Os organizadores deste livro já são conhecidos dos cientistas sociais no Brasil. Tanto Gilberto Velho quanto Luiz Fernando Duarte representam uma parte importante da antropologia urbana brasileira e foram os responsáveis por esta obra. Além deles, contribuíram para o livro Myriam Moraes Lins de Barros, Jane Russo e Maria Luiza Heilborn, também autoras bastante conhecidas dos cientistas sociais.
Inicialmente, os autores ressaltam a importância do tema para a antropologia urbana, citando a Escola de Chicago e a antropologia social britânica como fontes importantes para a discussão. Também destacam a discussão interdisciplinar, principalmente através da psicologia, como uma rica contribuição para esses debates.
O texto trata das transformações no âmbito da sexualidade e da família, enfocando prioritariamente as mudanças sociais referentes a gênero e gerações. Tal temática já vem sendo abordada de forma interessante por autores como Michel Bozon, cientista social francês que tem produzido principalmente com Maria Luiza Heilborn.
O texto “Sujeito, subjetividade e projeto”, de Gilberto Velho, aborda uma discussão que o autor já faz desde a década de 1980. Velho – que cita Alfred Schutz e George Simmel como fontes importantes do seu trabalho – apresenta seu objeto de investigação, que são as trajetórias individuais dos sujeitos e as gerações. Isso porque analisa hoje a geração dos que seriam filhos dos seus pesquisados do passado. Sua preocupação com a temática aparece há muito tempo, desde quando elaborou sua tese de doutorado. Só que neste texto fica explícito o que tem procurado investigar: o que muda nessas gerações, principalmente através dos “objetivos e metas, […] valores e autopercepções de individualidade e subjetividade” (p. 9).
O autor aponta para mudanças significativas dos sujeitos e suas relações consigo mesmo e com aquilo que ele chama de “ethos psicologizante” (grifo do autor). Curiosamente, localiza nos estoicos esse processo sobre a individualização dos sujeitos, mas, devido à brevidade do artigo, não chega a aprofundar seus argumentos. No fim do artigo, o autor estabelece as relações da sua pesquisa com países como Portugal e Estados Unidos, além de citar alguns pesquisadores da mesma temática, como já foi apontado por Simmel. Sem apresentar grandes novidades, o artigo faz uma retrospectiva do que o autor produziu até os dias de hoje.
O texto de Luiz Fernando Dias Duarte – intitulado “Família, moralidade e religião” – aponta para a complexidade da administração da vida privada nas diferentes camadas sociais da vida urbana no Brasil. Há, conforme o autor, uma oposição entre os valores como religião, família, moralidade e, principalmente, sexualidade na modernidade. Três interessantes questões vêm sendo estudadas por ele, junto a camadas populares, são elas: a) há formas de conjugalidade diferentes de modelos tradicionais contrastando com formas que reforçam padrões de casamento tradicionais; b) existe um aumento da individualização da sexualidade, ao mesmo tempo que existe uma ampliação sobre seu controle; e c) ocorre um aumento da adesão às religiosidades específicas de certos segmentos, simultaneamente à diminuição da religiosidade e da crença em jovens. Para o autor, isso tem relação com o aumento do subjetivismo.
Segundo Duarte, não existe uma diferença entre camadas sociais sobre essas alterações de moralidade. Assim, tanto camadas médias superiores quanto camadas populares podem oscilar entre esses padrões. Uma pista interessante sugerida por Duarte e que pode contribuir com as pesquisas sobre essa temática é que, independentemente dos diferentes níveis de camadas sociais, o processo de individualização também é importante presença na constituição da singularidade de camadas sociais de baixa renda. Esse fato é muitas vezes negligenciado por pesquisadores que diferenciam as classes sociais pelas distâncias sociais econômicas entre elas.
