A ciência: Deus ou diabo? | Guitta Pessis-Pasternack
O novo livro de Pessis-Pasternak, jornalista que tem por interesse a divulgação científica, segue os moldes de sua obra anterior, Do caos à inteligência artificial (São Paulo, Unesp, 1993): uma reunião de entrevistas realizadas com renomados cientistas, principalmente de origem francesa, tratando de temas que vão desde as origens do Universo até a inteligência artificial, dos recentes avanços na biologia até os também hodiernos modelos analíticos na física e na química, passando pelas mais novas descobertas das neurociências.
Quem leu o outro livro, irá notar que Pessis-Pasternak organiza este novo livro agora lançado de modo diferente. Em lugar de dividir as entrevistas em dois blocos, como fez no outro volume, de modo a agrupar os tópicos tratados, a entrevistadora preferiu simplesmente encadear uma entrevista após a outra, sem adotar, pelo menos aparentemente, qualquer critério organizativo. Isso dificulta um pouco a leitura e a fruição do livro, uma vez que o leitor é obrigado a ‘saltar’ da biologia para a inteligência artificial, ou da astrofísica para a epistemologia, sem aviso prévio, a não ser por uma breve introdução fornecida pela autora. Mesmo assim, convenhamos, não é fácil ‘ligar’ e ‘desligar’ a todo instante um assunto ou outro e, de repente, voltar ao anterior. O que torna esse aspecto menos problemático é que aqui — ao contrário de Do caos à inteligência artificial — Pessis-Pasternak se preocupou em adicionar rodapés que inter-relacionam os diversos depoimentos quando um mesmo assunto é abordado por dois ou mais dos entrevistados.
Um segundo aspecto — negativo, a meu ver — é que A ciência: Deus ou diabo? repete algumas das entrevistas já publicadas no livro anterior, a exemplo das realizadas com Ilya Prigogine, Paul Feyerabend e Hubert Reeves, entre outras, somente que com outra edição, de qualidade muitas vezes inferior.
Antes de entrar nos aspectos positivos do livro, é importante indicar que o título do volume — que em português repete o original francês — pode levar o leitor desavisado a incorrer em um erro: não há aqui, a meu ver, qualquer questionamento do projeto científico, como sugere o título. Em outras palavras, ninguém apresenta posições que questionem ou elogiem o papel da ciência na sociedade contemporânea. Mesmo um ‘anarquista’ como Feyerabend contesta simplesmente a versão embelezada que os cientistas divulgam dos seus empreendimentos. Nenhum leitor irá encontrar posições que divinizem ou demonizem a ciência e os seus produtos. Sem divinizá-la, há, a meu ver, uma tendência a encarar a ciência como projeto legítimo e benéfico para a sociedade.
Por outro lado, devo ressaltar que li o volume com prazer. Eu situaria minha posição em relação a ele, assim como em relação ao anterior, em contraste com duas outras posturas: primeiro, discordando daquilo que propõem os epistemólogos ortodoxos, que querem ensinar aos cientistas como eles devem trabalhar; segundo, em discordância com a posição de Bruno Latour, que nos recomenda, em A vida de laboratório (1997), não acreditar naquilo que os cientistas nos dizem acerca de como eles fazem ciência.
Com efeito, as diversas entrevistas conduzidas por Pessis-Pasternak mostram dois aspectos importantes que eu gostaria de salientar. Primeiro, as discordâncias entre cientistas que atuam em uma mesma área de conhecimento sobre o estado da arte de sua disciplina, a respeito de qual a melhor abordagem de um dado fenômeno e acerca dos desenvolvimentos futuros em seu campo científico. Em segundo lugar, é possível ler nas entrelinhas de diversas entrevistas os métodos pouco ortodoxos com os quais os cientistas trabalham. Essa revelação está obviamente entremeada pela exposição de valores idealistas, já identificados por Robert K. Merton (1970) a respeito do papel do cientista e da ciência na sociedade.
É nesse meio termo entre o dever ser dos epistemólogos ortodoxos e a descrença de Latour na capacidade dos cientistas falarem sobre algo que faz parte do seu cotidiano que encontro a importância das entrevistas feitas por Pessis-Pasternak. Em outras palavras, elas revelam que a ciência, mesmo nas áreas supostamente exatas e naturais, é um projeto em construção. E expõem também que essas ciências exatas naturais encontram-se também marcadas — tal como nas ciências sociais e humanas, só que em menor grau — por métodos e concepções distintos. Os depoimentos igualmente revelam que os cientistas não estão empenhados em uma cruzada racional para esconder a verdade com relação aos seus métodos de trabalho, verdade que só estaria acessível a Bruno Latour e seus seguidores.
