A arte de ler ou como resistir à adversidade | Michèle Petit
Abordagens teóricas sobre leitura e suas consequências na vida das pessoas têm sido relativamente comuns ultimamente. Não tão comum assim, contudo, é a tentativa de conciliar semelhante perspectiva a atividades próprias da psicoterapia e suas derivações, como procura fazer Michéle Petit em seu mais recente livro (A arte de ler ou como resistir à adversidade).
Refletindo sobre a atuação da leitura em lugares onde a crise é particularmente intensa (situações de guerra e violência, contextos de deslocamentos populacionais e recessões econômicas etc.), a autora começa lembrando que, em tais situações, a leitura poderia contribuir tanto na reconstrução de si mesmo quanto na promoção de uma atividade psíquica saudável. Nesse sentido, defende a apropriação da literatura nessa tarefa, na medida em que a literatura, além de mais crítica, torna-se mais capaz de explorar melhor a experiência humana. Semelhante atividade, completa a autora, tem sido desempenhada pelos mediadores de livros, cuja principal função seria auxiliar na compreensão da literatura como instrumento de organização e transformação da própria história dos leitores. São esses mediadores culturais que criam uma “abertura psíquica” (p. 50), revelando ao leitor o universo dos livros e da literatura, prática na qual a oralidade desempenha papel imponderável.
Assim, a autora defende a ideia de que, por meio da leitura, a interioridade do ser humano é modificada, permitindo ao leitor – sobretudo aquele que vive em espaços de crise – que recupere um sentimento de continuidade. Em suma, pode-se dizer que “para além desses contextos dramáticos, a leitura como o jogo, é uma maneira de se reafirmar, dia após dia” (p. 91). Constituindo-se, portanto, num suporte de discurso de si mesmo, a literatura faz com que o leitor que vive numa situação adversa possa ver o mundo de outra maneira, sobretudo em razão de sua capacidade de fornecer representações simbólicas, necessárias, segundo a autora, à existência humana: “Não importa o meio onde vivemos e a cultura que nos viu nascer, precisamos de mediações, de representações, de figurações simbólicas para sair do caos, seja ele exterior ou interior. O que está em nós precisa primeiro procurar uma expressão exterior, e por vias indiretas, para que possamos nos instalar em nós mesmos” (p. 115).
Considerando ainda que nossas vidas são tecidas por relatos, construídos ao longa da nossa existência, entende-se a necessidade de histórias, as quais podem ser resgatadas pela ação dos mediadores culturais, os quais, muitas vezes, desenvolvem um autêntico “trabalho terapêutico” (p. 130), trabalho completado por bons psicólogos e psicanalistas.
Michèle Petit trata, finalmente, dos espaços coletivos de leitura (como, por exemplo, os Clubes de Leitura), onde se desenvolve uma leitura compartilhada, responsável por proporcionar experiências literárias que contribuem para a formação de uma sensibilidade. Muito desse trabalho, assinala a autora, depende da escolha do texto feita pelos leitores ou pelos mediadores, nesse trabalho que, além de ser uma promoção da leitura propriamente dita, afirma-se ainda como forma de melhorar a autoestima do leitor:
os livros são hospitaleiros e nos permitem suportar os exílios de que cada vida é feita, pensá-los, construir nossos lares interiores, inventar um fio condutor para nossas histórias, reescrevê-las dia após dia. E algumas vezes eles nos fazem atravessar oceanos, dão-nos o desejo e a força de descobrir paisagens, rostos nunca vistos, terras onde outra coisa, outros encontros serão talvez possíveis. Abramos então as janelas, abramos os livros (p. 266).
Pode-se dizer que, grosso modo, em seu novo livro, Michèle Petit rejeita a consideração formativa ou informativa da literatura – portanto, seu sentido pedagógico –, buscando nela um valor terapêutico, catártico – portanto, um sentido psicológico. É exatamente essa mudança de perspectiva, na consideração da leitura literária, que confere ao livro um caráter que vai além do testemunho pessoal, mas que fica aquém da crítica objetiva: trata-se, antes, de um bem fundamentado relato de experiências sociais e vivências pessoais relacionadas à leitura.
Seu texto – como o título sugere – busca resgatar uma espécie de função terapêutica da literatura, seja ela escrita ou oral, o que – embora passível de contestação – não deixa de ser uma forma original de aliar literatura e psicanálise, o que se percebe até mesmo pela profusão de teóricos desta última área do saber que a autora mobiliza para sustentar suas teses.
Por esses e outros motivos – aqui aventados ou não – é que esse A Arte de Ler merece ser, de fato, lido com gosto e atenção. Afinal, como a própria autora afirma, “ler, apropriar-se dos livros, é reencontrar o eco longínquo de uma voz amada na infância, o apoio de sua presença sensível para atravessar a noite, enfrentar a escuridão e a separação” (p. 65).
Resenhista
Maurício Silva – Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Nove de Julho. E-mail: maurisil@gmail.com
Referências desta resenha
PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: SILVA, Maurício. Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v.1, n. 2, p.117-119, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]