Em julho de 2008, Adam Sun (1953-2008) publicava na Revista Piauí uma séria – e muito bem humorada – crítica as inúmeras traduções do livro Sunzi Bingfa 孫子兵法, tradicionalmente vertido para o português como A Arte da Guerra de Sun Tzu (Sun 2008). Adam Sun era chinês de nascença, mas foi criado no Brasil e dominava perfeitamente tanto português como chinês. Ele trabalhou como checador de jornais e revistas como Veja, Época e Piauí, função que tinha por objetivo avaliar a procedência e veracidade de informações, revisar equívocos de cronologia ou de citação e mesmo, se a construção do texto estava clara e conseguia entregar o conteúdo pretendido. Ou seja, Sun era um caçador de Fake News (muito antes delas virarem moda), acidentais ou não, que poderiam frequentar as redações onde trabalhara (Redação da Piauí 2008).

Com essas qualificações em mãos, ele decidiu investigar as centenas de versões do livro Sunzi Bingfa que existiam no mercado, para descobrir que não havia uma sequer que fosse uma tradução direta do chinês. Todas as versões disponíveis eram traduções de traduções, plágios e recriações, na sua maioria feita as pressas e de má qualidade. Um dos maiores sucessos editoriais no Brasil em termos de vendagem, A Arte da Guerra era, na verdade, um problema literário sério, e não podíamos contar com uma versão confiável do mesmo.

Sun estava sendo humilde e discreto: ao longo da reportagem, ele não deixou escapar, em nenhum momento, que havia publicado dois anos antes a sua própria tradução de Sunzi – dessa vez, a primeira, realmente, feita do chinês para o português (Sun 2006). Sua versão do texto elevara a um novo patamar de qualidade a publicação de Sunzi em língua portuguesa; no entanto, a abundância de versões pirateadas, a falência da editora (Conrad) que publicou sua obra, e o próprio desconhecimento do público sobre a história e o pensamento chineses permitiram que a Arte da Guerra continuasse a ser praticamente um caso de polícia.

Dois anos após a publicação da matéria de Adam Sun, a Jardim dos Livros empreendeu a publicação de uma nova tradução da Arte da Guerra de Sunzi. Sun havia revelado que a versão publicada pela editora até 2008 era uma colagem de trechos de várias outras versões, assinada por um personagem fictício chamado de Nikko Bushido – nome intraduzível, que com criatividade e esforço poderíamos verter como “Caminho da Guerra Japonês” (por comparação, é como se nosso autor se chamasse “Capoeira Brasileiro”). Para se recuperar do vexame, contrataram o professor André Bueno, um respeitado estudioso de China antiga, para fazer uma tradução autorizada da obra. O livro foi lançado em 2010, trazendo uma versão abalizada e segura, mas voltada para ampla divulgação. Bueno conta os percalços e impressões sobre a tradução do livro em dois artigos (Bueno 2014; Bueno 2016a), e na sequência, publicou ainda uma relação crítica das traduções do livro feitas até 2016 (Bueno 2016b). A Jardim dos Livros não perdera alguns cacoetes de suas publicações literárias: o próprio tradutor informa dentro do livro que preferia denominá-lo como A Lei da Guerra, mas editora – possivelmente prevendo que o livro poderia não ser achado pelos possíveis leitores – manteve a grafia antiga de Sunzi (“Sun Tzu”) e empregou o nome já consagrado na capa.

Essa situação revela que o consumo deste antigo clássico chinês não superou, ainda, a barreira do exotismo ou da autoajuda no imaginário dos brasileiros. Tanto as traduções de Adam Sun quanto de André Bueno receberam um tratamento estritamente comercial, com objetivo de larga vendagem – o que nivelaria essas duas publicações com a concorrência, diminuindo sua qualidade e impacto. Nos anos que se seguiram, o número de versões (ou seja, adaptações de traduções) continuou a crescer, eclipsando iniciativas mais sérias de abordagem do livro. Mesmo uma análise filosófica mais aprofundada de Sunzi, como a feita pelo filósofo francês François Jullien (1998), não alcançou a apreciação devida, sendo superada pela avalanche de obras que visavam adaptar a Arte da Guerra para as áreas de coaching, administração, mercado, economia, desenvolvimento pessoal, culinária e relações amorosas.

