Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro | Bianca Santana

O livro Continuo preta é a mais completa biografia de Sueli Carneiro realizada até o momento no Brasil. Não é a primeira vez que a filósofa brasileira foi biografada. Este é o segundo livro sobre a vida da feminista afro- -latino-americana. O primeiro perfil biográfico foi escrito pela pesquisadora e jornalista Rosane Borges, baseado em entrevistas com Sueli Carneiro e publicado pela Editora Summus, em 2009. Ao contrário, nessa segunda biografia, escrita por Bianca Santana, há evidente investigação documental, além de entrevistas com Sueli, seus familiares, círculos de amigos e de militantes políticos. No livro, passamos a conhecer com mais profundidade as origens da personagem retratada e sua tortuosa trajetória social até tornar-se respeitável intelectual pública no Brasil.

Nascida depois do segundo pós-guerra, Sueli Carneiro (1950-) viveu e ainda vive numa das maiores metrópoles das Américas. Cidade industrial e considerada a locomotiva nos trópicos pelos modernistas, São Paulo, na década de 1950, era símbolo de modernidade e de promessa econômica. Marcada por forte presença de imigrantes europeus, a capital paulista também foi o lugar para onde se dirigiram parcelas expressivas de migrantes negros vindos do interior do estado de São Paulo e de outras partes do país. Esse o caso da família de Sueli Carneiro: embora nascida na capital industrial do Brasil, tanto sua mãe como seu pai são, respectivamente, migrantes paulistas e mineiros que se estabeleceram na cidade onde nasceria a filha primogênita.

De família negra operária, ela teve uma vida economicamente difícil na infância e viu de perto, no núcleo familiar, a violência doméstica. Formada em escolas públicas, durante a adolescência e a juventude pôde perceber várias formas de experimentar a negritude e a condição feminina. De um lado, sua mãe oprimida pela condição matrimonial; de outro lado, vivências com outras mulheres negras mais emancipadas e, por isso, vistas como desviantes da moral estabelecida.

Embora sua vivência com a discriminação racial viesse desde a infância, é na juventude que Sueli passa a elaborar a linguagem política por direitos, seja por meio das mobilizações dos ativistas na cidade, seja interagindo com os raríssimos estudantes negros da Universidade de São Paulo, onde ela estudou, ou com intelectuais negras. Ela dialogou com movimentos negros emergentes, em suas várias expressões, das formas mais culturais aos setores ligados a organizações de esquerda e até com militantes de grupos clandestinos. Dos militantes de São Paulo e Rio de Janeiro que foram referência para a autora, destaque-se Abdias do Nascimento (1914-2011), pan-africanista brasileiro, um dos ativistas antirracistas de maior expressão no país, e reconhecido internacionalmente. Não por acaso, ele está no “abre alas” do enredo do livro. Dentre as mulheres negras, Sueli bebeu na fonte de uma de duas maiores expoentes: Lélia Gonzalez (1935-1994). Com ela, a jovem estudante universitária uspiana e funcionária pública do estado de São Paulo aprendeu as bases filosóficas, sociológicas e políticas do feminismo negro.

A trajetória no feminismo negro brasileiro é o percurso que Sueli trilharia desde os finais da década de 1970 até os dias atuais. Hoje, ela é considerada a mais respeitada militante negra nacional viva, seja porque criou o Geledés (São Paulo, 1988), a mais antiga ONG feminista negra do país, seja porque se tornou uma importante combatente do racismo e do machismo. Ou, ainda, porque é autora de uma vasta produção intelectual e responsável por intervenções importantes no debate público, seja através da imprensa ou das redes sociais, especialmente no portal Geledés, pioneiro na arena digital a tratar do racismo no Brasil. O livro Escritos de uma vida, da Editora Letramento, é só um dos registros fundamentais para identificar a consistente produção bibliográfica de Carneiro.

No itinerário de Sueli é notável o investimento na participação das mulheres negras no âmbito do Estado, mas, especialmente, na sociedade civil. Na esfera estatal, a participação no Conselho da Condição Feminina de São Paulo (1983), presidida pela socióloga Eva Blay. É conhecida pelos movimentos sociais e pesquisadores da academia a relação conflituosa que foi a construção desse conselho, porque em sua formação original só contava com mulheres brancas. Sueli Carneiro e Thereza Santos (1930-2012) se tornariam referências para as mulheres negras de São Paulo quando protagonizaram a disputa pelo espaço político nessa instância de mediação entre a sociedade civil e o Estado. Da esfera estadual, Sueli seguiu para a federal, como membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1987-1988). Sua bagagem como pensadora e militante foi sendo aperfeiçoada em constante diálogo com as bases sociais do feminismo negro, o que lhe permitiu uma trajetória marcada pela interação e participação junto à sociedade civil, que foi e continua sendo o espaço onde ela melhor se posiciona no país e fora dele, especialmente porque participou dos principais momentos das lutas antirracistas e feministas dos últimos 50 anos.

