A aristocracia na Idade Média: redes sociais e instrumentos de poder e autoridade (Séc V-XIII) | Signum – Revista da ABREM | 2016
Pela natureza de suas fontes a escrita da história da Idade Média, mais do que qualquer outra, por muito tempo esteve circunscrita às elites leigas e religiosas. A despeito disso, nos anos 1960-1990 houve um grande esforço teórico para a elucidação de campos sociais mais vastos. Depois de mais de três décadas de intensa atenção aos enfoques sociais e às maneiras como se constituíram e se transformaram as sociedades medievais, observamos um retorno significativo da história política e, com ela, uma maior atenção às elites. No cerne dessa atenção renovada às elites está a releitura sistemática daquilo que as fontes têm de substancial com o objetivo de se chegar a um conhecimento aprofundado do poder – os diferentes lances que marcam seu estabelecimento, sua constituição intrínseca, os fundamentos de sua eficácia, seus instrumentos de atuação – e assim a uma percepção mais acurada das razões atuantes na dinâmica fundamental das sociedades. Um dos campos mais profícuos desses estudos aborda as aristocracias a partir do esclarecimento de suas redes e modalidades de relações, do sistema de comunicação social em que estão inseridas e da identificação e compreensão de cada instrumento de poder por elas mobilizado. Este dossiê reúne estudos que discutem como se deram, entre os séculos V e XIII, o estabelecimento e gestão pela aristocracia de suas relações internas (redes de relações e difusão de ideias) como instrumentos de poder e autoridade.
Na contramão da tradição de estabelecimento de grandes quadros gerais, busca-se aqui valorizar a singularidade das experiências políticas. A ideia de totalidade, que não é abandonada, emerge de quadros particulares como no caso do estudo de Rossana Alves Baptista Pinheiro sobre o papel de João Cassiano na institucionalização do monacato no sul da Gália durante a primeira metade do século V. A autora mostra que, nesse processo, a autoridade de Cassiano foi tão decisiva quanto o diálogo direto e indireto, voluntariamente estabelecido entre personagens de destaque em diversas comunidades eclesiásticas, muitas delas, locais. Assim, a hegemonia de uma vertente do pensamento e prática monásticos se estabelece a partir tanto da força moral da argumentação e dos exemplos quanto da influência de redes de solidariedades cuidadosamente tecidas que preparam a acolhida a determinados discursos e personagens. O artigo, ao valorizar as relações locais em detrimento de uma abordagem geral, permite perceber no embate entre anacoretismo e cenobitismo o processo de inclusão de novos membros em uma rede de autoridades espirituais e intelectuais. Dessa forma, o processo de “institucionalização do monacato na Provença” se afigura menos como uma domesticação do monacato tradicional e mais como um movimento de inclusão a partir da iniciativa de algumas lideranças particulares ligadas a um circuito de textos que discutia a relação entre autoridade e modo de vida.
Bruno Dumézil confronta-se à tradição historiográfica que procura estabelecer coerência histórica submetendo conjuntos documentais diversos a uma mesma lógica. Seu estudo propõe que a análise da correspondência diplomática dos séculos VI e VII seja desvinculada do compromisso de confirmar aquilo que é informado pelas histórias e crônicas do período. Dessa forma, podemos observar todo o complexo envolvido na comunicação epistolar – o discurso da temperança, o cálculo diplomático e os desdobramentos da mensagem nos diversos elementos da própria embaixada (presentes, pessoas, palavras) – revelando que são muitos os grandes atores da negociação. A comunicação epistolar agrega a participação de bispos (“não necessariamente como homens de paz”), de mulheres, a mobilização dos laços de parentesco (que nunca estão a serviço do discurso da vingança!), da retórica romana e também da cristã e mostra a aristocracia subordinada a lugares menores nas comitivas. Tais embaixadas colocam em evidência uma comunicação estendida que, primeiramente dirigida ao rei, não se esgota nele, visando também aos membros de sua família, da administração e da nobreza. Olhando para o grupo complexo e bem preparado que acompanha as cartas, o autor dá destaque a uma situação em que o poder real é exercido com significativa soberania. Nesses momentos em que é decidida a paz e também a guerra, a glória militar ocupa o plano mais modesto do discurso. As embaixadas aparecem resultando de um conhecimento mútuo prévio detalhado, evidenciando mais esforços para o estabelecimento de relações eficazes ao entendimento mútuo do que uma prática política personalista, intransigente e belicista. O texto coloca assim em questão a própria maneira como concebemos o lugar da guerra nas estratégias de poder.
Geneviève Bührer-Thierry mostra como as “pequenas” coleções canônicas dos séculos IX e X, consideradas pouco representativas em virtude de sua fraca difusão e pequena vinculação às grandes coleções canônicas, podem ser relevantes para a compreensão do pensamento daqueles que as conceberam: bispos encravados em relações, dificuldades e projetos locais. No material que compõe tais coleções – cânones conciliares, decretais pontificais, doutrina dos Pais da Igreja, leis seculares – a autora dá atenção particular ao confronto de autoridades. Assim, ao invés de buscar no material analisado apenas os efeitos pretendidos pela norma sobre o conjunto social, vê nos problemas e informações apresentados a possibilidade de compreensão mais clara e profunda do que era o poder episcopal. O texto vai, portanto, aos fundamentos da eficácia da norma passando pela compreensão daquilo que sustenta sua enunciação.
O estudo de Armando Torres Fauaz acompanha a adoção e adaptação da inquisitio (estabelecimento da verdade por meio do interrogatório de testemunhas) carolíngia pelos duques de Borgonha a partir de fins do século XII. Nesse cenário a obsolescência de práticas feudais não acontece em virtude da crise de um sistema, mas pelo uso pragmático de recursos de eficácia normativa comprovada. A adoção tardia da inquisitio pelos duques de Borgonha em relação a outros ducados, aos tribunais eclesiásticos locais e ao rei aponta para um longo e significativo processo de observação e maturação política a propósito da eficácia das práticas jurídicas. Aponta também para uma ação de adaptação racional desses mesmos mecanismos, além de uma preocupação com o reconhecimento social da legitimidade dos instrumentos aplicados. Se por um lado encontramos nesse cenário uma aristocracia bastante próxima e bem informada no que se refere à prática administrativa, por outro lado, observamos também o cuidado com a incorporação das normas consuetudinárias e, portanto, a atuação voluntária dos duques na generalização de seus princípios. Tais ações acabam por revelar por meio do aprimoramento de técnicas de administração e governo, um episódio da afirmação do poder dos duques no mesmo momento em que estes conformam os limites físicos de suas possessões e de seu senhorio.
Organizadora
Néri de Barros Almeida – Professora do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP).
Referências desta apresentação
ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. Signum- Revista da ABREM, v. 17, n. 2, p.1-4, 2016. Acessar publicação original [DR]