere à “história do Danhomè (Daomé) na virada do XVIII e XIX” (p. 15). Para a atual região da República do Benim evidencia na epígrafe tratar-se de uma história “pobre” em documentos (termos de Isaac Adeagbo Akinjogbin, 1967), ainda que aflorada desde as primeiras décadas do século XVII.

Para assentar um ponto inicial, Mariza Soares retoma a conquista da saída para o mar, pelo Daomé, como imprescindível para o “crescimento do comércio de seres humanos para as Américas” (p. 16); consulta historiadores que trataram sobre o reino africano; indica narrativas predominantes e disputas locais para então posicionar dadá Adandozan numa narrativa que corrija o “esquecimento proposital” da versão oficial inaugurada por seu sucessor, Guezo (p. 23). Embora Adandozan – de controversa biografia e história em aberto (p. 33) – não seja foco principal do livro, mas, sim, os presentes e particularmente o modo como Adandozan os reuniu (p. 15), compreender sua posição e intenções (de Guezo) foi indispensável para a percepção da coleção, de tal modo que sua presença permeia da Introdução ao estudo específico dos objetos. Vale mencionar que, junto com os presentes, vieram também seis prisioneiros de guerra, igualmente citados na carta, com o fito de comporem a “cerimônia concebida por Adandozan para impressionar dom João”. Seriam eles os narradores de fatos de guerra importantes deste rei africano, tudo feito para impressionar com demonstrações de seu poder o governante português e dele arrancar um compromisso em dar ao Daomé a primazia no tráfico negreiro feito a partir do golfo do Benim (p. 45).

Uma vez no campo da diplomacia, a autora recupera a presença de missões diplomáticas anteriores e a presença de representantes dos reinos africanos no Brasil (particularmente em 1810), pondo na mesa possibilidades de alianças comerciais que, consequentemente, interferiram no adiamento da extinção do tráfico e, portanto, do próprio sistema escravista.

Ao retomar esses antecedentes, ela estabelece balizas cronológicas para a diplomacia dos governantes africanos, as questões em disputa e os esforços para renovar negociações determinantes, até chegar (a autora) à explicação das “galanterias” enviadas da África ao Brasil e posteriormente transformadas em itens de uma coleção (Capítulo 1). Ao caracterizar os presentes como ofertas diplomáticas, Soares delimita significativamente a Coleção Adandozan “fora dos parâmetros mais usuais das coleções coloniais” tão características dos museus de história natural, criados no XIX, como o foi na chamada Casa dos Pássaros (ou Gabinete de História Natural, extinto em 1813) (p. 70), depois Museu Real (1818), instalado no Campo de Santana, Rio de Janeiro. Instituição museológica que, por sua vez, passou por muitas mudanças tornando-se Museu Imperial, em 1822, transferido para o Paço de São Cristóvão, e Museu Nacional em 1842 (p. 71). Alterações que correspondem ao “deslocamento da burocracia político-diplomática para um campo de ciência”, com efeitos sobre a ressignificação dos objetos (p. 71), ao tempo em que esmiúça decisões assumidas por sucessivos diretores do Museu em relação ao acervo etnográfico.

Muitos são os aspectos, retalhados em facetas singularizadas, que a autora oferece para interpretar as situações históricas mais próximas ou circundantes que fazem aflorar motivos e intenções (p. 67), no intuito de retraçar caminhos sem perder de vista o seu objetivo: compreender a trajetória dos presentes até o Museu Nacional e, nele, onde se encontravam. Tomemos como exemplo o destino dado aos objetos, passo significativo para o estudo de coleções quer do ângulo historiográfico, quer do museológico. Identificar possíveis paradas e retomadas de percurso na longa biografia dos presentes e, por extensão, na formação da própria coleção, levando em conta um período que soma mais de duzentos anos, deixa a pergunta: o que deles foi feito?

