Working the System: a Political Ethnography of the New Angola | Jon Schubert
A produção etnográfica publicada sobre Angola, já pouco expressiva durante o período colonial,1 declinou nas últimas décadas do século XX devido à situação política do país. Após sua independência em novembro de 1975, Angola enfrentou uma guerra civil até 2002. Esta findou com a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), movimento de guerrilha que questionou durante quase três décadas a legitimidade do governo exercido pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) a partir de Luanda. Ao contexto de guerra somou-se a (auto)censura no que diz respeito à discussão pública de questões políticas e sociais, mais um empecilho à realização de trabalhos de campo no país.2 Finda a guerra, o desafio da “reconstrução nacional” deu-se em meio às expectativas de melhoria de vida colocadas pela paz, visto Angola ter-se tornado, com Nigéria e África do Sul, uma das três principais economias da África Subsaariana. Foi nesse cenário de expansão econômica ancorada na exploração do petróleo, mas com poucos benefícios para a população em geral, que se realizaram as etnografias mais recentes sobre Angola, a maioria sobre Luanda. Contudo, embora alguns artigos tenham resultado desse esforço, poucas investigações etnográficas extensivas foram publicadas nos últimos anos.3 Working the System: a Political Ethnography of the New Angola, de Jon Schubert, é, portanto, uma importante contribuição para o campo de estudos angolanista.
Trata-se de uma etnografia sobre as relações político-sociais na Angola do pós-guerra que enfrenta de forma corajosa questões delicadas. Realizada entre outubro de 2010 e outubro de 2011, foi complementada até 2016 com material da mídia e conversas via internet. Com o objetivo de ultrapassar uma denúncia do clientelismo ou da corrupção, Schubert pretende mostrar que aquilo a que seus interlocutores designam “sistema” é composto por práticas materiais e repertórios simbólicos que fornecem um ordenamento moral para a vida sociopolítica em Angola. Os capítulos de Working the System são articulados de modo a revelar diversas facetas desse “sistema” e voltam-se para temáticas como a história (capítulo 1) e os usos da memória (capítulo 2); relações sociais, especialmente no que tange a raça e classe (capítulo 3) e ao parentesco situacional (capítulo 4); a mobilização de “cunhas” (capítulo 5) e as manifestações políticas recentes (capítulo 6 e epílogo). De modo geral, a etnografia procura revelar o “sistema” tanto em sua capacidade de totalização quanto em suas brechas. Sendo este um conceito êmico, trata-se de dar conta daquilo que os interlocutores da etnografia percebem como dizível ou pensável.
No capítulo 1 é apresentada a tese bastante pertinente de que a leitura da história de Angola segundo a narrativa oficial do MPLA tem como ano zero 2002, ano de término do conflito com a UNITA, e não 1975, ano da independência. Segundo a argumentação proposta, isso permite ao MPLA não abordar dois eventos centrais ao pós-independência: a repressão à tentativa de golpe de Estado pelos seguidores de Nito Alves, em 27 de maio de 1977, e a violência que se seguiu às eleições de 1992.4 A partir desse recorte histórico, seria proposta uma imagem do MPLA como o partido que pôs fim ao conflito civil e promoveu a “reconstrução nacional”. Segundo o autor, a partir do foco nas perdas materiais da guerra, e consequentemente nos benefícios materiais da paz, o MPLA interpreta qualquer crítica à vida política em Angola contemporânea como uma ameaça aos ganhos da paz e atribui à UNITA, retratada como responsável pela guerra, a culpa pela desigualdade social no país.
A tentativa de golpe de Estado em 27 de maio de 1977 é discutida por Schubert à luz das posicionalidades sociais em Angola. Ele argumenta que o “nitismo” apresentou ao MPLA uma crítica racial e de classe que consistia, basicamente, em apontar o privilégio de brancos e “mulatos” (categoria racial empregada em Angola) no interior do partido, cuja cúpula era constituída por pessoas da elite e não refletia a composição racial e de classe da população angolana. Ao 27 de maio seguiu-se uma repressão violenta na qual muitas pessoas foram assassinadas, torturadas e desaparecidas. Para Schubert, este é um “segredo aberto”: ao simbolizar a “capacidade do MPLA de fazer com que as pessoas desapareçam” (p. 38), representaria ao mesmo tempo um tabu e um evento cuja memória de violência é usada como ameaça implícita contra qualquer mobilização política. Como exemplo contemporâneo dessa “cultura do medo”, que contribuiria para reforçar a preponderância do MPLA no cenário político de Angola, é citado o pronunciamento de José Eduardo dos Santos, presidente do país de 1979 a 2017, sobre sua intenção de evitar um novo 27 de maio quando da prisão dos 15 ativistas políticos em Luanda em junho de 2015.
Na argumentação de Schubert, a história de Angola pós-independência proposta pelo partido no poder ignora esses eventos ao enfatizar 2002 como ano zero: na narrativa da “reconciliação nacional” pós-guerra, o MPLA emerge como o garantidor da paz e da “reconstrução nacional”, sendo o período de guerra visto como de combate ao “terrorismo” da UNITA. Segundo a história oficial, o MPLA, tendo vencido a luta de libertação no pré-independência, emerge como representante legítimo do povo. O período de guerra civil, ao ser restrito à oposição à UNITA e aos inimigos externos, “imperialistas”, que a financiavam, é esvaziado da violência que o marcou por meio do silenciamento. Nessa narrativa histórica, o desejo de todos os angolanos é apresentado como unívoco e representado pelo MPLA: pela paz e pela reconstrução nacional – projeto corporificado na “política do concreto” (p. 47) de desenvolvimento das infraestruturas.
