Ao pensar na problemática da luta pela terra no Brasil, bem como no surgimento dos movimentos sociais na segunda metade do século XX, evocamos uma serie de discussões acerca da construção do sujeito Sem Terra, a mística e o símbolos utilizados nos momentos de luta pelo pedaço de chão. Essas discussões podem ser notadas no livro “A Alma do MST? A prática da mística e a luta pela terra”, resultado da Dissertação de Mestrado do professor Fabiano Coelho, defendida no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD).
O livro dividido em cinco capítulos traz discussões pertinentes sobre identidade sem terra, origem do MST, a participação da igreja na luta pela terra, e a importância da mística na construção de memórias e identidades de trabalhadores rurais que se encontravam na condição de acampados ou assentados.
O autor utiliza como fonte para construção da narrativa publicações do Jornal Sem Terra, periódicos internos do MST (cadernos de formação, cartilhas de educação e manuais de organização) e entrevistas orais de trabalhadores rurais que estavam na luta pela terra.
Coelho inicia a discussão abordando sobre a importância da Igreja na construção dos movimentos sociais de luta pela terra que antecederam o surgimento do MST. Para o mesmo, “em meio às lutas no campo, os agentes religiosos, inspirados pela Teologia da Libertação, tiveram um papel fundamental e marcante na luta pela terra e na organização de diversos movimentos sociais”. Coelho busca mostrar por meio de fontes produzidas pela Igreja Católica que a Comissão Pastoral da Terra atuava não apenas na formação religiosa, mas também nas organizações e ocupações de terra, despertando nos trabalhadores rurais o anseio pela “terra prometida”.
Em seguida o autor chama atenção para a gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dando ênfase as trajetórias, articulações e consolidação do movimento social. Segundo Coelho (2014) “a articulação e trabalho para organizar o MST como um movimento nacional na luta pela terra se efetivara, principalmente, a partir do cenário caótico que trabalhadores e trabalhadoras do campo vinham sofrendo”. (COELHO, 2014, p. 78). Suas considerações vão de encontro com a situação vivenciada pelos trabalhadores rurais na década de 1980, quando a modernização agrícola, o avanço da monocultura e o aumento dos latifúndios expropriaram várias famílias camponesas. Para discutir sobre o tema lançada, Fabiano Coelho se apóia nas leituras e apontamentos do sociólogo José de Souza Martins e do Geógrafo Bernardo Monçano Fernandes.
Com a oficialização do MST em 1984, a CPT passou a ocupar outros lugares dentro do movimento sem terra, que por sua vez conservou alguns discursos e práticas vinculadas a Igreja Católica. Fabiano Coelho, também aponta as transformações ocorridas no interior do MST ao longo da década de 1980 a partir da análise dos próprios lemas de divulgação do movimento, como terra pra quem nela trabalha (1984), terra não se ganha, se conquista (1985), Ocupação é a única solução (1985) e Reforma Agrária: uma luta de todos (1995).
Para o autor o MST “mudou por causa das próprias necessidades, em que novos elementos e estratégias foram incorporados, no sentido de dar conta e expressar o que o grupo esperava da luta” (COELHO, 2014, p.87). Desta forma é abordado no livro os diferentes símbolos produzidos pelo movimento como bandeiras, cânticos, poemas e os impressos que colaboraram para o fortalecimento da mística e do MST.
Neste contexto, Coelho dedica um capítulo para discutir as idéias sobre a mística no tempo e os diferentes olhares produzidos a partir das publicações do MST, trabalhando de inicio com a construção do conceito de mística que para o mesmo “esta ligado ao campo da experiência”.
Na leitura de imagens e cadernos de formação produzidos pelo movimento sem terra, o autor destaca a presença da simplicidade, símbolos inerentes a organização do movimento, as ferramentas de trabalho dos camponeses, os alimentos, entre outros que representam o trabalhador rural na luta pela terra e por melhores condições de vida. Coelho acredita que o conceito de mística utilizado pelo MST seria o “segredo que alimenta a existência e a luta dos militantes e de todo o povo que luta”. Neste contexto, o mesmo busca construir uma narrativa acerca da mística no campo das representações e identidade. Fabiano analisa a mística como sendo “uma prática cultural e política”, recorrendo as leituras de Roger Chartier e Pierre Bourdieu. Para o mesmo, “as representações se encontram nas falas, nos gestos, nos símbolos, nas canções e hinos de luta, bem como em todos os elementos utilizados em seu desenvolvimento” (COELHO, 2014, p.175).
O autor chama a atenção para a construção de uma memória histórica do Movimento Sem Terra partir de diferentes olhares, levando em consideração as disputas pelo protagonismo dentro do próprio MST. Ao evidenciar as lutas e violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra observa-se a necessidade em rememorar os “mártires” da luta pela terra. Na construção da sua memória histórica, o MST é inserido como um movimento social que teria uma missão: dar continuidade as lutas históricas pela terra (COELHO, 2014, p.178).
De acordo com Coelho, a memória é um elemento construtor de identidades, e as identidades também se apoiam nas memórias para legitimar os sujeitos. A identidade é construída a partir da relação existente entre o “eu” e o “outro”, marcada pela diferença. Esta diferença trazida pelo autor se aproxima das discussões de Michael Pollak ao evocar o enquadramento da memória.
Na construção do sujeito sem-terra, percebe-se que algumas etapas fazem parte da constituição desta identidade, como “ocupar a terra, viver no acampamento e continuar lutando mesmo depois de assentado”. Desta forma, “ser sem-terra é ter a ousadia de romper as cercas do latifúndio, de ultrapassar as barreiras da exclusão e conquistar um espaço a partir do não espaço do espaço negado”.
Ao tratar da mística praticada nos diferentes espaços e experiências, o autor nos mostra a mística praticada por homens e mulheres nos assentamentos oriundos do MST, buscando nas narrativas orais algumas respostas para suas inquietudes. Para Coelho a mística nos assentamentos precisa ser vivenciada na pratica cotidiana e não apenas vista como uma encenação no início e fim de eventos. Neste tocante, se viu a necessidade de pensar nos trabalhos de base do MST, por meio de ensinamentos e conscientização política dos trabalhadores e trabalhadoras, conservando elementos da tradição camponesa, enquanto homens e mulheres da terra.
Coelho afirma que a mística é a alma do MST, pois tornou-se um dos princípios mais originários na estrutura organizacional do movimento, muito mais do que apenas representações cênicas e músicas.
Resenhista
Nelson de Lima Junior – Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD). E-mail: nelson_ivi@hotmail.com
Referências desta Resenha
COELHO, Fabiano. A Alma do MST? A prática da mística e a luta pela terra. Dourados, MS: Editora UFGD, 2014. Resenha de: LIMA JUNIOR, Nelson de. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.18, n.32, p.375-378, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
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