Algumas qualidades desta biografia merecem destaque: escrita concisa, capítulos curtos, embasamento documental, além de estabelecer diálogo sistemático entre vida e pensamento da filósofa brasileira ao longo da narrativa. Note-se, ainda, como qualidade estilística, pitadas de humor a partir de situações engraçadas contadas por Sueli em suas entrevistas e que foram acertadamente escolhidas por Bianca Santana para dar vivacidade à narrativa. De outro lado, temas sensíveis como os dramas domésticos vividos pelos pais (além da violência sofrida pela mãe, o alcoolismo de ambos) são relatados de forma sensível pela biógrafa. Tais informações são úteis para ajudar na compreensão de porquê Sueli Carneiro buscaria rotas de vida diferentes daquela experimentada por sua mãe.

Do ponto de vista do conteúdo da obra, saliente-se, em primeiro lugar, o investimento da autora na construção da genealogia da família Carneiro, especialmente no tocante à origem de seus bisavós na cidade de Ubá, região da Zona da Mata Mineira. O estudo das genealogias de famílias pretas e pobres é tarefa difícil e onerosa. Notando-se que a biógrafa não é historiadora de profissão, ainda assim seu investimento na pesquisa cartorial levou ao livro alguns achados importantes, por exemplo, no que diz respeito ao patriarcalismo brasileiro ou à dinâmica do parentesco colonial, em que é possível encontrar famílias brancas e negras participando do mesmo tronco familiar. Com isso, Santana descobriu que Sueli Carneiro tem ascendente comum com um cantor e compositor mundialmente conhecido, Chico Buarque de Holanda, descendente legítimo de uma tradicional família brasileira.

Outro aspecto interessante é a fina leitura da adesão de Sueli Carneiro e Maurice Jacoel, seu marido, à contracultura, especialmente o impacto que esta teve no estilo de vida e no engajamento político de ambos. E no que diz respeito à política durante os anos de 1970, Bianca Santana conseguiu revelar fatos pouco conhecidos sobre a vida de Sueli Carneiro, como sua atuação política durante a ditadura militar. Embora não fossem militantes orgânicos de partidos clandestinos – e realmente estavam longe disso –, o casal teve atuação na proteção de militantes de esquerda cujas vidas eram ameaçadas pelo regime autoritário.

O terceiro destaque no livro é o fato de a pesquisadora trazer à tona documentos que até agora eram desconhecidos da literatura especializada: as cartas de grupos de extrema direita endereçadas às fundadoras do Geledés. São três cartas anônimas, provavelmente elaboradas por neonazistas, que faziam referências diretas à Ku Klux Klan. Cartas ameaçadoras e de supremacistas brancos que viram nas declarações públicas de Sueli Carneiro e na formação do Instituto das Mulheres Negras uma afronta à nação. O que chama a atenção é que essas ameaças apareceram no início da década de 1990, quando o Brasil buscava estabilizar a sua democracia, depois de 21 anos de ditadura militar.

Por fim, destaco algo que não é menos importante. Sobre o ativismo negro brasileiro há um discurso equivocado de que seria importação norte-americana. Há no livro evidência de influências múltiplas do ativismo internacional, o que já foi bem notado por pesquisas acadêmicas anteriores. Por isso, é interessante sublinhar que o primeiro e um dos mais importantes projetos do Geledés teve inspiração no antirracismo francês, o SOS Racismo. Esse projeto teve impacto não apenas na conscientização quanto à prática racista no país, mas colhia depoimentos de vítimas que sofriam discriminação racial e garantia assessoria jurídica a elas. Ademais, o projeto conseguiu mapear casos de racismo do Brasil, a ação dos operadores do direito e sua negligência, bem como brechas na legislação brasileira de 1988, que previa o racismo como crime inafiançável e imprescritível.

Em que pese a qualidade da pesquisa de Bianca Santana no tocante à sua profundidade, aos achados de pesquisa e à sensibilidade com que lidou com temas delicados e pouco conhecidos da vida de Sueli Carneiro e do ativismo negro feminista, é preciso notar também alguns pontos frágeis do livro. Destaco, especialmente, o fato de que o material documental descoberto sobre a ditadura militar envolvendo Sueli e seu círculo ativista é subutilizado. O leitor e a leitora ficam sedentos por mais detalhes sobre o interesse da ditadura pelo ativismo negro e, em específico, sobre as informações que a polícia política coletou a respeito do mundo de Sueli Carneiro, mas a biógrafa parece não ter tido condições para abrir mais este caminho de investigação. Todavia, deixa pistas para que historiadores e demais interessados no tema aprofundem esse assunto.

