80 anos da morte de Lampião. Releituras do cangaço / Ponta de Lança/2018
As permanências da memória de Lampião no cenário cultural brasileiro contemporâneo são o ponto de partida para a revisão da história do cangaço nos 80 anos da morte do Rei do Cangaço. Eis o impulso gerador das tramas tecidas nesse dossiê da Revista Ponta de Lança: História, Memória & Cultura, que, agora, vem a público. A rede formada no itinerário da edição conta com contribuição de pesquisadores/as de diferentes instituições de ensino e pesquisa do contexto universitário nacional e internacional.
Esse passado que não quer passar do cangaço, principalmente na região nordestina, convive com uma obsessão contemporânea da cultura da memória repleta de jogos de lembrança, esquecimento e silêncio. Só se comemora o que é significativo, sendo que várias indagações emergem quando as comemorações instauram a experiência de temporalidade fronteiriça em suspensão entre o pretérito e o porvir, oportuna às releituras de acordos e conflitos reveladores do presente, que rememora, coletivamente, marcas do que considera sua identidade.
Revisitar o cangaço em tempo de holofotes virados para o seu mais afamado símbolo, discutindo a trajetória do fenômeno e/ou ressignificações da vivência no campo mnemônico é uma maneira de aprofundar debates sobre as muitas histórias possíveis de serem contadas. É o que sugerem os escritos que apresentamos a seguir.
O dossiê é aberto com discussão que trata dos misticismos na cultura sertaneja como um todo, quando Marcos Edílson de Araújo Clemente (UFT) examina a construção mística em torno de Lampião entre 1920 e 1938. A indagação acerca de como este personagem sobreviveu a duas décadas de acirrada perseguição é um dos enigmas interpretado pelo autor.
Centrando-se na análise de textos em torno da figura mítica de Lampião, a professora Geralda de Oliveira Santos Lima (UFS) observou “fatores de entrecruzamento da memória social [que] descrevem discursivamente pontos de estabilização de cada expressão referencial (um grande guerrilheiro, a história do rei do cangaço, o homem mais famoso do sertão…) envolvida na atividade anafórica da entidade Lampião”. Essa memória múltipla é acionada e reativada de acordo com a memória discursiva (e/ou social) por cada sujeito entrevistado, ora apontando para um cenário sangrento, ora para fatos heroicos do mais famoso dos cangaceiros.
Em seguida, Marcílio Lima Falcão (UERN) discute como o jornal O Mossoroense produziu, a partir da veiculação de matérias, cartas e bilhetes, a monumentalização das narrativas sobre o ataque e defesa a Lampião, em 1927, na cidade de Mossoró-RN, amplamente conhecida no imaginário por sua fama de resistência.
A pesquisadora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (UERJ) analisa o cangaço como uma modalidade de violência com algumas características da cultura regional nordestina, enfatizando concepções de mundo em disputa nos sertões, entre o beatismo e o cangaceirismo no período de 1917 a 1938, com o êxodo de populações tangidas pela violência dessa guerra.
Os pesquisadores José Ferreira Júnior e Janaina Freire dos Santos estabelecem uma discussão sobre ações, intenções e estratégias de produtores culturais nas cidades de Serra Talhada e Triunfo, situadas no sertão do Pajeú, articulando como a memória Lampiônica pode ser um fator de desenvolvimento turístico na região do sertão nordestino, sendo utilizada “como elemento agregador de valor ao produto que se vende”.
Numa outra perspectiva, a historiadora Lina Maria Brandão de Aras (UFBA) e o doutorando Rafael Sancho Carvalho da Silva (UFBA) abordam a emergência do banditismo no sertão do rio São Francisco como uma batalha pelo controle de cargos e funções do governo imperial, resultando na formação de grupos armados para a solução dos conflitos políticos na região.
O pesquisador Juan Camilo Riobó Rodriguez (Universidad de Guanajuato, México) problematiza a construção do mito em torno de Lampião, a partir da relação entre a base narrativa ficcional do cordel e as raízes culturais do fenômeno, construindo importante reflexão sobre o mito do herói moderno nos confrontos de memórias que dão sentido à experiência do passado por parte dos habitantes dos sertões nordestinos em sua construção identitária.
O pertinente debate sobre gênero na cultura sertaneja não fica alheio à compilação. Caroline de Araújo Lima (UNEB) analisa imagens das mulheres que atuaram no cangaço, evidenciando as contradições do que foi constituído como “mulher” e “feminino”, e como a leitura binária do corpo justificou a marginalização das cangaceiras.
Na sequência, Vagner Silva Ramos Filho (UERN) investiga a construção histórica da relação entre a memória do cangaço e a temporalidade da região nordestina, notando diferentes paradigmas de leituras acerca deste mito ao longo do século XX, como o naturalista, o sociológico, o marxista, o antropológico e o pós-moderno.
Em sintonia com o estudo sobre a espacialidade nordestina, Guerhansberger Tayllow Augusto Sarmento (UFRN) apresenta interessante reflexão com o objetivo de compreender como categorias espaciais (espaço/território) aparecem na escrita do cangaço, propondo novas abordagens a partir da relação entre história e espaço.
Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista veicula três artigos livres. São os textos de Antônio Ponciano Bezerra (UFS), com As interações entre a leitura, o oral e a escrita; de Igor de Araújo Alves (IEC- PUC Minas), em reflexão acerca do Congado e sua participação na preservação e perpetuação da cultura afro-brasileira através dos diferentes campos de atuação; e de José Mario dos Santos Resende (UFS) e Sheyla Farias Silva (UFAL), que assinam o trabalho Nas grades da escravidão: escravos, senhores e libertos na imperial cidade de Laranjeiras-SE (1850-1888).
Por fim, seguem as resenhas que arrematam a proposta do dossiê. Antônio Fernando de Araújo Sá (UFS) é o responsável pela leitura crítica de Vivir es muy peligroso: Mesiânicos y cangaceiros em los sertones brasileños, de Andreas L. Doeswijk, obra que tem como escopo pensar os sertões brasileiros em suas rebeldias sociais, como as Guerras de Canudos e do Contestado e o Cangaço, a partir do diálogo entre a história e a literatura. Juan Camilo Riobó Rodríguez apresenta, logo depois, o livro Bandoleros Santificados: las devociones a Jesús Malverde y Pancho Villa, de Kristín Guðrún Jónsdóttir, que trata da transformação de antigos bandoleiros em santos populares no norte do México, fomentando o estudo do bandoleirismo e suas implicações na cultura dos grupos marginalizados ou subalternos.
Se consideramos o cangaço como “evidente palimpsesto da cultura brasileira, por ser reescrito indefinidamente, mediante correções, acréscimos, revisões e deslizamentos, é porque nenhuma interpretação escapa à configuração das forças discursivas em luta”. Os trabalhos desse dossiê contribuem, portanto, para o avanço de redes de produção do conhecimento entre distintas universidades distribuídas pelo chão do país ou pelo solo latino-americano. As formas de lidar, refletir e entender um passado que não passa tão complexo, continuam como deve ser, constituindo um campo aberto para muitas outras ruminações.
Desejamos a todos/as uma boa leitura!
Antônio Fernando de Araújo Sá (UFS)
Vagner Silva Ramos Filho (UERN)
SÁ, Antônio Fernando de Araújo; RAMOS FILHO, Vagner Silva. Apresentação. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.12, n.22, 2018. Acessar publicação original [DR]