A pandemia de gripe espanhola foi um dos fenômenos mais devastadores que a humanidade já vivenciou. A doença irrompeu no hemisfério norte na primavera de 1918 e em menos de seis meses, matou milhões de pessoas em todo o mundo. Fenômeno global, a pandemia teve maior alcance e ceifou mais vidas do que a peste bubônica, que assolou grande parte da Ásia e da Europa em meados do século XIV. Apesar da abrangência e da destrutividade da pandemia de gripe de 1918-1919, durante muitos anos ela foi silenciada não só pelos que sobreviveram à catástrofe, mas também pelos historiadores, mais inclinados a investigar questões relativas à economia, à política e às guerras. Não à toa, o historiador norte-americano Alfred Crosby a denominou de “a pandemia esquecida”.
Contudo, nas últimas décadas do século XX, período marcado por sucessos da medicina, como a erradicação da varíola, e de derrotas imprimidas pela reemergência de doenças tidas como erradicadas e surgimento de novas, como a Aids, o olhar dos historiadores se voltou para a história da saúde e das doenças. Nesse contexto, estudos sobre epidemias e pandemias se multiplicaram em vários países e o Brasil tem seguido essa tendência com uma produção crescente de estudos sobre epidemias e pandemias do passado, realizados, sobretudo, nos programas de pós-graduação. Dentre as epidemias e pandemias estudadas, figura a de gripe espanhola (1918-1919), que vem sendo mapeada em várias partes do mundo, incluindo-se o Brasil.
Em 2018, quando foram completados os cem anos da pandemia, realizaram-se eventos acadêmicos e livros, capítulos de livros e artigos científicos sobre o assunto foram publicados no Brasil e no mundo. Na ocasião, a historiadora Anny Silveira realizou um levantamento da produção acadêmica brasileira com foco na temática, disponível em meios digitais: teses de doutoramento, dissertações de mestrado, capítulos de livro e artigos científicos publicados entre 1986 e 2018. O estudo revela que a pandemia vem sendo mapeada através de pesquisas realizadas sobre o evento em capitais e, em alguns casos, no interior de vários estados do Brasil: Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Naquela altura, não se imaginava que o mundo viveria uma crise sanitária em dimensões semelhantes ou até mais graves que a da pandemia de gripe espanhola – a pandemia de covid- 19. Os primeiros casos foram em registrados em Wuhan, na China, no final de dezembro de 2019, mas a doença se espalhou rapidamente pelo mundo e vem provocando inúmeros adoecimentos e mortes. A brutal intervenção da pandemia em todo o planeta contribuiu para aumentar o interesse da sociedade por temas relativos à história da medicina, da saúde e das doenças, principalmente por epidemias e pandemias do passado, certamente, pela necessidade de compreender e explicar as incertezas do presente.
O livro A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil, escrito por Lilia Moritz Schwarcz e Heloísa Murgel Starling, publicado pela Companhia das Letras em 2020, vem ao encontro desse anseio. Escritora premiada, doutora em Antropologia Social, com formação também em História, Lilia Moritz Schwarcz vinha se dedicando à pesquisa de assuntos relativos à história do Brasil monárquico, à escravidão, à identidade social, à etnicidade e outros em que a antropologia e a história dialogam. Doutora em Ciência Política, Heloísa Murgel Starling tem formação em História e se interessa por temas relativos à história do Brasil República, à canção popular e à questão agrária. Ambas são escritoras experientes, portadoras de vastos e importantes currículos, que incluem a publicação de livros, capítulos em coletâneas e artigos científicos nos campos de pesquisa escolhidos.
Portanto, não é de espantar que A bailarina da morte seja um trabalho muito bem escrito, de leitura fácil e atraente para o público em geral. Fartamente ilustrado, apoiado em fontes primárias e na literatura especializada, o livro apresenta um panorama da epidemia de gripe espanhola no Brasil, com foco nas capitais dos estados do Amazonas, Pará, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. As autoras não explicitam o critério de seleção das cidades, é possível que a escolha tenha resultado de uma combinação de condições geográficas, políticas, econômicas e demográficas.