O autor cita que dentro de camadas médias e letradas existe uma concepção de que ser moderno é estar mais atento às mudanças de comportamentos de sexualidade e relativos – controle de natalidade, mais especificamente. Aqui, mesmo que não tenha sido citado, é possível comparar ao clássico texto de Giddens sobre A transformação da intimidade.1
A contribuição de Duarte aqui é apontar de forma significativa as tensões sobre as disposições “liberais” e as “morais”, mas não fica claro como estas se constituem no universo social desses grupos sociais. Ele utiliza uma categoria que curiosamente chama de “desentranhamento” (p. 23) e que é uma das responsáveis por compreender as mudanças sociais na vida cotidiana.
O autor ao final revela que a sua proposta foi de, através do conceito de cismogênese (abordado de forma muito interessante em seu texto), encontrar elementos teóricos para compreender as “tensões contrastivas” que se apresentam para esses grupos, principalmente a partir da experiência religiosa.
No texto “Três gerações femininas em famílias de camadas médias”, Myriam Moraes Lins de Barros aborda as transformações sociais e de gênero advindas do envelhecimento da população. O estudo enfocou principalmente as mulheres, por meio de 24 entrevistas. Foram escolhidas mulheres nascidas nas décadas de 1940 e 1950, devido às transformações sociais que vão desde o casamento até o trabalho ocorridas para essas gerações.
A autora ressalta a importância dos movimentos sociais da década de 1960 para a “configuração dos valores individualistas” (p. 48). Ela deixa claro que seu interesse é descobrir formas psicológicas de introjeção dos valores individualistas. Uma leitura à primeira vista demonstra forte influência da psicologia, uma marca de todos os trabalhos desta obra. Myriam de Barros ainda aponta para a importância de se entenderem as relações de gênero nas dinâmicas interacionais.
Uma das principais mudanças, segundo a autora, é sobre a compreensão de conjugalidade para as mulheres entrevistadas, que se diferenciou a partir das gerações pesquisadas. A autora identificou tensões entre os grupos pesquisados, principalmente atreladas às diferenças geracionais. O processo de individualização foi fundamental para que as entrevistadas pudessem estabelecer novas relações com seus parceiros, assim como com suas famílias.
No texto intitulado “A sexologia na era dos direitos sexuais: aproximações possíveis”, de Jane Russo, a temática é a politização dos movimentos sociais sobre a sexualidade. Ela inicia falando do movimento gay e sua articulação para tirar a homossexualidade do rol das perversões.
A autora faz uma constatação: houve, simultaneamente, uma politização das sexualidades divergentes e uma medicalização da sexualidade heterossexual. Ela revela que a preocupação com a sexualidade surge na passagem do século XIX para o século XX com estudiosos, dentre eles talvez o mais conhecido seja Havelock Ellis. Essas considerações são claramente influenciadas por Foucault, citado pela autora em diversos momentos. Um apontamento trata da discussão de Russo sobre a despatologização dos chamados desvios sexuais, a partir do discurso sobre os direitos sexuais. O interessante é que, ao mesmo tempo que isso acontece, existe uma crescente disciplinarização da sexualidade dos casais heterossexuais.
A autora apresenta um quadro com datas e acontecimentos políticos significativos para a discussão sobre os movimentos sociais que lutaram contra a medicalização da sexualidade, como a Revolta de Stonewall, por exemplo, em 1969. Aqui vale lembrar o recente livro intitulado Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade,2 que faz uma importante retrospectiva do movimento gay nos Estados Unidos e no Brasil.
O que a autora revela é que começa a haver um levantamento de novas condutas da sexualidade para os casais heterossexuais, principalmente as defendidas como ideal de saúde e bem-estar. Assim como Michel Bozon,3 ela cita o surgimento do Viagra como a inauguração da medicalização da sexualidade. O curioso é que, com o lançamento desse medicamento, aumenta o conceito de disfunção erétil como um problema de saúde pública nos Estados Unidos, atingindo 52% dos homens entre 40 e 74 anos, ou seja, existe uma orientação da sexualidade que passa por uma forma de medicalização dela.
