SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SPERANZA, Clarice Gontarski.1 Os trabalhadores, a Justiça e a transformação social às vésperas do golpe civil-militar. Tempo, v.23 n.3, Niterói, set./dez. 2017.
Se a história do trabalho no Brasil tem atravessado um momento de grande fertilidade nos últimos anos, uma das áreas em que tal fenômeno parece ter alcançado maior significação são as pesquisas envolvendo processos da Justiça do Trabalho – como objeto, fonte ou ambos. Para a gênese desse movimento, contribuíram autores que chamaram a atenção para a chamada “cultura legal” dos trabalhadores brasileiros – como French (2001) e Paoli (1988) -, bem como a disponibilização de acervos de vários dos tribunais regionais, em um movimento de preservação da documentação levada a cabo por juízes do trabalho e historiadores, entre outros. O lançamento em livro de Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964, de Fernando Teixeira da Silva, é um importante marco para a consolidação desse campo, tornando-se desde já leitura imprescindível para os que desejam compreender a formação do trabalhador brasileiro e suas relações com o Estado.
Trabalhadores no tribunal foi antecedido em 2014 por outra obra de Fernando Teixeira da Silva essencial para os pesquisadores que se aventuram em meio às ações da Justiça do Trabalho (criada pela Constituição de 1934, mas somente instituída em 1941, em pleno Estado Novo). A coletânea A Justiça do Trabalho e sua história, organizada por ele e por Angela de Castro Gomes (2013), já trazia, além de artigos de diversos autores mostrando a diversidade de novas abordagens possíveis no campo, uma introdução detalhando a importância e a significação dessa justiça especializada em meio aos conflitos entre capital e trabalho no Brasil.
O livro aqui analisado, porém, alcança outro nível, não apenas por ser obra autoral, de maior fôlego, originando-se da tese de livre-docência do autor na Unicamp, como por contar com uma pesquisa ampla em numerosas fontes primárias (em especial dissídios coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região de São Paulo). A grande importância do livro deriva, em primeiro lugar, da capacidade de Silva de abordar e analisar os principais e polêmicos aspectos que envolvem a pesquisa com processos judiciais trabalhistas no âmbito da história do trabalho, dialogando ou citando virtualmente os estudos mais relevantes realizados no Brasil que utilizam esse tipo de fonte ou se debruçam sobre o tema (e que não são poucos nos dias de hoje, felizmente2). Ao fazê-lo, torna-se valiosa obra de síntese para outros estudos.
Por outro lado, Silva se apropria e vai além de constatações já feitas por essa bibliografia, como a de que a Justiça do Trabalho, por muitos anos menosprezada pela literatura acadêmica historiográfica, influiu decisivamente não só nos contornos da identidade do trabalhador brasileiro como na forma específica de suas lutas. Por meio da análise dos dissídios coletivos, esfera na qual pode ser exercido o polêmico poder normativo, privativo da Justiça do Trabalho (em síntese, o poder de criar normas extensíveis a um grupo, algo estranho, em tese, ao Poder Judiciário), Silva demonstra como este foi, diversas vezes, favorável aos sindicatos e representantes dos trabalhadores – urbanos e rurais – no período imediatamente anterior ao golpe civil-militar de 1964, sendo utilizado ampla e habilmente por eles em seu benefício e integrando os juízes nos conflitos patrões-operários não como mediadores neutros, mas como atores ativos relevantes.
O livro divide-se em duas partes, a primeira composta por três capítulos, e a segunda, por quatro e mais um capítulo “bônus”. No primeiro capítulo, o autor resume em grandes linhas a história da Justiça do Trabalho e faz um amplo levantamento da historiografia relativa a ela, relatando a grande mudança provocada pela incorporação da perspectiva thompsoniana da lei como campo de luta e o acesso facilitado às fontes como ingredientes do interesse renovado na área. Silva identifica os diversos caminhos seguidos até agora pelos pesquisadores, entre eles uma análise mais nuançada do corporativismo varguista (que contempla não apenas sua inspiração fascista, mas a ambiguidade de suas práticas), a apropriação feita pelos trabalhadores da esfera jurídica, a compreensão culturalmente definida das normas legais e a análise da progressiva judicialização das relações de trabalho no Brasil.
