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A coleção Adandozan do Museu Nacional Brasil Daomé/ 1818-2018 | Mariza de Carvalho Soares

Os primeiros anos de graduação são tempos de intensas paixões. A cada semestre, elegemos alguns autores com os quais passamos anos a fio, sempre citando e revisitando, como se sua obra se tornasse uma régua de qualidade que será usada para tudo que vier depois. Então, por força de currículos eurocêntricos, que ainda predominam em muitas universidades, os primeiros a terem este amor são os europeus, muitos destes medievalistas; e assim, com suas abordagens, eles se tornam, também, o paradigma de sucesso a ser alcançado.

Ou seja, durante aqueles períodos nossos olhos brilham algumas dezenas de vezes. Muitos destes amores acadêmicos seguem conosco e são reavivados quando encontramos estruturas metodológicas semelhantes. Temos dois exemplos:

Kátia de Queiroz Mattoso3 defendeu nos anos 70 uma tese marcante na École des Hautes Etudes, na Universidade Sorbonne, publicada no Brasil sob o nome de Ser Negro no Brasil. O texto, à época inovador, teve o grande feito de descrever a escravização como uma marcha, intensa, destrutiva, mas na qual era possível ler os escravizados com alguma agência.

Nos anos seguintes, foi a vez da tese de Mary Karasch4, obra monumental defendida em 1972 e acrescida até sua publicação em 1987. Era possível ver muitos pesquisadores se dirigirem à Biblioteca do Instituto Histórico Artístico Nacional, no centro do Rio de Janeiro, para ler o único exemplar disponível. Um texto alicerçado em farto levantamento documental, que tentava descrever a escravidão pela ótica dos escravizados. A abordagem cobria da chegada ao Valongo ao trabalho nas ruas, passando por delicadas análises sobre as teias de sociabilidades e identidades culturais que foram revertidas em redes de proteção e cuidado para as doenças e óbitos.

A Coleção Adandozan do Museu Nacional, Mariza de Carvalho Soares se ombreia com essas obras fundamentais. Trata-se de um livro único no conjunto da longa e proeminente carreira da professora aposentada de história da África da Universidade Federal Fluminense (UFF) e atualmente professora visitante da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mas que também atuou como convidada na École des Hautes Études en Sciences Sociales e ocupou a cátedra de Tinker Visiting Professor na University of Chicago. Um dos poucos nomes nacionais dentre o projeto Slave Societies Digital Archives, da Vanderbilt University.

A opção por investigar uma coleção museológica, enquanto forma, para a pesquisa histórica permitiu à historiadora revisitar seus anos de trabalho junto à pesquisa museal e renovar esse gênero como ferramenta de análise das facetas da história da escravidão; atitude vanguardista, de quem está acostumada a propor caminhos em obras importantes, como Devotos da cor (Civilização Brasileira, 2000), lançado nos Estados Unidos como People of Faith (Duke University Press, 2011), e Rotas atlânticas da diáspora africana (EdUFF, 2007).

No novo livro, as relações diplomáticas travadas entre o Reino do Daomé e o Brasil, entre o final do século XVIII e a primeira década do XIX, são investigadas através do exame minucioso de um conjunto de objetos enviados pelo monarca Adandozan (1797-1818) e que permaneceram guardados no Setor de Etnologia do Museu Nacional até 2018, quando foram devorados pelo incêndio que destruiu a sede da instituição.

As quase 290 páginas são organizadas em sete capítulos, incluindo também anexos documentais, cadernos de fotos e uma bibliografia que, sozinha, pode ser utilizada para a estruturação de boas formações continuadas em História da África.

Assim como fazem os grandes africanistas e brasilianistas que nos formaram, ela adota abordagens conjunturais que cobrem longos períodos de tempo. Contudo vai muito além ao retomar referenciais metodológicos da micro-história. O resultado é o retrato do monarca africano e da cultura material do período, mas ao invés de análises generalizantes e enfadonhas, temos um exame construído a contrapelo.

Outro aspecto importante provém de suas escolhas pessoais. Ela se afasta da falácia da neutralidade do conhecimento, tão citada em décadas anteriores, e credita muitas das possibilidades da realização de sua pesquisa ao momento histórico e político vivenciados no início dos anos 2000. Assim, quebra o vício de omissão que manteve muitos pesquisadores da História da Escravidão e de diferentes facetas da população negra nas Américas, sempre calados frente ao racismo e às desigualdades que acometiam estes grupos.

No primeiro capítulo, Soares reconstrói a dinâmica que envolveu o envio dos embaixadores do Daomé ao Brasil, tendo como fonte principal as cartas escritas pelo próprio monarca; em seguida, descreve os objetos ali citados. A maneira como empreende tal tarefa permite um estudo sobre a variedade de objetos que circulavam entre o Daomé e a Europa, algo que sabíamos que acontecia, mas sobre o qual não tínhamos um conhecimento pormenorizado.

