DUARTE, Regina Horta. A Biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil – 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, 219 p. Resenha de: PEREIRA, Airton dos Reis; OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco de. “A voz mais alta da Biologia”: Diálogos entre história política e história da ciência. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.
A Biologia Militante, de Regina Horta Duarte, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, é, certamente, uma grande contribuição aos muitos cursos de graduação e pós-graduação em História e permite-nos não apenas aprender sobre o tema analisado, mas compreender os procedimentos teórico-metodológicos do fazer histórico.
A partir da leitura dessa obra temos a certeza de que, além de pesquisas em arquivos, a escrita da história é fruto de escolhas afetivas, de constantes perguntas, da busca por conhecimentos transformadores e do desejo de fazer História como uma aventura intelectual que ressignifica nossas questões referentes à relação presente-passado por meio da construção de narrativas plausíveis.
A Biologia Militante é uma escrita leve, sedutora, clara e traz excelentes análises sobre a história do Brasil no período varguista. O fio condutor adotado foi a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1926 e 1945, privilegiando as articulações entre prá-ticas cientificas e vida política, o surgimento das especializações, no caso especifico da ciência biológica, e as experiências de divulgação científica.
O livro nos convida a entrar em contato com os conhecimentos e as práticas de três cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto (18841954), antropólogo; Alberto Sampaio (1881-1946), fitobotânico; e Cândido de Mello Leitão (1886-1948), aracnólogo. Ambos haviam passado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quando esta tinha passado por reformas, com a introdução de novas disciplinas e ênfase no ensino prático. As novas tendências européias de valorização do laboratório e do conhecimento biológico, sob influência da teoria de Pasteur, estiveram presentes na faculdade, nesse período. Esses homens fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional e por meio da noção de saber criativo possuíam a esperança de que este tipo de conhecimento transformaria a sociedade brasileira
Roquete-Pinto foi professor do Museu Nacional desde 1906, sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE) e participou ativamente da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro da qual foi seu secretáriogeral. Mello Leitão iniciou sua carreira como zoólogo, em 1913, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio Janeiro e no ano de 1916 trabalhou com Roquete-Pinto na Escola Normal do Rio de Janeiro. Sampaio foi contratado como professor de Botânica do Museu Nacional, em 1912, era membro da ABE e participou ativamente das atividades da Rádio Sociedade. Roquete-Pinto e Sampaio, embora que em momentos distintos, participaram de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil.
Além de serem grandes amigos, tais cientistas articulavam, entre si, não só a produção e difusão de conhecimentos, mas o jogo de reconhecimento pessoal e intelectual e, por outro lado, partilhavam grandes expectativas de transformação do Brasil numa grande nação, num contexto de jogo político intenso do governo provisório de Getúlio Vargas. A perspectiva era a construção de uma sociedade sem conflitos, harmônica, corporativa e regida por um Estado forte e centralizado. Estudos como os de Mello Leitão – num processo de negação ao darwinismo -focalizavam a vida social dos animais negando a competição entre os seres vivos, mas a obediência, harmonia, bondade, solidariedade, a hierarquia. Não obstante, as perspectivas de Vargas encontraram eco nas concepções defendidas pelos cientistas do Museu Nacional. Apesar das nuances do jogo político da época, esses cientistas foram atores em sintonia com as perspectivas do governo provisório de Vargas em “curar o corpo e aperfeiçoar o espírito” de um povo desvalido e empobrecido, vítima de elites egoístas.
O livro é composto de três capítulos. No primeiro, “A voz mais alta da biologia”, a autora argumenta que, desde o final do século XIX, a idéia da natureza como patrimônio nacional era um tema importante, e acreditava-se que o Brasil deveria se afinar ao debate internacional para amoldar-se aos padrões de civilidade. A hipótese central deste capítulo era de que, entre 18951930, a biologia se afirmou como saber específico e diferenciado, ganhando importância política e visibilidadede “mestra da vida”. Duarte estabelece sua argumentação a partir de quatro temas: a eugenia nas primeiras décadas do século XX,a biomedicina,a entomologia (médica e agrária) e o que ela vai chamar de a experiência de campo (em que poderíamos denominar de pesquisas para obter a noção da relação teoria e prática dos estudos).
A autora mostra como a biologia se constituiu como campo específico do conhecimento e como este se firmou como um saber decisivo na resolução de problemas políticos, principalmente a partir da emergência da população como objeto de preocupação nacional. Neste capítulo, Duarte trata ainda da participação de Roquette-Pinto, Mello Leitão e Sampaio, autoridades científicas do Museu Nacional, na elaboração de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, solicitado pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1933, cujo decreto foi assinado pelo Presidente da República, no ano seguinte. O Código de Caça e Pesca seria um instrumento importante na regularização e preservação do patrimônio flora-faunístico. Naquela época era notória a extinção de espécies animais cujas peles eram exportadas para compor a moda da “alta sociedade”. Os cientistas advogaram a necessidade do Governo Federal regular os “apetites” das elites em favor dos interesses de todos. Duarte destaca os êxitos e as frustrações dos cientistas no tocante ao texto final da Lei.