A discussão entre as características e eficácias dos modelos contratualista e legislado das relações de trabalho, e uma análise da influência da Magistratura del Lavoro fascista italiana sobre a Justiça do Trabalho brasileira são o tema do segundo e do terceiro capítulos, respectivamente. Ambos são um deleite para historiadores que se interessam pelo direito como campo de conhecimento e lugar de discursos e práticas de poder. No primeiro, Silva mostra como, longe de se oporem totalmente, ambos os modelos apresentam características um do outro na experiência prática de sua implantação. Mais adiante, sustenta que “o lugar para o qual a Justiça do Trabalho foi concebida no edifício corporativista brasileiro guardava semelhanças com o papel da Magistratura del Lavoro no arranjo corporativista italiano” (p. 107), porém ilustra por meio de comparações exaustivas como seu funcionamento efetivo acabou distanciando-as.
Essa primeira parte aparece como um aperitivo dos capítulos seguintes, nos quais é apresentada a pesquisa empírica propriamente dita, da qual foram utilizadas como fonte cinco centenas de processos do TRT-2 que tramitaram entre janeiro de 1963 e março de 1964. A metodologia da segunda parte da obra mescla a descrição e a análise de casos específicos com levantamentos quantitativos da massa documental, em um diálogo ativo e constante, manejado com habilidade pelo autor, sem perder nunca de vista o objetivo final de contrastar os processos que sofreram intervenção da Justiça e os que acabaram em acordos diretos entre as empresas e os trabalhadores. Minuciosos e detalhados (inclusive debruçando-se sobre as principais demandas específicas dos trabalhadores), os levantamentos mostram as vantagens dos processos julgados aos acordos, podendo nos primeiros o poder normativo do Judiciário trabalhista arbitrar índices e valores acima inclusive do reivindicado. Porém, para isso, o poder de barganha dos diferentes grupos de trabalhadores era um ativo forte na mesa de negociação jurídica, e a crescente mobilização dos sindicalistas à época tendia a esgarçar os limites do Judiciário: “as categorias mais organizadas e com maior poder de negociação tendiam a arrancar mais concessões do tribunal, que, por sua vez, procurava fixar um mesmo patamar de direitos para os trabalhadores como um todo” (p. 154).
Os levantamentos quantitativos são seguidos pela análise de julgamentos do tribunal e também da influência das numerosas greves ocorridas no período durante o desenrolar dos processos jurídicos dos dissídios; paralisações que colocavam à prova também as restrições impostas originariamente pelo Decreto-lei no 9.070, a lei de greve vigente de 1946 até o golpe de 1964. Nesse momento, Silva apresenta como os trabalhadores muitas vezes deslocavam o alvo de suas reivindicações dos patrões para a própria Justiça, que tinha o poder de decidir sobre salários e condições de trabalho. Presa nessa armadilha, a Justiça do Trabalho foi se tornando cada vez menos “técnica” e mais política, sensível à pressão cada vez mais efetiva das paralisações dos trabalhadores. Mais do que isso, muitas greves eram programadas com o intuito de pressionar diretamente não os patrões, mas o Judiciário.
O sétimo capítulo merece um lugar à parte, pois nele o autor acompanha o líder sindical e militante do Partido Comunista Luiz Tenório de Lima, não apenas discutindo a ambiguidade pela qual os dirigentes sindicais manejavam a Justiça do Trabalho – demonização verbal conjugada com uso frequente -, como salientando a importância do jogo jurídico na luta pelos direitos dos trabalhadores do campo no contexto do pré-1964. Foi pela via jurídica, mostra a obra, que os camponeses obtiveram importantes vitórias, por meio de recursos reiterados aos tribunais, ora exigindo o cumprimento de leis, ora buscando seu enquadramento legal como operários urbanos. Para eles, “as leis codificadas e as sentenças escritas apareciam como possibilidades de repor relações e direitos costumeiros, suspensos pelo arbítrio patronal amparado pelos poderes locais” (p. 239). E o mais impressionante é que a pesquisa empírica mostra a receptividade dos tribunais da época a essas demandas – movimento logo abortado a partir do golpe de 1964.