Mariza Soares identifica o que seria uma primeira parada quando os enviados de Adandozan com os presentes foram obrigados a permanecer na Bahia,6 impedidos por ordem régia de 6 de fevereiro de 1811 de chegar ao Rio de Janeiro, em razão da vulnerável situação de dom João: de um lado, comprimido pela abolição do tráfico pelos ingleses (1807) e o tratado antitráfico de Comércio e Aliança e Amizade, firmado entre Portugal e Inglaterra em 1810 (p. 43 e 45); e, do outro, o interesse em continuar o comércio dos traficantes brasileiros (p. 47). Coube ao conde dos Arcos, governador da Bahia, segurar a comitiva em Salvador (aí ficando até o retorno para Ajudá, em 15 de outubro de 1812) (p. 54), mas antes enviou os “montões de objetos frívolos” (p. 46) para a Corte, em 1811, onde foram recebidos pelo conde das Galveas.

A partir desse momento, prossegue de modo mais denso a biografia dos objetos e, em simultâneo, assinalando a sua integridade; informação de importância, tendo em vista as questões que envolvem o estado de conservação e se refletem na existência ou não daquilo que chegou e porventura se manteve no Museu Nacional. Ainda que declare não saber o destino exato dado aos objetos (p. 49), pois não encontrou documentos esclarecedores desse primeiro momento, tampouco a data ou quem os enviou ao Museu (p. 70), Mariza Soares recorre aos dados colhidos de suas diligentes pesquisas. Emprega um cuidadoso “talvez” ao sugerir que, a partir de hábitos diplomáticos anteriores, a guarda dos presentes pode ter ficado com funcionários régios ou colocados no gabinete de curiosidades de dom João, e daí encaminhados para o Museu Real, em 1818 (p. 49). Aqui se tem implícita uma das repercussões da metodologia tecida pela autora, que assim procura dar conta do verdadeiro quebra-cabeça de uma história cheia de descaminhos, o que se evidencia pela marcante relevância da investigação até o limite do possível.

No Capítulo 1 também se pode ler a carta de Adandozan enviada para o Rio de Janeiro, ali esmiuçada pela historiadora. Mais do que as coisas em si, ela compõe o eixo de articulação do livro. Nessa altura, coteja perspectivas sobre o estatuto de reis e ou governantes (europeus e africanos), hierarquias, protocolos de condutas de aproximação ou, ao contrário, condutas de afastamento, mediações, simbolismos, recriando contextos e ambientes de sociabilidade para o período em que foi redigida. A partir daquela correspondência a autora pinça circunstâncias específicas para evidenciar a formação do que seria a coleção, distinguindo-a em certo sentido dos motivos mais usuais afeitos ao colecionismo ainda que, posteriormente, os objetos, por um propósito ou outro, aportassem no Museu Nacional.7

Para mapear o plano do simbólico do conteúdo da carta, Soares detecta a intenção e equiparação do estatuto de rei e governante de Adandozan com dom João – “oferecer(imento) a meu irmão (d)as galantarias… que se fabricam na minha terra” (p. 51; grifo nosso); a personificação – pela escolha e o uso pessoal de Adandozan (p. 59); a qualidade de distinção – são objetos restritos aos “monarcas e altos dignitários do Daomé” (p. 57); e a serventia – Adandozan descreve-os e indica como deviam ser usados (p. 51, 53, 57, 59, 60). Munida desses traços distintivos, a autora posiciona os presentes “fora do circuito de troca das mercadorias” (seguindo o antropólogo indiano Arjun Appadurai). Em ângulo complementar, aponta que o ato de presentear continha a expectativa da reciprocidade, ou seja, de receber preferencialmente itens de luxo e de tecnologia vindos da Europa, conforme pediu o chefe africano ao português, possibilitando entrever a variedade de objetos que circulavam de um território para outro. Adandozan, assim, fez de Portugal a “porta de acesso a bens não disponíveis na Costa da Mina” (p. 58).