Ao analisar a chegada da doença no Brasil e seguir o seu avanço através das rotas marítimas e terrestres, Schwarcz e Starling discutem, brevemente, o contexto político, social e econômico em que a gripe irrompe e se propaga; colocam em relevo os esforços das elites brasileiras para alcançar os ideais de civilização e progresso em contraste com as precárias condições de vida da maioria da população; avaliam o quadro sanitário e os serviços de saúde disponíveis; o que a medicina conhecia sobre a doença e as medidas tomadas para controlar a epidemia, tratar os doentes e sepultar os mortos. O conteúdo e a abordagem escolhida não são novos, são caminhos escolhidos e discussões já enfrentadas por autores referenciados no próprio livro. O diferencial é que se trata de um cenário mais abrangente, já que as autoras reuniram na mesma obra várias capitais, situadas em diferentes regiões do país, oferecendo ao leitor uma síntese do fenômeno no Brasil e a possibilidade de comparar realidades tão diversas e, ao mesmo tempo, semelhantes em muitos aspectos.
Como boas escritoras e historiadoras que são, escolhem títulos para os capítulos que apontam os aspectos da pandemia a serem privilegiados nos lugares estudados. Assim, o título que enuncia o texto sobre a gripe no Recife – “‘Tanatomorbia’: a doença que mata no Recife” – faz alusão ao silenciamento e à dificuldade dos médicos e autoridades sanitárias pernambucanas para determinar qual era a doença que estava levando a óbito os recifenses, interferindo, assim, na resposta a esta. Em “Escala em Salvador de Todos os Santos”, as autoras destacam as manifestações de fé dos baianos para aplacar o mal, curar os doentes, afastar o perigo de morte e consolar os corações confrangidos pelas perdas dos entes queridos, em cenário de carestia, greves, crise econômica e disputas políticas.
No capítulo intitulado “A espanhola invadiu a capital federal”, Schwarcz e Starling destacam a ausência de medidas para impedir a invasão da epidemia em uma das cidades mais populosas do Brasil, de aspecto cosmopolita, mas cuja aparência de civilização e progresso não ia muito além dos belos edifícios que ornavam a moderna Avenida Central. A epidemia contribuiu para transformar a “cidade maravilhosa” em “cenário mefistofélico”, conforme qualificou Adriana Goulart: cidade deserta, ruas vazias, serviços paralisados, desabastecimento, serviços de saúde e médicos insuficientes para atender toda a população, colapso dos serviços funerários, resultando em cadáveres insepultos pelas ruas, dentre outras calamidades.
Ao discorrer sobre a “São Paulo espanholada”, as autoras ressaltam o negacionismo inicial dos paulistanos, que julgavam que a espanhola não teria fôlego para chegar à cidade, protegida não só pela distância do litoral como também pelo clima salubre que caracterizava a cidade. Contrariando o prognóstico, a gripe tomou rapidamente as casas, as ruas e bairros da cidade em processo crescente de industrialização, povoada por “caipiras nacionais” e imigrantes. Belo Horizonte era outra “cidade que se julgava salubre”, protegida da epidemia, por ter sido planejada segundo as normas da higiene urbana e por apresentar um quadro sanitário favorável. A “espanhola” chegou de trem e revelou as desigualdades nas condições de vida da população que o planejamento urbano não resolveu.
O capítulo “Espanhola não combina com chimarrão” revela a desolação de Porto Alegre invadida pela gripe espanhola e ressalta como uma epidemia pode afetar o frágil equilíbrio das cidades, sobretudo quando associada à carestia, à falta de víveres e de remédios. Schwarcz e Starling colocam em evidência a censura da imprensa, o negacionismo, as deficiências dos serviços de saúde e o movimento da população para se proteger e tratar a doença.