No segundo capítulo, A miniatura da Pátria, a historiadora inicia discorrendo sobre um churrasco realizado na Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, por contingentes das forças armadas gaúchas que visitavam a capital do Brasil. Edgar Roquette-Pinto, diretor do museu, convidou os soldados e os acomodou no Museu Nacional para assistir vídeos educativos sobre a natureza fauna-florística brasileira. Tal evento ganhou expressão para compreender como os biólogos articulavam uma série de meios comunicativos para propagar a idéia de preservação da natureza do país. Rádio, cinema, jornais e a Revista Nacional de Educação foram os principais divulgadores dessa idéia e o Museu Nacional abriu as portas para aulas práticas com crianças e jovens, e para visitas à sala de exposições de antropologia. Divulgar o conhecimento natural de todas as formas possíveis, ensinar às massas a ler e a escrever eram metas dos biólogos do museu. Ao final deste capítulo a autora se debruça sobre a documentação da Coleção Brasiliana1 e analisa as idéias dos três cientistas publicadas em diversos livros que produziram e cujo tema central versava sobre a biologia no Brasil. Entretanto, sendo o período histórico em questão, um momento na qual circulava no país as concepções da Escola Nova, seria muito mais enriquecedor se a autora tivesse tecido relações com essa postura pedagógica. Acreditarmos que essas análises seriam um elemento a mais para compreender a propagação das políticas de divulgação do conhecimento científico na era Vargas.
No terceiro capítulo, Como se fazia um biólogo, a autora nos apresenta a criação da Sociedade dos Amigos do Museu Nacional. Esse grupo surgiu em detrimento do afastamento dos três cientistas do museu e nos conduz a compreender a trajetória de Cândido de Mello Leitão ao analisar esmeradamente as obras escritas por ele e como sua produção foi significativa para a Biologia tornando-o reconhecido nacional e internacionalmente como um especialista em aracnídeos. Duarte não deixa de mencionar que o Museu Nacional perdeu força no fim da era Vargas como instrumento constituidor de opinião pública e que o discurso biológico, da mesma forma, se enfraqueceu como símbolo da identidade brasileira. Não obstante, a Biologia despontou como ciência importante no cenário brasileiro e ganhou espaço significativo nas universidades do país.
A leitura de A Biologia Militante é fundamental por ser um exemplo de trabalho bem escrito, fundamentado teoricamente e com fontes utilizadas de forma burilada. Deve ser lido para entender que o exercício interdisciplinar, lançado mão desde a Escola dos Annales, é extremamente significativo para as pesquisas históricas. É possível ainda conhecer possibilidades do exercício prosopográfico e perceber que muitos temas podem ser vistos como edificadores da nacionalidade brasileira.
O texto nos mostra ainda que a melhor referência teórica a ser aplicada na escrita depende dos documentos que escolhemos para cotejar as informações; é assim que Michel Foucault emerge diversas vezes na obra, principalmente quando fica notória a noção de que os sujeitos se constituem nas redes relacionais em que atuam, como no caso dos biólogos analisados. A obra coloca o leitor na perspectiva da História como conhecimento criador, realizado nas condições de possibilidades de cada pesquisa. Ao analisar racionalmente o papel do fazer científico na instituição das sociedades ao longo dos tempos, a autora busca se afastar do que Marc Bloch chamou do “satânico inimigo” da História: a mania de julgar.
A Biologia Militante, além de ser um excelente diálogo entre História e Biologia, pode permitir primorosos debates sobre questões sócio-ambientais, no Brasil, além de servir de alerta à sociedade brasileira para não aplainar o novo Código Florestal, aprovado em maio de 2011, sem indignações.
Mais do que um discurso histórico construído na interface da história política e da história da ciência, o livro de Regina Horta Duarte ajuda a compreender as articulações e os arranjos políticos que certos intelectuais fazem em seu tempo, no campo de produção e no jogo de relações com os poderes instituídos. Podemos, com certeza, afirmar: é uma excelente contribuição ao campo da história intelectual.
Programa de Pós-Graduação em História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife.Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901.
1 A Coleção Brasiliana foi inaugurada em 1931 por Fernando Azevedo e o projeto central era de “descobrir o Brasil aos brasileiros”.
Airton dos Reis Pereira – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidadedo Estado do Pará (UEPA) e membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, EducaçãoeCidadania na Amazônia/UEPA/CNPq. airtonper@yahoo.com.br.
Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Integrante do GEHISC/UFRPE/CNPq. romulojunior7@hotmail.com.
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