A cabala do Asno. Asinidade e conhecimento em Giordano Bruno – ORDINE (RFA)

ORDINE, Nuccio. A cabala do Asno. Asinidade e conhecimento em Giordano Bruno. Tradução de Flora Simonetti Coelho; Francisco Caruso; Livio Panizza. Caxias do Sul: Editora da EDUCS, 2008. Resenha de: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.29, p.593-598, jul/dez, 2009.

Filósofo e literato, Giordano Bruno (1548-1600), nascido em Nola, Itália, é sem dúvida uma das mais importantes figuras do pensamento renascentista. Sua obra não apenas gira em torno de temas caros à filosofia como cosmologia, filosofia da natureza, ética e religião, mas também contempla as relações entre filosofia e pintura, teatro e poesia. Bruno foi condenado à morte na fogueira por sua ousadia em afirmar a existência de um universo infinito, por seu apego a um certo hermetismo e por sua crítica mordaz aos matemáticos e filósofos vulgares, que, cegos e pedantes, não enxergavam “o infinito efeito da infinita causa (Deus)”. Procurar a divindade, não longe, mas dentro de nós, é o que nos diz o filósofo: “Nem os habitantes de outros mundos a devem procurar perto de nós quando a têm perto e dentro de si, visto que a lua não é mais céu para nós que nós para a lua” (La cena de le ceneri). Da crítica à cosmologia geocêntrica de Aristóteles e de Ptolomeu, Bruno foi além da defesa do sistema copernicano, ao pressupor a existência de infinitos sistemas solares dentro de um universo com tempo e espaço ilimitados. Essa nova teoria de um universo infinito, mas unificado, é apresentada de modo claro na obra escrita em língua vernácula De l’infinito universo e mondi e no poema em latim De immenso et innumerabilibus.

Mas, ao universo infinito Bruno contrapõe o conhecimento limitado do homem. Da destruição da cosmologia ptolomaica, Bruno faz nascer um humanismo que se reflete no cruzamento entre filosofia, literatura e pintura, um dos núcleos teóricos mais importantes de seu pensamento. Nuccio Ordine, professor na Universidade da Calábria, considerado um dos maiores especialistas do pensamento de Giordano Bruno, dedicou em La Soglia dell’Ombra. Letteratura, filosofia e pittura in Giordano Bruno, livro traduzido e publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, uma análise à “nova filosofia” em que o filósofo concebe os movimentos da relação do homem com a natureza e com o conhecimento. Em A Cabala do Asno, publicado na Itália em 1987 e agora em tradução portuguesa, Ordine retoma o tema da unidade entre filosofia e arte no pensamento de Bruno. Mas, como o próprio autor adverte em sua Apresentação, a complexidade do pensamento de Bruno contribuiu para “a necessidade de situar a pesquisa no âmbito de um campo temático preciso, sem a pretensão de uma sistematização totalizante” (p. 15). O tema escolhido, a asinidade, serve, desse modo, como fio condutor para uma imersão nas variadas trilhas do pensamento de Bruno.

A literatura do Cinquecento é plena de figuras asininas. Herdeiro dessa tradição, que remonta a Luciano e a Apuleio, Bruno concede destaque à figura do asno em seus três diálogos reunidos sob o título Spaccio de la bestia trionfante e em Cabala del cavallo Pegaseo con l’aggiunta de l’Asino cillenico. No Prefácio de A Cabala do Asno, Eugenio Garin, uma das maiores autoridades em cultura da Renascença, assinala que, embora não tenha inventado “o tema do asno nem o uso de um símbolo com toda a sua complexidade de significados teóricos”, Bruno “impregna-o de valores centrais em sua reflexão” e insiste na “centralidade do motivo e na riqueza dos sentidos” (p. 10).

Em seu A Cabala do Asno, Nuccio Ordine analisa o conceito bruniano de asinidade com uma nova interpretação do símbolo do asno. No capítulo 12, “A literatura do asno antes de Bruno”, Ordine adverte que “o interesse de Bruno pelo símbolo do asno não nasce do nada, mas encontra suas raízes no interior de um filão literário muito difundido na cultura do Renascimento” (p. 159). De fato, às várias edições renascentistas do Asno de Ouro, de Apuleio, que na época recebeu duas traduções para o italiano e um comentário, somam-se obras de autores conceituados que se dedicaram ao tema, como o pequeno poema Asino, de Maquiavel, Ad encomium asini digressio, de Cornelio Agrippa, Macaronea, de Teofilo Folengo, Asinesca gloria, atribuída a Anton Francesco Doni, e Ragionamento sovra del asino, de Giovan Battista Pino. A figura do asno aparece também em obras menores de poesia e de prosa e em algumas burlescas.

