O livro A Casa Rosa do Leblon surge com lugar especial na historiografia carioca ao tomar o bairro como referência para a história da cidade. O livro mistura pesquisa e memória pessoal ao tratar a história da família da autora que se confunde com a história da casa que passou a abrigar a família a partir de 1954. Conforme a leitura revela, a família se instalou no Leblon depois de residirem no bairro do Grajaú, transferindo-se da Zona Norte para a Zona Sul. Sonhavam, inicialmente, com uma casa em Copacabana, mas numa época em que na região as casas desapareciam e davam lugar aos edifícios de apartamentos. A casa no Leblon, na rua Sambaíba 555, surgiu como alternativa. Seguramente, o ponto privilegiado do Alto Leblon foi decisivo. A Casa Rosa do Leblon era dominada por uma vista do mar das praias do Leblon, Ipanema e Arpoador, e das janelas dos quartos era o morro dos Dois Irmãos que impunha sua presença. Tudo isso antes da verticalização das edificações, que terminaram por encurtar os horizontes da vida na cidade.
Buscando contextualizar historicamente a trajetória da família e de seus membros que habitavam a casa que se torna o personagem principal do livro, Miridan Bugyja Britto Falci termina por construir aproximações que caracterizam a história da vida social de classe média na cidade, retratando as transformações sociais do Rio de Janeiro no século XX. Destaca-se que a originalidade do estudo está justamente nesse enfoque da história do bairro que é raramente explorado na historiografia carioca.
A história da cidade do Rio de Janeiro como objeto de estudo tem como marco consagrador o famoso livro de Joaquim Manoel de Macedo (1820 -1882), Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, que resultou da reunião de suas crônicas que surgiram, primeiro, nas páginas do Jornal do Commercio entre os anos de 1862-63. Sua publicação antecedeu ainda as crônicas de Memórias da Rua do Ouvidor, publicadas no mesmo jornal no ano de 1878. As duas obras marcam a dedicação à história urbana de Joaquim Manoel de Macedo. A qualidade do cronista histórico fez Astrojildo Pereira comentar: “São dois livros de leitura agradável, creio mesmo que bem mais agradável e até mais proveitosa, ainda hoje, do que a dos seus romances.” O comentário relaciona os dois livros de história da cidade de Joaquim Manuel de Macedo com sua obra literatura, uma vez que ainda nos dias de hoje o escritor costuma ser mais lembrado por títulos como A Moreninha, um dos romances mais conhecidos da literatura brasileira do século XIX. Além disso, cabe anotar que as crônicas de Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro surgiram também na sequência da publicação, em 1861, de Lições de história do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colégio de Pedro II, que se tornou o mais importante manual escolar de história do século XIX no Brasil e que fez de Joaquim Manoel de Macedo um dos mais notórios professores de História do Brasil do seu tempo na cidade do Rio de Janeiro.
Importa destacar que em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, o escritor nos serve de guia na condição de narrador, fazendo do bonde o elemento de condução pelo espaço urbano, levando o leitor a ter contato com os monumentos e instituições que caracterizam na perspectiva histórica a cidade de modo abrangente. Assim, o percurso do narrador em deslocamento atravessa várias freguesias da cidade, seguindo o padrão jurisdicional da cidade na época, concentrando-se no seu núcleo urbano, deixando de fora os arrabaldes. Aos olhos de hoje, esse recorte pode parecer demasiado restrito, considerando a expansão urbana que constituiu a cidade atual, mas na altura a narrativa se definia pela abrangência geral do espaço urbano. O que se pode salientar é que aos olhos de hoje não seria demasiado ver o livro como uma obra sobre a história do Centro da cidade como bairro, ainda que não se possa deixar de levar em conta que esse nunca foi o enfoque propriamente dito do autor. A medida da cidade daquela época é distinta da escala urbana expandida de tempos posteriores. Ainda que o Centro da cidade fosse o seu território da cidade, Joaquim Manoel de Macedo não se pautava pela escala do bairro, isto é certo.
Por outro lado, em seu segundo livro sobre a história urbana do Rio de Janeiro, Memórias da Rua do Ouvidor, Joaquim Manuel de Macedo definiu a rua como a escala para a compreensão da cidade. A partir da história e da vida social da rua mais movimentada do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX é que o escritor oitocentista apresentou a sua leitura mais acurada da experiência urbana.