No segundo capítulo, mergulhamos no processo de musealização que compreende a chegada de um objeto ao museu. Com sua minuciosa descrição, acompanhamos a trajetória dos objetos pelo Museu Real, Museu Imperial, para tê-la sob foco principal no Museu Nacional. Ela nos diz:

(…) a coleção reuniu um conjunto de presentes enviados a dom João em 1810, que chegaram ao Rio de Janeiro em 1811, onde foram organizados. Não consegui recuperar o que aconteceu com eles nesses primeiros anos. Tampouco encontrei registro da data exata em que os presentes deram entrada no museu, de quem os mandou para lá, ou de quem os recebeu. Possivelmente em 1811 foram entregues ao conde de Galveas juntamente com as cartas enviadas pelo governador da Bahia. No ano seguinte o conde adoeceu e veio a falecer em 1814, não tendo tido qualquer participação na criação do Museu Real. Mas é certo que em 1818, ou logo em seguida, os presentes foram encaminhados ao Museu Real, instalado em um sobrado em frente ao Campo de Santana, no centro da cidade do Rio de Janeiro5.

Como muito bem salienta a autora, nesta passagem fica nítida a transformação do olhar sobre estes objetos: deixam de ser vistos como galanterias arroladas dentro de um conjunto de significados, próprio aos gabinetes de curiosidades, e passam a integrar um espaço de ciência.

O ponto fulcral do capítulo jaz em permitir que o leitor conheça sua metodologia de trabalho, que inclusive pode ser usada na elaboração de outras pesquisas com objetos. Entre 2011-2012, Soares começou organizando um inventário do acervo africano do Museu Nacional; para este encontrou cerca de 700 peças catalogadas e localizadas na reserva técnica. Com base em uma ficha individual para cada peça, reuniu dados do Catálogo geral das Colleções de antropologia e ethnografia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, outros documentos do arquivo do mesmo museu, bibliografia e comparação com outros acervos. Diante da imensidão do acervo, do desaparecimento de algumas peças e do péssimo estado de outras, a solução encontrada foi aprofundar o estudo somente de uma parte. Foram escolhidas aquelas integrantes do acervo etnográfico do Museu Nacional e que foram mencionadas por historiadores e antropólogos. Entre idas e vindas, oriundas da diferença entre o número de presentes citados e realmente localizados, surgiu a exposição Kumbukumbu, aberta ao público em 2014.

Importante ressaltar que ao longo desse processo, Soares optou por analisar os presentes a partir do conceito de situação histórica de George Balandier6, o que permitiu entender as relações de poder desiguais em que estes se estabeleceram. Embora na micropolítica o discurso de Adandozan indicasse uma posição simétrica, o português já possuía, naquele momento, um poderoso sistema econômico sustentado no tráfico que, do ponto de vista da macropolítica, colocava o líder africano numa posição de subalternidade. Neste momento, mais uma vez, Soares oferece uma contribuição à história do tráfico. Em seus estudos, Kabengele Munanga7 adverte que os dirigentes africanos quando entraram neste comércio atuavam como fornecedores de mercadoria num mercado internacional sobre o qual não tinham o controle.

Diante do objetivo da autora de separar os presentes de Adandozan do restante do acervo e estudá-los a partir de seus significados e usos no Daomé, do Capítulo 3 em diante o livro percorre, de modo pormenorizado, alguns itens da coleção.

No capítulo 3 é a vez do zinkpo, assento que é escrutinado a partir da consulta aos relatos de viajantes, da comparação com outros exemplares semelhantes, existentes no Musée do Abomé e do Quai Branly. A autora vai em busca de historiadores da arte para entender o lugar social ocupado pelos entalhadores naquela sociedade. O texto abre ainda mais janelas, quando investiga as árvores comumente utilizadas para sua confecção, com as cores das respectivas madeiras e os entalhes existentes nas laterais. Da pesquisa resultam semelhanças entre as espécies de madeiras utilizadas em sua fabricação e as imbricações com o culto de vodun no Brasil.

Através de suas consultas, percebemos que há no país uma memória afetiva com este objeto, uma relação que enlaça de maneira inexplicável o país ao Benin e especificamente a Adandozan.

O capítulo 4 desfia as tramas da grande bandeira de guerra enviada. Ela retoma a arte dos panos e tecidos aplicados, através do uso de tapeçarias e de tinturas, com espaço ainda com espaço para investigar como eram os teares no Daomé.

Sua busca revela detalhes incríveis sobre o tal objeto. Aprendemos que se trata de um tecido de pelo menos três metros de altura com apliques em cores que ilustram um momento específico de combate: um instrumento de poder da elite, que além de também poder ser usado como pano mortuário, neste caso, comportava uma narrativa visual da guerra; um conjunto de memórias costuradas onde podemos ler um relato específico. São panos cantados. Então, o capítulo se desenrola no entendimento do que é narrado, de quem são as pessoas autorizadas a fazê-lo, as implicações das ferramentas de coerção e as cenas de violências ali representadas.

Para a autora, este contexto, abordado no entrecruzar com o relato de inúmeros viajantes e a extensa bibliografia, permite entrever uma sociedade marcada pela disseminação da violência. Soares explica:

Sob esta perspectiva, a bandeira de guerra enviada a dom João é a demonstração do poder supremo do Rei do Daomé sobre tudo e todos que o rodeiam. O estudo da bandeira de guerra é uma porta de entrada para a história social da guerra no Daomé e áreas vizinhas8.