Bruno conhece essa literatura muito difundida, mas sua proposta caminha em outra direção, pois “não pretende louvar o asno e a asinidade” com discursos semelhantes aos da “multidão ignorante, estulta e profana” que pensa, fala e escreve esses “loucos discursos que estão nos prelos, nas livrarias”. Sem, portanto, ignorar a matéria já abordada por outros, Bruno quer apenas delimitar a sua originalidade, “acrescentar óleo àquela lamparina que outros acenderam” (p. 160). Bruno aproveita-se da ambiguidade da imagem do asno concedendo-lhe um duplo valor simbólico: o negativo, revelado na obtusidade, na inércia e na arrogância de uma dimensão unilateral, e o positivo, no nobre trabalho que alça o homem ao ápice de sua realização.

O espaço da asinidade não tem uma única direção, tantas são as zonas de ambiguidade que fazem do animal um símbolo das coincidências de opostos (coincidentia oppositorum), agrupadas por Ordine em três pares antinômicos: benéfico/demoníaco, poderoso/humilde e sábio/ignorante (p. 29). No capítulo 2, o autor traça nos mitos, nas fábulas e nos contos um quadro dessa ambivalência e dá ao leitor numerosos exemplos em que ela aparece. De um lado, a figura positiva do asno que garante a vida, como nos ritos de fecundidade e de regeneração. Príapo, o deus fálico da fecundidade, era representado como um asno antropomorfizado, e o deus Dioniso tem um asno por montaria. Apuleio relata que, em sua descida aos infernos, Psyché encontra-se com um asno e seu dono. Nessa tradição, o asno protege dos malefícios a quem o traz junto. De outro lado, na Cabala, a estrela maléfica Remfam – emblema de Lúcifer – esconde em suas cinco pontas uma cabeça de asno estilizada. Para ilustrar o poder do asno, Ordine vale-se de exemplos bíblicos em que ele é a montaria preferida dos patriarcas, dos reis, dos príncipes, dos ricos e dos poderosos. Também na mitologia indiana, o asno é montaria dos reis: Indra, rei dos deuses védicos, cavalga um asno alado. Diversos relatos de guerra têm o asno como protagonista, tal qual a batalha em que os deuses do Olimpo, assediados pelos Gigantes rebeldes, livram-se de seus adversários, que fogem amedrontados com os zurros. Uma lista de exemplos ilustra como o asno é um potente auxiliar do homem.

Mas a representação do animal tem também o seu contrário, a mais familiar, ou seja, a condição humilde e a predisposição à dura vida quotidiana em que ele é força motriz para as rodas dos moinhos, o transporte de mercadorias e a montaria para camponeses pobres. O autor nos lembra que o profeta Zacarias anunciou a humildade do Messias, que, em vez de um cavalo, instrumento de guerra, cavalgava um asno, simbolizando a paz vindoura a todos os povos.

O terceiro par de opostos, sábio/ignorante, é o que mais diz respeito à Cabala nolana. As grandes orelhas que lhe permitem ouvir de longe fazem do asno um símbolo da sabedoria. Essa capacidade auditiva é compreendida na dimensão espiritual, uma vez que não pode haver verdadeiro conhecimento sem escuta. Na revelação cabalística, o asno, ou a asinidade, ocupa o lugar da sabedoria no universo divino das sefiroth (p. 32). Todavia, a imagem do homem com cabeça de asno, muito difundida no Medievo, representa a aquisição de uma vã ciência que concerne apenas aos assuntos terrenos. Caricatura da estupidez e símbolo da ignorância, o asno já aparecia na célebre fábula de Esopo em que, coberto por uma pele de leão, não consegue amedrontar a raposa com seus zurros.

Ordine dedica dois capítulos à análise da asinidade: o capítulo 6 versa sobre a sua positividade, e o capítulo 7, sobre a sua negatividade. Na relação entre o asno e o trabalho árduo e penoso, Ordine vê a simbologia das qualidades asininas às quais Bruno presta homenagem: é impossível conceber a civilização sem o esforço asinino da humildade, da tolerância e da predisposição a uma dura labuta. São muitos os obstáculos que dificultam o acesso à verdade. Com o espírito, diz Bruno, é preciso “escalar e ultrapassar montanhas abruptas” para conseguir penetrar nas “alturas inacessíveis” e encontrar a luz eterna (p. 43). O infatigável percurso do espírito em busca da verdade conduz a uma espécie de “divinização” do homem, retratada na figura de Labuta em Spaccio (p. 44-45). Na Cabala, o ápice sublime da verdade é dado por Júpiter ao asno. Nessa visão de uma civilização desprovida de qualquer teleologia espiritual, cabe somente ao homem traçar o seu caminho, viver dignamente e, até o limite, usufruir de suas capacidades naturais. Em sua aventura do conhecimento, o homem faz a diferença apenas pela intensidade de sua labuta. Ordine reconhece nessas passagens de Spaccio a difícil experiência de Bruno em seu exílio.