No Capítulo 2, focaliza as práticas museológicas enveredando pelo universo no mínimo complexo dos procedimentos do que chamou “museologização” (p. 70), que pode ser entendida como equivalente a musealização, uma vez que se trata do mesmo deslocamento imposto ao objeto para o ambiente museal, com grande probabilidade de perda de conexões anteriores e, portanto, do esfumaçar de referências históricas.8 Tanto é que Mariza Soares assinala que não encontrou nenhum registro, catálogo ou inventário do século XIX (p. 65). Narra, então, as estratégias para circunscrever a precariedade dos registros, ora uma existência cercada de disparidades, ora lacunas difíceis de preencher, ou, melhor dizendo, preenchidas no horizonte do possível e graças ao empenho de acuradas pesquisas.9

Não foram poucas as dificuldades que Soares enfrentou e que a fizeram imergir nas áreas técnicas, nas expositivas e nas de reserva do Museu Nacional. Trabalho necessariamente desenvolvido em etapas e por comparação para conferir e combinar informações com os objetos e vice-versa. É o que nos diz ao declarar que informações sobre “coletor, data de coleta e procedência são básicas para qualquer catalogação, mas, na maioria das vezes, não estão disponíveis e a identificação acaba sendo feita por comparação” (p. 161). Traçou para isso um plano de ação sistêmico, no sentido de cobrir cada segmento das tarefas que se espera de um museu, sistematizando-as.10

Para seguir o ciclo de tarefas, a autora sentiu a necessidade de ter idéia do número de peças do acervo a partir da realização de um inventário (em 2011-2012); elaborou listagens e catalogou peças; reuniu pequenos conjuntos depois organizados em coleções (p. 65); consultou documentos do arquivo do Museu (como cadernos manuscritos de 1906) e catálogos existentes e, neles, cuidou de verificar descrições e números (quando registrados); comparou fotografias de antigas exposições observando espaços, croquis, a distribuição e quais peças apareciam ou não em armários, vitrines e mesmo o redigido em etiquetas de objetos, investigando o plano propriamente museográfico.

Em relação à historiografia do Museu Nacional, se inteirou de alterações promovidas por sucessivos diretores no intento de seguir o desenvolvimento científico em diferentes épocas, analisou regulamentos, arranjos e critérios de organização de seções criadas ou extintas.11 Ou seja, para detectar os presentes foi indispensável discernir o conteúdo do acervo africano e explorar meticulosamente peça a peça.12 Esta faina – e aqui cabe bem a conhecida expressão “trabalho de formiguinha”, o que significa ocupação paciente, persistente e certamente em equipe –, levou Mariza Soares a dedicar-se à curadoria (entre 2013 e 2016) da Nova Sala África, ali expondo sete dos 21 objetos até então identificados da Coleção Adandozan (p. 84); outros 44 foram localizados até 2017 (p. 86); mais 30 em reserva técnica; alguns poucos não encontrados (p. 94). Dessa experiência resultou a exposição Kumbukumbu: África, memória e patrimônio, que incluiu objetos pessoais de Adandozan (p. 119).13

Nos capítulos seguintes (3 ao 7), a autora trata de forma mais circunstanciada quatro peças, mas, ainda no Capitulo 2, já apresenta informações gerais sobre os seguintes objetos: duas esteiras; duas poltronas; quatro bastões; quatro caixas de cachimbo; sete panos; um coxim; uma calça; três anéis; um chapéu de sol (pp. 87-93); alguns ilustrados em fotos ou gravuras. Nessa ordem de ideias, no fechamento deste segmento, Soares estabelece o arco de ligação com as partes subsequentes, deixando evidente o que virá adiante e o seu propósito: o estudo dos objetos, seus usos e técnicas de fabricação no início do Oitocentos, e quando possível a reapropriação de seus usos em Abomé ao longo dos séculos XIX e parte do XX (p. 95).