Entre os aspectos abordados pelos diversos cientistas entrevistados, gostaria de destacar alguns deles. Em primeiro lugar, a problematização de como se faz ciência, encetada por Hubert Reeves, ao pôr em xeque certas hipóteses acerca da emergência do Universo, ou na indicação comparativa que faz entre a astrofísica e outras ciências. O tema de hipóteses rivais nas ciências exatas, agora relativas à noção de tempo, aparece nas invectivas de Prigogine contra as concepções de Stephen Hawking, o famoso astrofísico britânico.
O leitor interessado no tema da socialização dos cientistas, tanto em seu trabalho cotidiano (seguindo as sugestões de Merton) quanto em um paradigma dominante (seguindo as sugestões de Kuhn, 1982), poderá se beneficiar da leitura da entrevista de Étienne-Émile Baulieu. Com efeito, esse cientista sustenta a opinião de que a ciência é um empreendimento que deve estar livre de quaisquer amarras — do Estado ou de outra natureza —, devendo unicamente passar pelo crivo do “será que estou certo?”.
O tema repete-se na fala de Jean-Michel Besnier ao avaliar como os cientistas se comportam em relação ao impacto de suas teorias na sociedade. E é reafirmado peremptoriamente por Pierre Papon (p. 162, grifos nossos), quando afirma que:
A grande força do método científico reside em sua capacidade de prever os fenômenos e, assim, agir sobre a matéria. Isso confirma, precisamente, a capacidade inerente à ciência de elaborar conceitos e modelos cuja validade não depende nem de um sistema de valores nem de um contexto cultural exterior a ela.
Isso parece ecoar Merton, que estabeleceu, em sua sociologia da ciência, o universalismo, isto é, “critérios impessoais preestabelecidos” como uma das características da ciência. Mas é possível encontrar opiniões que divergem de tal retrato tradicional do saber científico, a exemplo da afirmativa de Henri Atlan (p. 184, grifos nossos) de que “a ciência, apesar de tudo, não é totalmente neutra“.
De todas as entrevistas, aquela que mais me deu satisfação foi a do antropólogo Philippe Descola. Com efeito, tenho visto, nos anos recentes, a exacerbação, em certas antropologias, de uma posição relativista extrema, que termina por minar as bases do empreendimento científico em favor de um vale-tudo que pode levar a um lugar-comum. Descola desenvolve uma reflexão madura acerca da relação entre etnografia e categorias mais abstratas e gerais, mostrando que é possível manter o rigor científico sem cair nas facilidades do discurso populista pretensamente a favor dos pesquisados.
A título de curiosidade, devo dizer que a entrevista de Christian Magnan é absolutamente risível. A todo momento, Magnan sustenta a idéia de que a ciência e seu discurso apresentam simplesmente uma concepção machista do mundo. O problema é que nenhum dos exemplos que dá parece sustentar a tese. Essa entrevista é, para mim, um exemplo acabado de que cientistas de renome às vezes desfiam besteiras sem fim quando são chamados — ou se propõem —, como é o caso de Magnan, a falar sobre o que não sabem, no caso, sobre discurso sexista.
Para concluir, considerando os altos e baixos mencionados, recomendo a leitura de A ciência: Deus ou diabo? a todos os que se interessam por filosofia, história e sociologia da ciência (ou do conhecimento científico, como preferem alguns) como um documento valioso para o entendimento de como funciona a ciência e a comunidade científica nos dias de hoje.
Referências
KUHN, Thomas S. 1982 A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva.
LATOUR, Bruno et al. 1997 A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
MERTON, Robert K. 1970 Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo, Mestre Jou.
PESSIS-PASTERNAK, Guitta 1993 Do caos à inteligência artificial. São Paulo, Editora da Unesp.
Resenhista
Josimar Jorge Ventura de Morais – Professor de teoria sociológica e sociologia da cultura Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: jjvdm@npd.ufpe.br
Referências desta Resenha
PESSIS-PASTERNACK, Guitta. A ciência: Deus ou diabo? São Paulo: Editora da Unesp, 2001. Resenha de: MORAIS, Josimar Jorge Ventura de. A fala dos cientistas. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.2, maio/ago. 2003. Acessar publicação original [DR]