Por fim, no “capítulo bônus”, o leitor é guiado em meio a um amplo panorama da situação atual dos arquivos judiciários trabalhistas e da luta por sua preservação, esforço que tem como forças coadjuvantes grupos de historiadores, arquivistas, juristas e funcionários da Justiça do Trabalho. Apesar de importantes vitórias, com a constituição de valiosos centros de pesquisa de processos judiciais trabalhistas em todo o país, muita documentação ainda é eliminada cotidianamente. Essa destruição diminui em muito a chance de acessarmos as relações e os valores de multidões inteiras de trabalhadores, cujas experiências possivelmente não poderão ser analisadas.
Este último capítulo, apesar de sóbrio e extremamente bem embasado, dá o necessário tom de militância a uma obra que se debruça sobre o passado, porém busca também agir politicamente sobre o presente. Isso a torna viva e só a fortalece.
Por todas essas razões, cabe novamente reiterar que Trabalhadores no tribunal é leitura imperativa para todos os que desejam compreender melhor as lutas dos operários brasileiros não apenas no período que antecedeu o golpe de 1964, mas desde a década de 1940, quando surge oficialmente a Justiça do Trabalho. Fica claramente demonstrado o quanto a forte mobilização sindical, em uma apreensão hábil das “regras do jogo” legais, conseguiu garantir novos direitos. Por transitar entre o foco nas lutas “miúdas” (ou nem tanto?) de diversos grupos de trabalhadores e um olhar macro-orientado, a obra permite desvendar a transformação social que antecedeu o golpe civil-militar no âmbito dos trabalhadores, transformação essa imediatamente abortada pelos novos detentores do poder. O que nos inspira a interpretar outras transformações abortadas, e outros golpes, com os quais nossa nação hoje tristemente se depara.
Referências
CORRÊA, Larissa. A tessitura dos direitos: patrões e empregados na Justiça do Trabalho, 1953 a 1964. São Paulo: LTr, 2011. [ Links ]
DROPPA, Alisson. Direitos trabalhistas: legislação, Justiça do Trabalho e trabalhadores no Rio Grande do Sul, 1958-1964. Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. [ Links ]
FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. [ Links ]
GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Unicamp, 2013. [ Links ]
PAOLI, Maria Célia. Labor, law and state in Brazil: 1930-1950. Tese (Doutorado em História), Birbeck College, Universidade de Londres, Londres, 1988. [ Links ]
RESENDE, Vinícius Donizete de. Tempo, trabalho e conflito social no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP (1950-1980). Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. [ Links ]
SOUZA, Edinaldo Antonio Oliveira. Trabalho, política e cidadania: trabalhadores, sindicatos e luta por direitos (Bahia, 1945-1950). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. [ Links ]
SOUZA, Samuel Fernando. Coagidos ou subornados: trabalhadores, sindicatos, Estado e as leis do trabalho nos anos 1930. Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. [ Links ]
SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954). São Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: Anpuh-RS, 2014. [ Links ]
VARUSSA, Rinaldo J. Trabalhadores e a construção da Justiça do Trabalho no Brasil (décadas de 1940 a 1960). São Paulo: LTr , 2012. [ Links ]
1 Clarice Gontarski Speranza – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas(UFPel) Pelotas/Brasil. E-mail: clarice.speranza@gmail.com
2Seria temeroso um apanhado extenso dos trabalhos mais importantes, dada a fertilidade da área e o interesse despertado entre jovens pesquisadores, além, é claro, dos limites desta resenha. Porém, de forma meramente ilustrativa, podemos citar alguns exemplos de recentes pesquisas no Brasil envolvendo a Justiça do Trabalho no campo da história: Corrêa (2011), Droppa (2015), Resende (2012), Souza (2007), Souza (2015), Speranza (2014) e Varussa (2012).
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