Entende-se que, sob esse ângulo, a autora empreende o estudo específico de cultura material que em muito carrega a noção de artefato, objetos dos quais dependemos e que nos constituem, além do que refletem e refratam a sociedade que os produz, os consome e os faz circular.14 Objetos demandam gestos, e gestos artesanais respondem às mais variadas necessidades; portanto, geram efeitos.15 Por isso, e em particular nos museus, são abordados como suportes físicos de informação que invocam testemunhos. Não obstante matéria física, a eles estão atadas outras dimensões do social, isto é, dimensões imateriais.16 Essa a inflexão geral que a autora dará ao zinkpo, à bandeira de guerra, ao pano de dados, às peças em couro dos malês de Abomé e à bolsa de tabaco no “culto dos tohosu” (pp. 97-245). No movimento para identificar, interpretar e comparar cada um desses exemplares da Coleção Adandozan, Soares dá mostras de como lidou com a questão da fidedignidade das informações e relata os obstáculos com os quais se deparou, ao mesmo tempo em que apresenta os procedimentos que a levaram a suplantá-los.

Com efeito, ao dedicar-se a apresentar objetos específicos nesse segmento do livro, a autora avança na compreensão de sua complexidade sócio-cultural, em atitude comprometida com o que há de mais atual no estudo de coleções e sua respectiva historiografia. Em suas próprias palavras, o estudo dos presentes se insere em “complexos processos sociais envolvidos em cada situação particular” (pp. 27-28), portanto, empreende um estudo de dinâmicas multidimensionais.

Para tanto, a autora lança mão de um amplo cabedal investigativo para interpretar cada objeto, aludindo descrições encontradas em documentos de arquivos, relatos de viajantes e autores que citaram ou estudaram alguns desses objetos.17 Sua pesquisa a levou ao lugar de origem dos objetos, a República do Benim (antigo reino do Daomé), coletando ali as diferentes denominações para os mesmos, comparando desenhos, ilustrações e fotografias (algumas de sua própria autoria), indicando ocasiões de uso, tipos e feitios, materiais de fabricação, cores, dimensões e peso, decorações e grafismos, modos de confecção, estado de conservação e assim por diante. Explora, portanto, a materialidade dos objetos, descrevendo-os em minúcia, estudando-os nos planos conexos das perspectivas histórica, sociológica, antropológica, artística, o que faz qualquer menção a cada um deles um risco de empobrecer a amplitude que a autora imprime à sua análise. Mas correrei esse risco.

Para se ter ideia do nível de detalhes e relações que a historiadora procura estabelecer no caso do zinkpo, ela inicia com as diferentes classificações (banco, cadeira, trono) (p. 97), ou “trono(s) do Daomé” (p. 109), segundo os registros museológicos. Seu olhar percorre, dentre outros aspectos, os usos, tipos e feitios, madeiras utilizadas, decorações e representações gráficas, chegando aos entalhadores e à informação de que também esculpiam objetos religiosos, que pertenciam a uma profissão “altamente respeitada” abraçada por gerações pelas mesmas famílias (p. 109). O “trono”, aliás, passaria a ocupar lugar de destaque na exposição de que foi curadora e fez tanto sucesso que foi mencionada em samba-enredo do carnaval carioca (pp. 121-122).