No capítulo intitulado “A espanhola na terra da borracha”, o olhar do leitor é direcionado para duas capitais de estados da Amazônia – Manaus e Belém -, que se desenvolveram e modernizaram, entre meados do século XIX e início do XX, em decorrência do capital gerado pela a extração e comercialização da borracha. Do cenário da gripe amazônica, emergem personagens representativos das diferentes etnias e camadas da sociedade. Vêm à tona os interesses dos atores sociais, nem sempre condizentes com medidas necessárias para o controle da crise sanitária. Ganham relevo, igualmente, as crenças e os ritos religiosos, os remédios e mezinhas caseiras, as práticas de cura dos povos tradicionais, dentre outras facetas da realidade estudada, revelada pela epidemia.
A leitura dos capítulos nos revela que, apesar das aspirações de grandeza e modernidade das elites brasileiras, a epidemia desnuda a realidade das maiores cidades brasileiras – havia a face progressista e moderna, desfrutada pelos mais abastados, e outra caracterizada pelo atraso, assolada pela pobreza, sofrida pelos despossuídos. Quando a epidemia irrompe, o negacionismo, as opiniões divergentes dos médicos e a crença na benignidade da doença interferiram na tomada de decisões por parte dos agentes públicos. A rápida propagação da gripe espanhola nas cidades, somada ao desemprego, à carestia, à crise de moradias e à falta de saneamento urbano nas áreas mais pobres das cidades, o grave quadro sanitário do país, enfim, às precárias condições de vida e saúde da maioria da população brasileira, resultou em consequências funestas na maior parte das cidades.
No capítulo sobre a Bahia, considera-se importante rever algumas afirmações das autoras a respeito do posicionamento dos médicos e autoridades sanitárias em relação à determinação da etiologia da doença, profilaxia e terapêutica durante a epidemia de gripe espanhola. Os médicos baianos não associaram a gripe à herança étnico-racial da população, consideravam, na verdade, que as condições materiais de vida e de saúde poderiam interferir na resposta do organismo à doença. Não há, igualmente, registros de que os médicos baianos tenham confundido a gripe espanhola com o tifo, a cólera ou a febre dos três dias. Especulou-se, inicialmente, que pudesse se tratar da gripe sazonal e benigna. O médico Prado Valadares chegou a suspeitar de dengue, mas advertiu que não era uma opinião conclusiva, pois não havia investigado o assunto com profundidade. Por conta das opiniões divergentes em torno do agente etiológico e diferentes percepções da doença, que agitavam o cenário internacional e transbordavam para as páginas dos jornais baianos, o Diretor Geral da Saúde Pública da Bahia, Alberto Muylaert, achou prudente investigar, antes de estabelecer um diagnóstico, prognóstico, profilaxia e terapêutica da doença em curso. Os médicos vinculados à Diretoria Geral da Saúde Pública consideraram que não dispunham de tempo para realizar pesquisa de laboratório e isolar o patógeno – o protocolo de pesquisa exigia o cumprimento de diversas etapas e a doença se espalhava com grande velocidade. Os médicos optaram, então, pela realização de um estudo clínico e epidemiológico em várias coletividades, onde foram examinadas mais de 500 pessoas. Diante do crescente número de infectados e dos sintomas e sinais apresentados, chegaram à conclusão de que se tratava de gripe, doença de extrema difusibilidade e contagiosidade, que, na ocasião, apresentava um grau de virulência maior. Estavam igualmente cientes que, em casos de gripe, o alcance das medidas profiláticas e terapêuticas eram limitados, pois não contavam com uma vacina, nem remédio específico para a doença, mas recomendaram medidas de higiene individual e coletiva na esperança de diminuir o contágio e controlar o avanço da epidemia.
