Antonio Gramsci, indubitavelmente, é considerado, por muitos, um dos teóricos mais importantes da tradição marxista do pós-Segunda Guerra Mundial. Milhares são as obras e dezenas são as teorias que procuram ver nos trabalhos gramscianos a chave interpretativa que auxilia na compreensão da dinâmica sociopolítica contemporânea. Por meio das mais diferentes linhas de pensamento, Gramsci está associado ao modo como o fazer e o pensar políticos estão relacionados a todo um arcabouço cultural, que envolve as sociedades atuais. Desse modo, seus escritos encontram-se muito mais associados aos estudos marxistas ligados à filosofia da práxis. Como exercício comparativo, podemos perceber uma clara diferença com relação às linhas de pensamento marxistas ligadas à teoria crítica. Generalizadamente, embora ambas deem uma importância significativa ao elemento cultural das sociedades modernas, os estudos gramscianos encontram na esfera da política e do universo do político, o lugar de confrontos e consensos para suas análises. No caso da Escola de Frankfurt, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, entre outros, o universo do político espraia-se em outras dimensões da contemporaneidade, como os meios de comunicação e o mundo da arte.
Sendo assim, desde os tempos de vida de Antonio Gramsci, marxismo e atuação política estiveram alinhados em uma filosofia da práxis. No entanto, o que iremos analisar nesse espaço é a transcendência dos escritos gramscianos para além do marxismo, o que não deixa de ser uma tarefa radical em tempos de análises polarizadoras e reducionistas acerca do projeto político do “pensador” e “político” sardo. Superando o Gramsci radical e revolucionário da estratégia da “contra-hegemonia” (conceito este nunca utilizado pelo autor sardo), e o Gramsci da “revolução globalista da esquerda comunista”, caricaturado pela extrema direita mundo afora, o historiador Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira, em A arquitetura de fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do cárcere, nos oferece uma leitura honesta e inovadora dos escritos gramscianos ao centralizar o elemento da democracia em seus escritos no cárcere. De acordo com o historiador,
a democracia, na análise gramsciana, aparece desvinculada de um corte classista, o que contribui sobremaneira para a valorização dessa forma política, pois, conforme seus vínculos se desenvolvem com o conceito de hegemonia, aparece como uma possibilidade de construir um consenso a partir da política. Por isso, em um regime democrático marcado por uma política ocidental, as demandas da sociedade civil se fortalecem e podem fluir com mais intensidade pela sociedade, de modo a favorecer a passagem molecular dos grupos dirigidos para a condição de dirigentes. […] Nesses termos, Gramsci pretende elaborar uma ligação entre hegemonia e democracia, marcando que, na modernidade ocidental, a constituição do consenso, do poder e de sua legitimidade ocorre em um horizonte democrático (2019, p. 243-244).
A elaboração desta tese marcou posição em uma tradição intelectual acerca dos estudos gramscianos, cuja origem remonta aos finais dos anos 1970 no Brasil, quando Carlos Nelson Coutinho apresentou seu texto seminal A democracia como valor universal. Posteriormente, seguindo a tradição dos estudos gramscianos no Brasil, nomes como Luiz Werneck Vianna, Marco Aurélio Nogueira, Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques, Maria Alice Rezende de Carvalho, entre outros, passaram a desenvolver e aprimorar a relação entre democracia e esquerda no campo intelectual brasileiro.1 Contudo, esse caminho esteve longe de ser contínuo e retilíneo, haja vista que, a interpretação de Coutinho “esbarrou no velho conceito de revolução como forma explosiva, embora tentasse promover a democracia como valor universal”, quando, em relação ao texto aqui citado, “isso ocorreu no nexo entre revolução passiva e via prussiana, vinculando aquela a um processo histórico regressivo de transformação. Isso implicou na necessidade de se deflagrar um processo revolucionário capaz de inverter a chave da revolução passiva em ’revolução ativa’” (OLIVEIRA, 2019, p. 74-75).
Uma demonstração inconteste quanto às transformações interpretativas em torno da relação democracia e esquerda no Brasil encontra-se nos trabalhos de Luiz Werneck Vianna, quando, em 1997, publica um ensaio intitulado A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil, no qual analisa a revolução passiva gramsciana por um outro caminho. Segundo Marcus Oliveira, a revolução passiva não passa por uma inversão nos escritos de Vianna, pois tal conceito está condicionado ao entendimento de uma transformação morfológica da história e da política (2019, p. 76). Ao final dos anos 1920 e início dos anos 1930, quando Gramsci encontra-se encarcerado, ocorrem transformações importantes no modo como o dirigente sardo visualiza as mudanças no cenário socioeconômico mundial. O não espraiamento global da Revolução Bolchevique, a ascensão do fascismo e do novo modo de produção industrial fordista causaram um impacto significativo no modo como Gramsci passou a ver o mundo político. Políticas de massa e sociedade civil passam a ser conceitos cada vez mais presentes no vocabulário gramsciano. A perspectiva revolucionária do assalto ao Estado, tendo como prisma a Revolução Bolchevique, perdeu sua capacidade em detrimento de acumulações moleculares:
Nessa leitura, as transformações orientadas no interior da revolução passiva dependem tanto do seu caráter regressivo quanto do progressivo, da atuação política e da virtude, no sentido tomado por Maquiavel, dos atores em questão. Portanto, diferentemente de Coutinho, a leitura de Vianna se encaminha para uma apropriação política de Gramsci que supera a ambiguidade criada pelo primeiro entre democracia e revolução. Isso ocorre porque, para Vianna, a revolução em Gramsci se encontra cancelada pela própria dinâmica da história. Diante disso, as transformações ocorrem a partir da luta política pelo consenso, no interior das próprias instituições e do regime democrático (OLIVEIRA, 2019, p. 77).