O que interessa sublinhar nesse caso é que Macedo inaugurou não apenas a abordagem histórica da cidade, afirmando um gênero narrativo específico que se pode chamar de crônica histórica, mas estabeleceu dois enfoques sobre a história da cidade: de um lado, uma abordagem integral e abrangente da cidade e sua história; e, de outro lado, apresenta uma leitura da cidade a partir da história da rua. O que se pode acrescentar é que os dois recortes indicam claramente o interesse do autor em compreender a construção da vida social urbana, buscando caracterizar a singularidade de sua ordem social, estabelecendo nexos entre relações sociais e instituições. Mesmo do ponto de vista abrangente, fica excluído do enfoque de Macedo a interrogação sobre os arredores e arrabaldes da cidade e mesmo sobre elementos típicos de transição entre o rural e o urbano, como as chácaras que demarcaram tão bem o que era próprio da condição urbana do Rio de Janeiro oitocentista.
O legado da obra de Joaquim Manoel de Macedo definiu claramente balizas para a constituição de uma tradição historiográfica da cidade do Rio de Janeiro que se estende ao menos até a geração de Vivaldo Coaracy (1882-1967), autor, entre outros, de Memórias da cidade do Rio de Janeiro, publicado originalmente em 1955, e de Brasil Gerson (1904-1981), com sua História das Ruas do Rio de Janeiro, com edição emblemática de 1965, ano do 4º Centenário da cidade. O fato de que essas obras continuam com novas edições recentes demonstram como essa tradição historiográfica que conduz ao modelo de Joaquim Manoel de Macedo ainda persiste e conduz a leitura da história da cidade.
Genericamente, o que cabe frisar é que na bibliografia carioca, de um modo geral, a história dos bairros não se constituiu como tradição de abordagem.
Essa avaliação seria incompleta se deixássemos de valorizar a contribuição original do livro História da Ilha do Governador, de Cybelle de Ipanema, lançado originalmente em 1991 e reeditado em 2013. Sua reedição denota o interesse renovado por seu enfoque, que impõe na pauta historiográfica a abordagem da história do Rio de Janeiro a partir de uma abordagem que busca o foco a partir de uma região da cidade que possui uma história singular em relação ao núcleo urbano mais antiga e central. A Ilha do Governador não é propriamente um bairro da cidade, pois contém vários bairros no seu interior. Sua geografia insular condicionou um contexto de evolução urbana peculiar. Essa mesma tendência a abordar a cidade a partir de uma região com desenvolvimento peculiar, distinto do quadro do núcleo urbano central, e de urbanização mais recente, se apresenta também no conhecido título O sertão carioca, de Magalhães Corrêa, e publicado originalmente em 1936, abordando a história da planície de Jacarepaguá, outra região da cidade em que se desenvolveu a vida de vários bairros. O interesse desses dois estudos está justamente em visitar a história da cidade a partir de um enfoque alternativo que revela a diversidade da experiência carioca, valorizando sub-regiões do município do Rio de Janeiro. De todo modo, também nesses casos, ainda que a área central não seja o centro da atenção, buscando o estudo dos arrabaldes, o bairro não se constitui como foco da análise histórica da cidade.
Em contraponto, ainda que na historiografia carioca seja possível constatar que a história dos bairros não se constitui como tradição, não se pode dizer que a história dos bairros não tenha se constituído como referência para abordagens não historiográficas do passado da cidade. Na imprensa carioca das décadas de 1950 e 1960, a história do bairro de Copacabana, por exemplo, se tornou uma referência fundamental para a crônica jornalística. Sem dúvida, Ai de ti Copacabana, lançado por Rubem Braga em 1962, com 60 crônicas escritas e publicadas entre abril de 1955 a fevereiro de 1960, serve não apenas para caracterizar as marcas do gênero narrativo que contribuiu para pensar e discutir a cidade numa certa época, mas expressa igualmente um ponto de vista de abordagem da cidade que tem a história do bairro como eixo fundamental. Nessa linha de cronistas cariocas, a lista poderia ser sempre estendida, mas qualquer uma ficaria incompleta sem menção à obra de Sergio Porto (1923-1968), o autor que também fez do bairro o eixo de seu pensamento sobre a cidade. A casa demolida, livro de 1963, reúne crônicas que traduzem as transformações históricas do bairro a partir da pena talentosa do cronista diário. Mas é no seu livro mais difundido recentemente, As Cariocas, de 1967, que os bairros fazem a diferença para pensar a cidade, pois a alma de cada uma das personagens que desfilam em suas crônicas está definida pelo seu bairro de origem. Claudia Mesquita, em seu livro De Copacabana à Boca do Mato, identifica esse ponto de vista original de Sergio Porto e que se consolida na construção de seu alterego Stanislaw Ponte Preta, habitante da Boca do Mato, que contrapõe sua experiência da Zona Norte à da Zona Sul, por exemplo, nas crônica reunidas no livro Tia Zulmira e Eu, do ano de 1961. Portanto, não é demasiado arriscado dizer que a crônica jornalística que se instala na imprensa carioca depois da Segunda Guerra Mundial consagra, na passagem da década de 1950 para a de 1960, a leitura da cidade a partir de seus bairros e organiza um certo modo de pensar a história urbana.