Os capítulos seguintes mergulham em objetos que podem auxiliar, ainda mais, na história dos trajes e na percepção das matrizes estéticas do Daomé, uma vez que Adanzozan enviou sete panos e se refere a eles como vestimentas. Estamos assim, diante de fonte raríssima, haja vista a carência de estudos sobre a história de vestir que ultrapassem o modelo eurocêntrico.

Embora ainda incipientes, a formação de coleções têxteis nos museus tem um papel importante para os estudos sobre vestuário. Como salienta a estudiosa Rita Morais de Andrade9, a sobrevivência de trajes antigos aconteceu principalmente devido ao interesse e ao trabalho realizado por profissionais de arqueologia, antropologia e história, além dos conservadores e curadores que, dominando técnicas de registro de objetos, passaram a documentar e a conservar trajes para investigar suas tecnologias e a cultura material das sociedades que os produziram. Contudo, é recente o interesse por uma revisão das metodologias de pesquisa a partir de objetos como imagens e trajes para a construção de uma história que represente melhor a diversidade social tanto no passado como no presente.

O capítulo 5, sobre o pano de dados, traz uma longa investigação sobre os tecidos, descritos como objetos que poderiam ser usados na vestimenta, cobertura, adorno, moeda de troca, entesouramento, mortalha e oferenda aos mortos. Os possíveis caminhos percorridos pela manta feita em estilo mandê, guia uma investigação sobre a extensão das rotas das caravanas do Sahel até Abomé, com espaço para entendermos como este objeto pode ter chegado a um ponto geográfico tão distante.

Em seguida, o alvo são os presentes feitos em couro. Para Mariza Soares, embora existam numerosos exemplares em todas as coleções, o estudo deste ramo de artesanato ainda é pouco explorado pela historiografia. Na coleção foco deste estudo, dos 39 objetos, 11 eram em couro ou pele. Destes, 10 deram entrada no Museu Real: dois abanos, dois pares de alpercatas, duas bolsas de tabaco, uma patrona e uma almofada. Todos são descritos detalhadamente, com destaque à variedade de costuras, de cores e técnicas utilizadas na confecção de cada uma.

O último capítulo, por seu turno, mergulha no patrimônio material de Abomé através do estudo dos usos da bolsa de tabaco da Coleção. Suas investigações demonstraram que os dois exemplares em questão têm como particularidade serem cerca de um século mais antigos que as demais. A peça suscita ainda mais questionamentos, pois o animal nela impresso está presente nos painéis dos templos dedicados a tohosu, entidade responsável pelas crianças nascidas com deformidades. Tal fato nunca foi mencionado pela historiografia.

Em conclusão, a metodologia inovadora escolhida, a visita que empreende a momento importantíssimo das relações Brasil África, ou a investigação de uma das figuras mais emblemáticas e paradoxais do continente africano, o texto de Mariza Soares se constitui em marco fundamental da História do Brasil, que deve ser debatido em estudos interdisciplinares.


Notas

3 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1982.

4 KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

5 SOARES, Mariza de Carvalho. A coleção Adandozan do Museu Nacional Brasil Daomé, 1818- 2018. 1 ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. p. 70.

6 BALANDIER, George. La situation coloniale: approche théorique. Cahiers internationaux de sociologie, v. 11, p. 44-79, 1951.

7 MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil Contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009. pp. 89-90.

8 SOARES, Mariza de Carvalho. A coleção Adandozan do Museu Nacional Brasil Daomé, 1818- 2018. 1ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. p. 156.

9 Dossiê: o vestuário como assunto: perspectivas de pesquisa a partir de artefatos e imagens [Ebook] / Organizadoras, Rita Morais de Andrade, Alliny Maia Cabral, Indyanelle Marçal Garcia Di Calaça. – Goiânia: Cegraf UFG, 2021. p. 20.


Referências

MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1982. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BALANDIER, George. La situation coloniale: approche théorique. Cahiers internationaux de sociologie, v. 11, p. 44-79, 1951.

MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil Contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009. pp. 89-90.

 Dossiê: o vestuário como assunto: perspectivas de pesquisa a partir de artefatos e imagens [Ebook] / Organizadoras, Rita Morais de Andrade, Alliny Maia Cabral, Indyanelle Marçal Garcia Di Calaça. – Goiânia: Cegraf UFG, 2021. p. 20.


Resenhista

Rosemeri Conceição – Doutoranda em História e Crítica de Arte – PPGAV-UFRJ, Pesquisadora Bolsa MASP Pesquisa. https://orcid.org/0000-0002-3769-7804


Referências desta Resenha

SOARES, Mariza de Carvalho. A coleção Adandozan do Museu Nacional Brasil Daomé, 1818-2018. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. Resenha de: CONCEIÇÃO, Rosemeri. Memórias de um monarca africano no Brasil: tráfico e história cultural pelas lentes de Mariza Soares. Almanack. Guarulhos, n. 32, er00922, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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