Assentamos, a partir dessa travessia delineada por Marcus Oliveira, as raízes democráticas das interpretações gramscianas para além do marxismo no Brasil, quando, ao se afastar da interpretação lukacsiana de Coutinho, Werneck Vianna, duas décadas depois da publicação de A democracia como valor universal, generaliza, de fato, o elemento da política democrática como compreensão teórica e estratégica do universo político. Não é por acaso, desse modo, que a ferramenta conceitual da cultura política preencha as necessidades teóricas dessa linha de pensamento, redimensionada por Marcus Oliveira em seu novo livro. E para além desse instrumento conceitual, que procura relacionar as diferentes temporalidades do tempo histórico com o agir político dos atores sociais, Oliveira arrisca, segundo suas próprias palavras, analisar a obra de Gramsci tendo como técnica as “cidades invisíveis de Ítalo Calvino, uma cidade cuja arquitetura se movimenta em razão de movimentos fractais ordenados dentro de um plano cartográfico que a unifica”, mas que ganha uma forma distinta levando como princípio novos olhares, transformando esse exercício em uma mediação em movimento em uma nova arquitetura (2019, p. 22).
Diante desse desafio, Oliveira resgata dois importantes conceitos desenvolvidos por Gramsci no cárcere: hegemonia e revolução passiva, procurando demonstrar como ambos “transgridem o marxismo” (2019, p. 23). Enquanto hegemonia é um conceito que irá fundamentar o espaço da política democrática na modernidade, por meio da busca pelo consenso, a revolução passiva passa a ser vista como um conceito que afasta a perspectiva da revolução do tempo presente, do devir do sujeito revolucionário, em detrimento da passagem molecular dos subalternos a uma condição de dirigentes da sociedade (2019, p. 23).
Ao mesmo tempo original e transgressora, a tese proposta por Oliveira poderia assentar uma posição mais profunda ao abrir um espaço de debates com pensadores contemporâneos, que se utilizam do pensamento gramsciano e advogam em defesa de um pensamento democrático. Entre eles, citamos Boaventura de Souza Santos, Ernersto Laclau (2004) e Chantal Mouffe (2004). Embora Oliveira marque uma clara distinção em relação aos trabalhos de Mouffe e Laclau, o aprofundamento dessas diferenças clarearia ainda mais a posição defendida em Arquitetura fractal de Antonio Gramsci. Sua distinção encontra-se localizada na seguinte questão:
Nesse sentido, uma das respostas à democracia brasileira pode ser a vivência do tempo da política elaborado por Gramsci nos Quaderni. Ao estabelecer a centralidade da política como relações de forças que não se anulam completamente, a democracia se torna uma forma política de permanente instituição dos conflitos. Todavia, essa instituição dos conflitos comporta uma agonia. Essa agonia, compreendida como uma potente luta interna, diferentemente daquilo que pensa Chantal Mouffe (2015) ou Ernesto Laclau (2013), não deve originar um populismo de esquerda que se sobreponha a um populismo de direita. Portanto, a partir de Gramsci é possível pensar uma concepção agônica da democracia na qual a temporalidade da política não transforme a agonia em ruptura ou radicalização da própria democracia (2019, p. 269).
Subjazem dessas distintas compreensões do pensamento gramsciano posicionamentos políticos divergentes relacionados às estratégias democráticas na contemporaneidade. Questões de fundo presentes em um possível aprofundamento deste debate podem acarretar na elaboração de novos paradigmas para a esquerda ocidental, entre eles: quais são os limites do marxismo para o desenvolvimento de uma esquerda moderna no século XXI? Quais são as tradições intelectuais que serão repensadas para a elaboração de novas estratégias? Em termos estratégicos, existe vida na esquerda para além da tradição marxista? Essas e outras perguntas podem ser feitas ao analisarmos essa nova leitura de Gramsci elaborada por Marcus Oliveira. Todavia, as possíveis respostas para essa crise vivida pela esquerda encontram-se abertas.
Referências
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal: encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. n. 9.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três estrelas, 2013.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2004.
MOUFFE, Chantal. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016.
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. A arquitetura de fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do cárcere. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2019.
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
Nota
1. A título de observação, essa linha de pensamento a respeito dos trabalhos de Antonio Gramsci é contestada em recente artigo de Guido Liguori, Gramsci conteso: vent’anni dopo, relazione al Convegno Internazionale di studi Egemonia e modernità. Il pensiero di Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale, Roma, 18-20 março 2017. Ademais, de acordo com o parecer avaliativo desta resenha, podemos acrescentamos aqui o recente estudo de Gianni Fresu publicado na Itália sob o título Antonio Gramsci. L’Uomo filosofo. Appunti per uma biografia intellettuale. Aipsa (2019) e o trabalho de Peter Thomas, The Gramscian Moment. Phylosophy, Hegemony and Marxism. Chicago: Haymarket Books (2010). No Brasil, o parecerista também indicou o trabalho de Marcos Del Roio, Os prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926). São Paulo: Fapesp (2005). Estes trabalhos contestam a perspectiva presente em A arquitetura fractal de Antonio Gramsci, de Marcus Oliveira, obra aqui resenhada.
Victor Augusto Ramos Missiato – Instituto Presbiteriano Mackenzie, Brasília, DF, Brasil. E-mail: victor_missiato@hotmail.com.
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do cárcere (Res), Fundação Astrojildo Pereira, 2019. 280p. Resenha de: MISSIATO, Victor Augusto Ramos. Gramsci para além do marxismo. Esboços. Florianópolis, v.29, n.47, p.212-217, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF]
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