Sobre a bandeira de guerra (cap. 4), que Soares define como uma “dramática alegoria do poder bélico de Adandozan” (p. 129) – cujo tema é o destino dos “prisioneiros de uma batalha acontecida em Agonsa, por volta de 1805” (p. 142) –, ela aponta ser o “mais antigo pano aplicado então conhecido”, e foi destruído pelo fogo em 2018. Se perderam, assim, informações a respeito de uma linguagem visual que ajudava a “reconstituir a narrativa que deu origem à sua composição, apresentada pelo próprio doador” (p. 145; grifo nosso), referindo-se Adandozan e o conteúdo de sua carta a dom João. Mariza Soares como que entranha na peça – na “arte dos panos” destinada ao rei e outros dignitários em função memorativa de seus feitos (p. 135) – para comparar elementos particulares: material fabril, tipo e qualidade do tecido, tecelagem, a técnica do aplique e o direcionamento vertical ou horizontal, padrões, cores, formato, dimensões, simetrias ou assimetrias (caso das emendas do pano) e, principalmente, pormenores das figuras aplicadas. No seu horizonte a preocupação em identificar os fabricantes e modos de produção (artistas servidores do palácio), o gênero (atividade masculina no Daomé), a relação entre arte e poder (p. 137), mudanças de padrões em comparação com peças similares, como panos funerários.

O mesmo exercício de comparação pormenorizada ela faz para o pano de dados (cap. 5), porém, procura centrar-se na presença deles no Daomé (p. 168) e sua conexão com diferentes centros comerciais da rota do Sahel (p. 177). Discute particularidades: os usos dos panos no Daomé do século XVIII; a circulação de panos de luxo pelo comércio atlântico; padrões; denominações em catálogos, dentre outros detalhes. E, em razão da falta de informações, a autora intui uma identificação geral com a tecelagem, advinda do Mali ou de Serra Leoa, típica dos mandês (p. 165), apontando a presença de comerciantes de caravanas que percorriam a faixa do Sahel, uma “forte rede comercial que se estendeu por todo o Bilad al-Sudan (Terra dos Povos Negros, em árabe)” (pp. 165-166), composta por homens de fé muçulmana, que junto com a distribuição dos tecidos promoviam a expansão islâmica na África ocidental (pp. 171-172). Sua investigação lhe dá suporte para acreditar que os sete panos presenteados por Adandozan para serem usados como vestimentas (p. 163) representam uma presença pouco esperada em Abomé, haja vista a movimentação típica de caravanas comerciais na rota do Sahel que não passavam por lá (p. 182).

A mesma preocupação em “ultrapassar a singularidade dos objetos” está presente na abordagem sobre o artesanato em couro dos malês em Abomé (cap. 6) e na bolsa de tabaco no culto dos tohosu. Há uma postura declarada nas escolhas feitas a partir do “imenso repertório de objetos, imagens e símbolos disponíveis no rico universo cultural daomeano” (p. 241). Esse o exercício, cavado em profundidade, para desembaraçar as fragilidades encontradas nos registros institucionalizados, fazendo a diferença na sua descrição museográfica. No Caderno de Fotos (pp. 276-287) pode-se ver as peças da Coleção Adandozan que, infelizmente, não mais existem.

Se fica evidente que há diferenças e distâncias entre os registros em museus e as pesquisas que esquadrinham além dos objetos, é de grande valia o balanço de Mariza Soares. Com ela aprendemos que os objetos estão envolvidos em tramas complicadas, e assim sua pesquisa, que é antes de tudo histórica, “caminha justamente na contramão das classificações generalistas” e “precisa ser pensada como parte de processos históricos mais longos e complexos” (p. 69). Fica a recomendação.


Notas

1 Clovis Carvalho Britto e Marijara Souza Queiroz, “Entre memória, sonho e embriaguez: à guisa de apresentação” in Britto e Queiroz (orgs.), O trágico nos museus. Perspectivas sobre colecionismo, memória e morte (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022), pp. 9-21.

2 Ver também Mariza de Carvalho Soares, “Trocando galanterias: a diplomacia do comércio de escravos, Brasil – Daomé, 1810-1812”, Afro-Ásia, n. 49 (2014), pp. 229-271.

3 A composição da coleção Africana resultou de projeto de reorganização do acervo de objetos africanos do Museu Nacional. Mariza de Carvalho Soares e Rachel Corrêa Lima, “A Africana do Museu Nacional: história e museologia” in Camila Agostini (org.), Objetos da escravidão: abordagens sobre a cultura material da escravidão e seu legado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013), pp. 337-359.