Contudo, em 2019 a editora Companhia das Letras publicou a tradução de uma nova versão da Arte da Guerra, resgatando um estudo sério e aprofundado do texto. Apesar das pequenas questões de forma e arte, que preservam o interesse mercadológico (como o título já “sacralizado” de Arte da Guerra e a grafia autoral “Sun Tzu”), a Companhia – em associação com a inglesa Penguin Books – inseriu a obra na seleção de clássicos da literatura mundial, o que por si só já lhe deu um destaque especial na produção e na apresentação. Esse elemento estético, embora possa parecer pouco relevante na análise do conteúdo, demonstra que a editora conseguiu perceber a necessidade de dar um outro tratamento a tradução, resgatando-a da concepção de um consumo rápido e superficial para elencá-la como uma produção literária e filosófica que requisita maiores atenções intelectuais.

Essa nova versão publicada foi feita a partir da tradução (para o inglês) de John Minford (original: 2009), o que significa, desde a partida, numa perda. Muitas das demais obras do catálogo da Companhia são traduções diretas do inglês, francês, alemão, entre outros idiomas com os quais os tradutores brasileiros usualmente lidam com maior facilidade. Nesse caso, não se pretendeu a tradução direta do chinês, mas de uma versão já pronta, o que sempre implica em um distanciamento em relação ao texto original. Por outro lado, essa questão parece ser amplamente compensada pela expertise de Minford em relação ao livro, e na sua capacidade de explicar, traduzir e orientar os leitores na compreensão do Sunzi Bingfa. O trabalho desse sinólogo compreendeu não apenas a tradução da obra original como ainda, a inserção de toda uma tradição de comentaristas chineses sobre a mesma, elemento praticamente ausente nas versões brasileiras. Um conjunto de copiosas notas se dedica a explicar mais pormenorizadamente conceitos, ideias e personagens, construindo uma visão ampliada sobre o contexto da época e os debates intelectuais que permearam a construção da obra. Por essa razão, o livro está dividido em duas partes: na primeira, o texto original é apresentado em sua versão acabada, e na segunda, cada um dos fragmentos é analisado, passo-a-passo, pelos diversos pensadores chineses que se debruçaram sobre o tema, trazendo essa inédita fortuna crítica para o público leitor brasileiro. A publicação ficou volumosa para um texto tão sintético como o de Sunzi, mas corresponde ao amplo trabalho de análise feito pelo autor. Minford realiza, ainda, inferências sinológicas de cunho próprio, que buscam orientar e/ou relacionar a leitura com outras correntes de ideias chinesas, o que – longe de direcionar a compreensão em um sentido restritivo ou unívoco –, alargam o conjunto de possibilidades de interpretações sobre a mesma, sem descambar para associações superficiais ou equivocadas.

Cumpre salientar que a editora buscou, no tratamento da tradução, conceder uma atenção especial a essa obra, buscando preservar em quase toda a totalidade do texto os sentidos e formas empregadas por Minford. Portanto, se por um lado o livro não foi traduzido diretamente do chinês, por outro, os aspectos de erudição e cuidado com o mesmo compensam largamente a opção de vertê-lo do inglês. Nesse sentido, essa versão da Arte da Guerra torna-se uma das poucas referências seguras em português para abordar o original, servindo não apenas de ponto de partida, mas também, de um material analítico que dialoga com o texto clássico. Como prova maior dessa iniciativa, foram convocados Leonardo Alves para realizar a tradução e André Bueno para fazer uma introdução histórica além da revisão geral dos conteúdos chineses. Alves é um tradutor com grande experiência em obras chinesas, tendo sido responsável, também, pela complexa tradução e adaptação ao português da recente trilogia de ficção científica O problema dos três corpos (3 vols. 2016- 2019) de Liu Cixin 刘慈欣, o que revela seu trânsito destacado nos aspectos culturais e linguísticos que envolvem esse tipo de tradução em específico. Já André Bueno (que havia feito sua tradução do livro em 2010) foi convidado a fazer uma introdução histórica, disponível apenas na versão brasileira, que nos apresenta o contexto da época de produção do Sunzi Bingfa, os problemas de autoria, correntes intelectuais na China antiga, entre outros aspectos que nos permitem compreender melhor o surgimento desse livro e sua recepção no mundo Ocidental. Mais um aspecto louvável nessa versão: a editora poderia simplesmente lançar o leitor no texto de Minford, cuidadosamente trabalhado por Leonardo Alves; todavia, ela optou por preparar o terreno, disponibilizando uma apresentação histórica que nos conecta com o ambiente de produção e debate, afastando-nos de uma interpretação ligeira ou perfunctória.