Além disso, a biografia é marcada por forte linearidade na construção da biografada. Do meio do livro em diante, a personagem já adulta é construída com muita coerência, com decisões planejadas, algo que pretensamente pode parecer um elogio à personalidade estudada. Embora não seja uma crítica, é preciso alertar que Continuo Preta não é daquelas biografias que se aprofundam na subjetividade da protagonista, há nela muito mais de sociologia e história documental do que investigações mais densas sobre a esfera íntima de Sueli Carneiro.

Talvez essas escolhas narrativas tenham razões que podem ser buscadas na própria biógrafa. Por isso, cabe uma nota sobre Bianca Santana e o contexto de escrita deste livro. Santana é uma intelectual negra brasileira bastante atuante na vida pública de um país que se orgulhava de ser uma democracia racial, discurso esse que já não encontra evidências para manter vivo tal ufanismo. Jornalista, ela escreve com periodicidade para importantes periódicos nacionais. A biografia de Sueli Carneiro é o segundo livro autoral de Santana, sendo o primeiro Quando me descobri negra (2015). Sobre o contexto, é preciso dizer que Continuo Preta surge num cenário marcado por contradições sociais e conflitos políticos abertos. De um lado, um momento de ascensão do feminismo negro e do antirracismo. De outro, a ascensão da extrema direita ao poder institucionalizado, o que legitimou ainda mais discursos e práticas racistas e misóginas na sociedade brasileira. Nesse ambiente político árido e desafiador, nasce Continuo Preta. E, a despeito das diferenças geracionais, as duas intelectuais e ativistas negras, a biógrafa e a biografada, são inimigas do poder instituído. E, de alguma forma, Carneiro é espelho para Bianca.

Em tempo, quero notar que a historiografia brasileira e estrangeira sobre a escravidão e pós-abolição no país permitiu uma rica produção intelectual e política da vida de personalidades negras nascidas até os finais do século XIX. Sem dúvida, nas livrarias e bibliotecas nacionais pode-se encontrar uma quantidade razoável de livros sobre a trajetória de afrodescendentes que tiveram expressão na vida nacional ou regional. Contudo, sobre os nascidos no século XX há um quase completo vazio. Excetuando-se biografias de artistas e esportistas afrodescendentes, raras vezes intelectuais e ativistas negros e negras que vieram ao mundo naquele tempo foram objeto de escrutínio biográfico tal como se vê no livro de Bianca Santana.

Esse fenômeno explica-se em razão de que, até meados da última década, as editoras nacionais quase não se ocupavam dos intelectuais e ativistas negros brasileiros; isso explica também o porquê da historiografia e das ciências sociais do século XX e do início do século XXI publicarem pouco sobre essas personalidades ativistas. Dois livros de referência sobre trajetórias negras merecem atenção. Um deles é o volume Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil séculos XIX e XX, organizado por Sidney Chalhoub e Ana Flavia Magalhães. Já Verena Alberti e Amilcar Pereira realizaram um grande projeto com depoimentos de intelectuais e militantes negros do século XX, registrados no livro Histórias do movimento negro. Esses dois livros dão mostras da qualidade das pesquisas acadêmicas sobre trajetórias de personalidades negras no país. Apesar de conterem aspectos biográficos, as duas obras citadas, porém, não se pretendem biografias densas dos personagens, já que se propõem, com metodologias diferentes, mostrar uma miríade delas. O que justifica mais investimento em pesquisa e publicações a respeito dessas personalidades ligadas aos movimentos sociais, desconhecidas da grande maioria dos brasileiros.

Por essas razões, esta biografia é tão importante no cenário nacional. Continuo preta ― título inspirado em uma fala de Sueli Carneiro que se tornou polêmica no Brasil por tensionar a esquerda e a direita no tocante à questão racial1 – é uma janela aberta para conhecer mais sobre a trajetória familiar, educacional, intelectual, profissional e, especialmente, política de Sueli Carneiro. O livro é uma rica oportunidade para saber não apenas sobre a biografia de uma das mais influentes personalidades brasileiras, como possibilita entrever aspectos importantes da história da sociedade civil – especialmente dos movimentos negros e de mulheres negras – no país de maior população negra das Américas.


Notas

* Esta resenha está sendo publicada simultaneamente, em francês, na revista Brésil(s) – Sciences Humaines et Sociales https://journals.openedition.org/bresils/.

1 Trata-se do trecho de uma entrevista em que Sueli Carneiro afirma: “entre a esquerda e a direita eu continuo preta”. Retirada de contexto, essa passagem tornou-se polêmica no país e é frequentemente usada por ativistas em defesa e no ataque à sua autora. Refiro-me à entrevista concedida por Sueli Carneiro ao jornalista José Arbex na revista Caros Amigos, n. 35, fev. 2000.


Resenhista

Flavia Rios – Universidade Federal Fluminense Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. https://orcid.org/0000-0001-9864-0644


Referências desta Resenha

SANTANA, Bianca. Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: RIOS, Flavia. Sueli Carneiro em preto e branco*. Afro-Ásia, n. 65, p. 813-819, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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