Ao contrário dos asnos positivos, que “vivem na luz da sabedoria”, os asnos negativos “vegetam nas trevas da ignorância” e no imobilismo. A crítica de Bruno é implacável contra a asinidade negativa, composta por três dimensões: 1) a dos que negam a civilização por meio da exaltação do mito da idade de ouro em que é apregoada uma igualdade estagnada; 2) a dos aristotélicos e céticos que obstruem o conhecimento com a atitude rígida do “tudo sabemos” dos primeiros e do “nada sabemos” dos segundos; 3) a de alguns princípios cristãos que “convidam ao imobilismo e à ignorância para conquistar uma imortalidade ultraterrena” (p. 79) e embasam as absurdas pretensões dos reformadores evangélicos, esta “preguiçosa seita de pedantes”, que, ociosa, vive do trabalho alheio (p. 99). Ordine observa que, para Bruno, “a aventura do conhecimento só pode ser percorrida pela asinidade positiva”, em que “humildade, tolerância, fadiga e operosidade” são condições para a passagem da condição natural de feritas para a de humanitas, marcada pela “divinização” dos asnos positivos. Somente com a consciência de sua própria asinidade diante do conhecimento universal, o homem tem acesso às verdades que lhe escapam (p. 101).

No Capítulo 11, “O asno como os Silenos: as aparências enganam”, Ordine observa a semelhança entre o modelo de Bruno e os célebres Adagia, de Erasmo de Roterdam. Em Sileni Alcibiadis, Erasmo lembra que os Silenos eram pequenas estátuas cindidas em duas partes, que podiam ser abertas ou permanecer fechadas. Fechadas, elas representavam uma figura ridícula e monstruosa tocando flauta; abertas, revelavam uma divindade (p. 146). Esse adágio indica como as aparências podem enganar, pois se algo, num primeiro olhar, pode parecer ridículo e sem valor, contemplado mais a fundo, revela seu admirável interior. Erasmo retoma as palavras de Alcibíades no Banquete, de Platão (221e – 222a), sobre a natureza dos discursos de Sócrates, “semelhantes aos Silenos que se abrem” (p. 149). De início, os discursos de Sócrates podem parecer ridículos, tais os nomes e as expressões com que são revestidos; mas, quem os consegue entreabrir e neles penetra descobrirá o quanto são divinos, plenos de inteligência e virtude. Em vez de seguir os falsos sábios, distantes do verdadeiro conhecimento, Bruno exorta a, lentamente, abrir o Sileno/asno, a nele adentrar e descobrir o tesouro que ali se esconde, pois este é o único caminho para a sabedoria.

Nessa simbologia que abraça representações tão opostas no imaginário da Renascença, o mérito de Nuccio Ordine está em preservar a unidade do tema da asinidade no conjunto da obra de Bruno. Como bem afirmou Garin, ao identificar o seu valor teórico não apenas nos escritos em que a imagem do asno está presente, Ordine transforma a sua simbologia em fio condutor de toda a obra do pensador de Nola.

Embora bem-vinda entre nós a tradução desse importante livro para os estudos renascentistas, os tradutores brasileiros deixaram no latim original um número significativo de citações, lacuna que não desmerece a edição, mas que dificulta a compreensão do texto para quem não está familiarizado com esse idioma. Os tradutores das edições francesa e inglesa recorreram a latinistas para traduzir essas passagens, tornando o livro acessível a não- especialistas, possibilitando, desse modo, que um público mais amplo se interesse pela extraordinária experiência de Bruno. Como bem afirmou Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química, no Prefácio de A Cabala do Asno, “graças às palavras de Bruno, o livro faz refletir sobre temas que, embora em contextos totalmente diversos, merecem hoje a atenção das ciências naturais e humanas”.

Rosalie Helena de Souza Pereira – Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente em estágio pós-doutoramento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. E–mail: helenaper@hotmail.com

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[DR]

 

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