Por essas razões, podemos considerar que essa nova versão da Arte da Guerra não é apenas mais uma tradução do livro de Sunzi, a perder-se no imenso mar de versões plagiadas e equivocadas. Trata-se de um dos seletos trabalhos que visam introduzir essa obra no escopo das análises sinológicas, acadêmicas e literárias, em um sentido mais sério e aprofundado. Ainda no aguardo de uma tradução direta, para o português, que incorpore as diversas discussões históricas e científicas que permeiam a trajetória do Sunzi Bingfa, a versão publicada de John Minford serve como uma base segura para iniciarmos nossos estudos sobre a escola dos estrategistas chineses, oferecendo-nos uma obra cuidadosa e trabalhada a partir dos estudos de um especialista.

Referências

BUENO, André. “A ‘Lei da Guerra’: Uma Longa Errata…”. Em Revisões Literárias. Literatura Sinológica no Brasil: apontamentos e avaliações, ed. André Bueno, 42-47. Projeto Orientalismo: Rio de Janeiro, 2016a.

BUENO, André. “A Escola Chinesa dos Estrategistas no Brasil: uma revisão Literária”. Em Revisões Literárias. Literatura Sinológica no Brasil: apontamentos e avaliações, ed. André Bueno, 48-65. Projeto Orientalismo: Rio de Janeiro, 2016b, p.48-65.

BUENO, André. “As dificuldades de uma tradução: um ensaio sobre o Sunzi Bingfa 孫子兵法 e o contexto cultural brasileiro”. Cadernos de Literatura em Tradução, 14 (2013): 89-98. https://doi.org/10.11606/issn.2359-5388.i14p89-98

JULLIEN, François. O Tratado da Eficácia. São Paulo: Editora 34, 1998.

Redação Piauí. “Despedida – Acabou a gargalhada: Adam Sun, o chinês que definiu a checagem e traduziu Sun Tzu”. Revista Piauí, novembro de 2008, 26. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/acabou-a-gargalhada/

Sun Tzu. A Arte da Guerra. Trad. Adam Sun. São Paulo: Conrad, 2006.

Sun Tzu. A Arte da Guerra. Trad. André Bueno. São Paulo: Jardim dos Livros, 2010.

Sun Tzu. A Arte da Guerra. Trad. John Minford e Leonardo Alves; Revisão e introdução, André Bueno. São Paulo: Companhia das Letras/Penguin Books, 2019.

SUN, Adam. “O Pega-pega da Arte da Guerra”. Revista Piauí, julho de 2008, 22. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-pega-pega-da-arte-da-guerra/


Resenhista

Kamila Czepula – Mestra em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho – UNESP (2017) e Doutorado em andamento na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre cultura, política e sociabilidade. Pesquisas e interesse na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, gênero, intelectuais, imigração chinesa, e relações culturais sino-luso-brasileiras. É Bolsista Aluna Nota 10 FAPERJ. E-mail: kamiczepula@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-1988-7516


Referências desta Resenha

TZU, Sun. A Arte da Guerra. Trad. John Minford e Leonardo Alves. São Paulo: Companhia das Letras; Penguin Books, 2019. Resenha de: CZEPULA, Kamila. Essa não é apenas mais uma tradução da Arte da Guerra de Sunzi. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.1, p. 440-444, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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