4 Na versão final do livro foi priorizado o Musée Du Quai Branly, na França (p. 64).

5 Com base na situação histórica, a autora traz o contexto do estudo da coleção quando da gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva nos seus dois mandatos (2003-2011), e os esforços para empreender relações diplomáticas com países africanos, o ensino e a pesquisa sobre a história da África no Brasil, e a política cultural seguida no governo Dilma Rousseff (2011-2016), beneficiando o projeto Africana do Museu Nacional com o objetivo de abrir o acesso da coleção ao público (p. 67).

6 A autora chama a atenção para o fato de que a permanência dos embaixadores em Salvador “não mereceu atenção dos memorialistas baianos” (p. 49).

7 Para alguns autores uma coleção pode ser fruto de tradição social determinante de valor e importância, expressão de poder, recurso de inserção social, regida por normas emanadas da sociedade e manejada por indivíduos, determinação do gosto, dentre outros atributos impostos socialmente. Ver por exemplo Paulo de Freitas Costa, Sinfonia de objetos. A coleção de Ema Gordon Klabin, São Paulo: Iluminuras, 2007.

8 Deve-se considerar que determinadas informações não deviam ser relevantes no passado como o são mais recentemente. Sobre a historiografia dos registros em museus, consultar María Teresa Marín Torres, Historia de la documentación museologica: la gestión de la memória artística, Gijon: Ediciones Trea, 2002, p. 384.

9 A precariedade, a falta, as disparidades de informações e a dispersão de objetos em museus são dificuldades comuns em instituições nacionais ou estrangeiras, e rondam a documentação museológica cuja função geral é produzir registros (fichas de identificação ou fichas catalográficas item a item, ou conjuntos; listas; inventários; catálogos, etc.); atribuir numeração; definir categorias tendo em vista o controle e a organização do acervo, de forma a apoiar a gestão institucional, divulgação e pesquisa. Suely Moraes Ceravolo e Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tálamo, “Tratamento e organização de informações documentárias em museus”, Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 10 (2000), pp. 241-253.

10 Parte da sistematização está exemplificada nos Apêndices (pp. 266-272).

11 Sobre a historiografia científica dos sucessivos diretores do Museu Nacional, consultar também Maria Margaret Lopes, O Brasil descobre a pesquisa científica. Os museus e as ciências naturais no século XIX. 2ª.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da UNB, 2009.

12 O rastreamento dos presentes no conjunto do acervo africano do Museu Nacional também lhe permitiu identificar outra coleção. Mariza de Carvalho Soares; Michele de Barcelos Agostinho, “A coleção ovimbundu do Museu Nacional, Angola 1929-1935”, Mana, v. 22, n. 2 (2016), pp. 493-518.

13 Ver catálogo em Mariza de C. Soares, Michelle de B. Agostinho e Rachel C. Lima, Kumbukumbu: África, memória e patrimônio, Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2022.

14 Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, “O objeto material como documento”, Disciplinas da USP, 1980.

15 José Newton Coelho Meneses, Apresentação: culturas alimentares, práticas e artefatos, Varia Historia, v. 27, n. 46 (2011), pp. 397-404.

16 Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, “Prefácio” in Vânia Carneiro de Carvalho, Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material, São Paulo, 1870-1920 (São Paulo: EDUSP, 2008), pp. 11-14.

17 Pierre Verger, por exemplo, que “fotografou [a bandeira], mas não viu a clava” (p. 143).


Resenhista

Suely Moraes Ceravolo – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0002-3898-8769


Referências desta Resenha

SOARES, Mariza de Carvalho. A Coleção Adandozan do Museu Nacional. Brasil-Daomé, 1818-2018. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. Resenha de: CERAVOLO, Suely Moraes. Patrimônio perdido, eternizado em livro. Afro-Ásia, 66, p. 663-676, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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