Tal como a historiografia já nos apresentou, a história dos bairros cariocas supera a antiga organização municipal baseada na jurisdição das freguesias religiosas. A constituição dos bairros caminha junto com a expansão urbana do fim do século XIX e início do século XX, que se relaciona especialmente com os empreendimentos imobiliários acompanhados dos investimentos na expansão da malha do transporte público baseado nos bondes. Seu contraponto são os bairros que se desenvolveram a partir da instalação de complexos fabris complementados por suas vilas operárias. A história dos bairros tem ainda seu corolário na constituição dos bairros suburbanos que se organizaram a partir da expansão da linha férrea dos trens que definiram a paisagem que se convencionou caracterizar como subúrbio, pela distância em relação ao núcleo urbano central e a necessidade de constituir uma ordem mais ampla de serviços urbanos locais.
De todo modo, é interessante frisar que a abordagem da crônica ficcional da imprensa carioca tomou o bairro como medida da cidade, para afirmar uma leitura da história da cidade a partir do seu cotidiano prosaico que conduz a valorizar a experiência pessoal, identificando o desenvolvimento urbano pelas marcas afetivas que são impressas em cada cidadão, misturando o olhar crítico com o saudosismo lírico, formando a moldura de tom memorialístico peculiar. Pode-se dizer que essa abordagem da cidade encontra paralelo na música popular, seja no exemplo dos três apitos da fábrica, na canção de Noel Rosa, ou no hino Do Leme ao Pontal de Tim Maia, para não deixar de fazer menção ao inverno no Leblon em canção composta por Adriana Calcanhoto e Antonio Cícero.
Assim, o que cabe frisar é que a história dos bairros tradicionalmente tem um lugar no pensamento carioca que se afirmou na crônica jornalística da cidade, elaborada pela imprensa e próxima das letras de canções da música popular, sem ser acompanhada pela historiografia da cidade. Seguramente, o ponto de vista da crônica jornalística produzida a partir de meados do século XX constitui uma abordagem pessoal e afetiva da experiência urbana, que descreve e elabora criticamente a cidade. Pode-se dizer que se trata de uma forma mais próxima da crônica histórica estabelecida a partir de Joaquim Manoel de Macedo, que se consagrou nas primeiras décadas do século XX na crônica de Luiz Edmundo. Contudo, enquanto a crônica histórica tradicional opera na ordem da verossimilhança histórica por meio da caracterização de tipos e situações sociais do passado, a perspectiva da análise da cidade a partir da história dos bairros identificada com a crônica jornalística se instala justamente na época em que a historiografia buscou se renovar, sustentando-se na erudição aprofundada organizada pelo domínio das fontes e dos fatos, conquistando a objetividade que muitas vezes faltava à crônica histórica. Podemos imaginar que esse ponto de vista afastou a historiografia da história dos bairros.
Interessa sublinhar que é nesse ponto que o livro A Casa Rosa do Leblon, de Miridan Bugyja Britto Falci, afirma uma perspectiva inovadora para o estudo da história da cidade a partir do bairro.
Resenhista
Paulo Knauss – Doutor em História, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e diretor do Museu Histórico Nacional.
Referências desta Resenha
FALCI, Miridan Bugyja Britto. A Casa Rosa do Leblon: vida e costumes de uma família do século XX. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2016. Resenha de: KNAUSS, Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 23, n.23, p. 297-304, 2016. Acessar publicação original [DR]
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