No último texto, intitulado “Homossexualidade feminina em camadas médias no Rio de Janeiro sob a ótica das gerações”, Maria Luiza Heilborn aborda – em uma etnografia realizada em sua tese de doutoramento no Rio de Janeiro com mulheres homossexuais – fortes características de uma valorização da conjugalidade. A autora se propõe a investigar as gerações e a maneira como as suas entrevistadas apresentavam-se em relação à própria orientação sexual. Revela que sua preocupação não está relacionada com a identidade sexual, mas é inegável que essa discussão a tangencia em todo o seu texto. Ela elabora uma interessante definição de conjugalidade, centrando-a principalmente em um tipo de relação estabelecida entre os companheiros, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais. Ainda assim, talvez esse conceito pudesse ser mais bem descrito, pois, em caso de pesquisas, a ideia de “não conjugalidade” dificulta uma distinção, por exemplo, de uniões estáveis para namoros com casais que não coabitam e também se relacionam afetiva e sexualmente. Curiosamente, em sua atual pesquisa, a autora identificou que as mulheres recusaram o modelo de masculinidade lésbica.
A análise é relativa à sexualidade como uma biografia, citando John Gagnon, que tem sua primeira obra publicada no Brasil em 2006, intitulada Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade.4 Tal perspectiva tem encontrado forte amparo nos pesquisadores das ciências sociais, principalmente na Europa e no Brasil. O estudo parte do que Gagnon chama de scripts sexuais: uma relação entre perspectivas sociais, interpessoais e intrapsíquicas; uma teoria complexa, mas de grande contribuição para o campo de conhecimento da sexualidade. Heilborn ainda aponta que os scripts sexuais podem ser úteis para compreender as nuances cada vez mais significativas da orientação sexual, não como algo fixo, mas sim fluido. Aqui é clara uma influência do pensamento queer de Butler, mesmo sem ser citado.
A autora aborda ainda que existem poucas produções sobre homossexualidade feminina no mundo acadêmico nacional, mas que aparecem já algumas teses e dissertações relativas ao tema. Isso teria relação com a imbricação entre sexualidade e gênero. A visibilidade é muito maior entre homens gays do que entre mulheres. A autora revela que a conjugalidade acaba sendo uma preferência das lésbicas, devido à sua constituição caracteristicamente atribuída ao universo feminino.
A obra analisada apresenta contribuições interessantes em relação à temática, principalmente da sexualidade e do gênero, passando pela discussão sobre família e gerações. Mas o que chama realmente a atenção é a influência do processo de individualização sobre os sujeitos, que, na maior parte dos artigos, se faz presente. Essa discussão é um dos principais objetos da psicologia, especialmente da psicologia social. Mas o que podemos identificar é que existe aqui um claro diálogo interdisciplinar que está presente nos trabalhos dos autores e da antropologia que eles abordam.
Os artigos apresentam, na maior parte das vezes, uma contribuição importante para as discussões sobre as mudanças sociais e da família e sua interlocução sobre a sexualidade, ainda que por vezes pudessem aprofundar mais ou trazer outros textos, pois o livro apresenta apenas cinco artigos. Seria mais enriquecedor se outros autores participassem também com suas pesquisas sobre a temática. Ainda assim, como é de praxe, os autores trazem leituras instigadoras para novos pesquisadores que se aventuram no campo da sexualidade, do gênero e da família.
Notas
1 Anthony GIDDENS, 1993.
2 Marco Aurélio Máximo PRADO e Frederico Viana MACHADO, 2008.
3 Michel BOZON, 2004.
4 John GAGNON, 2006.
Referências
BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004. [ Links ]
GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. [ Links ]
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades. 2. ed. São Paulo: UNESP, 1993. [ Links ]
PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]
Leandro Castro Oltramari – Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade do Sul de Santa Catarina
VELHO, Gilberto; DUARTE, Luiz Fernando (Orgs.). Gerações, família, sexualidade. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009. 96 p. Resenha de: OLTRAMARI, Leandro Castro. As transformações na família e na sexualidade. Revista Estudos Feministas, v.18, n.3, 2010.
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