Merece destaque, igualmente, o capítulo intitulado “Quem matou Rodrigues Alves?”, que, tal como a novela política que enredou o Brasil naquela quadra epidêmica, prenuncia uma polêmica. Logo de início, o leitor é convidado a participar das exéquias do presidente eleito, descritas com riqueza de detalhes, mas o que querem as autoras com este capítulo é questionar se a gripe espanhola foi mesmo a causa mortis de Rodrigues Alves, conforme afirmam vários historiadores. As autoras se valem do atestado de óbito do presidente eleito para contestar a tese vigente – o documento assinado por médicos renomados registra o óbito por parada cardíaca no curso de uma “anemia perniciosa”. Mas a controvérsia não parece resolvida.
Rodrigues Alves já vinha sofrendo os achaques próprios de um septuagenário, apresentando problemas de saúde desde 1913. Em 24 de outubro de 1918, contraiu a gripe espanhola. A notícia alcançou as páginas dos jornais, ainda que os filhos assegurassem à imprensa que se tratava de uma gripe benigna, mas Rodrigues Alves não compareceu à posse, alegando “motivo de força maior”. Segundo Afonso Arinos, nas vésperas, a doença se agravara e médicos de confiança da família foram chamados, às pressas, a Guaratinguetá – ardendo em febre, o Conselheiro não tinha forças para levantar-se do leito. Ainda que sua disposição oscilasse, uma febrícula e a falta de apetite persistiram, contribuindo para agravar a caquexia. A família, os médicos e correligionários tentaram escamotear os fatos, em cenário convulsionado pela crise econômica, pelas disputas políticas entre as oligarquias e à necessidade de preencher os cargos do governo. Contudo, a condição física de Rodrigues Alves foi-se deteriorando, até que em 16 de janeiro de 1919 seu sofrimento foi abreviado pela morte.
Durante a pandemia, os médicos advertiram que a gripe agravava a saúde e levava à óbito puérperas, indivíduos convalescentes ou mal restabelecidos de doenças debilitantes e portadores de doenças preexistentes. Assim, a gripe espanhola abreviou a vida de puérperas, portadores de tuberculose pulmonar, cardiopatias, nefropatias etc., resultando em registros de óbitos por outras enfermidades.
O fato de a gripe não figurar como doença de notificação obrigatória contribuía para que o diagnóstico fosse mascarado. A imprensa chamava a atenção para os atestados de óbito que tinham como causa mortis as doenças do aparelho digestivo, tuberculose, arteriosclerose ou meningite, mas que as famílias das vítimas informavam que seus parentes, na verdade, sucumbiram à gripe. Ademais, as restrições impostas e os problemas adjacentes ao registro de óbito por doença infectocontagiosa, segundo determinava a legislação vigente – os familiares não podiam velar o corpo nem acompanhar o féretro, a casa devia ser expurgada e os objetos de uso pessoal do enfermo, queimados -, ganhavam peso na hora de registrar o óbito. A supressão da liturgia fúnebre dessacralizava a morte, tornando-a ainda muito mais temível. Se voltar ao início do capítulo, o leitor perceberá que as homenagens póstumas, prestadas a uma figura pública de relevo como Rodrigues Alves, contrariavam completamente as recomendações das autoridades sanitárias, em período que a epidemia não estava debelada.
Ao percorrer as páginas o livro, é possível que os que vivenciam a pandemia de covid-19 tenham uma sensação de familiaridade com os fatos ocorridos durante a pandemia de gripe espanhola. Apesar das diferenças entre patógenos, doenças, contextos e atores sociais, em linhas gerais, as epidemias/pandemias obedecem a uma sequência narrativa que se repete ao longo da história: começam como um evento discreto, mas de progressão contínua entre o incidente, a percepção, a interpretação e a reação a esta. Para entender melhor, recomendo que leiam e descubram por si mesmos os pontos de contato e as diferenças entre estes terríveis eventos.
Referências
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Resenhista
Christiane Maria Cruz de Souza – Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Núcleo de Tecnologia e Saúde, Salvador/BA. E-mail: chriscruz160@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9716-7891.
Referências desta Resenha
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Resenha de: SOUZA, Christiane Maria Cruz de. Sobre a “mãe das pandemias”. Topoi. Rio de Janeiro, v. 22, n. 48, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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