O bairro luandense de Sambizanga, “berço do nacionalismo angolano”, é tema do segundo capítulo, bastante rico do ponto de vista etnográfico. Nele nasceram Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, e supostamente José Eduardo dos Santos.5 O bairro foi palco de muitos dos eventos fundamentais do 27 de maio, bem como dos confrontos após as eleições de 1992. Teve seu vibrante mercado, Roque Santeiro, removido para os arredores de Luanda e suas casas serão demolidas para dar lugar aos edifícios modernos que simbolizam a “nova Angola”. Schubert explora como afetos e memórias emergem em conexão com esse espaço central à vida política em Luanda. Segundo ele, os principais sentimentos com que se deparou são o medo, a melancolia e a “nostalgia do futuro” relacionada às promessas não cumpridas da independência, a partir da qual o passado, seja ele na forma do colonialismo, da independência ou do socialismo, pode ser visto como uma era de ouro cujas potencialidades não se realizaram.
O capítulo 3 trata da “angolanidade”, da oposição entre rural e urbano, de raça e de classe. Ao considerar o caso da miss universo Leila Lopes, vista como negra pela mídia internacional, mas dita “crioula”6 por duas senhoras da elite luandense, Schubert argumenta que o imbricamento entre raça e classe em Angola faz com que seus interlocutores mobilizem categorias raciais ou de classe de forma situacional. Segundo ele, Leila Lopes, embora “negra”, seria vista como “crioula” por pessoas da elite devido a sua pertença social. Embora concorde com sua análise no que diz respeito a certa intercambialidade entre raça e classe, considero problemático afirmar que Leila Lopes é “fenotipicamente negra” (p. 85), embora identificada pelos angolanos como “crioula”, pois tal afirmação relega ao segundo plano as categorias de designação mobilizadas nesse contexto, onde “crioula” ou “mulata” não são posicionalidades sociais equivalentes a “negra”. Semelhante crítica pode ser feita à afirmação de que os “assimilados” seriam “angolanos negros aculturados” (p. 86). Quais são as suposições por trás de caracterizações como essas? Embora certamente haja uma hierarquia racial em Angola, é salutar que a análise não suponha de antemão o que é “negro”, “branco” etc., mas considere as distinções operadas em cada contexto.7 Do contrário, corre- -se o risco de projetar certo consenso acadêmico que é também determinado por seu contexto. O desafio consiste, pois, em simultaneamente reconhecer hierarquizações de classe, raça, gênero etc. e descrever etnograficamente as nuances perceptíveis contextualmente.
Uma vez que o conceito de “angolanidade” já não é tão utilizado quanto nas primeiras décadas do movimento nacionalista8 – o próprio autor reconhece que “a questão da angolanidade praticamente desapareceu da esfera política” (p. 96) – não fica claro por que é escolhido como mote aglutinador de questões como as diferenças de raça e classe em Angola. Concordo com a afirmação de que a liderança do MPLA propôs uma “ideologia socialista e altamente modernista de construção nacional inclusiva, não racial” (p. 88), a partir da qual o “tribalismo” passou a ser considerado abjeto por ameaçar dividir a nação. Porém, abarcar as diferenças sob o guarda-chuva da angolanidade sem que este tenha sido um mote discursivo do MPLA nos últimos tempos parece-me impreciso. Por exemplo, quando se afirma que o 27 de maio pode ser entendido como um processo de disputa sobre o significado da angolanidade na medida em que “muitos angolanos” (p. 89) – caberia especificar quais – “ainda defendem uma interpretação racializada do golpe de Estado do 27 de maio” (p. 89), seria necessário, em primeiro lugar, mostrar como, no discurso desses “muitos angolanos”, raça e angolanidade se articulam, se é que isso ocorre. Ademais, embora concorde com Schubert quando afirma que é conveniente aos “angolanos de pele clara” negar que têm privilégios, é preciso levar em conta que muitos angolanos negros consideram distinções raciais simplesmente racistas.9
Schubert apresenta o discurso marxista do pós-independência como homogeneizador das diferenças em Angola, especialmente no que diz respeito à diferença racial, apresentada como desigualdade de classe. É possível entrever em sua argumentação a expectativa de que o Estado angolano levasse em conta distinções de raça, classe e etnicidade. Por exemplo, quando afirma que “por causa da instabilidade de sua identidade africana […] a liderança do MPLA continua a promover um projeto nacional supraétnico homogeneizante” (p. 109), trata-se mais de julgar a real representatividade do MPLA em relação à população angolana do que de entender os mecanismos pelos quais a nação angolana é construída. Ora, estes mecanismos estão muito distantes da política identitária. Na medida em que se reconhece que o discurso do Estado angolano é, desde o pós-independência, em prol da “unidade nacional”, seria mais interessante analisá-lo em sua minúcia do que tecer generalizações desse tipo, baseadas em um modelo de Estado não explicitado, mas que organiza a descrição por contraponto. O trecho a seguir, por exemplo, dá a entender que a “angolanidade”, entendida como “identidade nacional”, deveria ser debatida em relação aos privilégios de raça e classe da elite angolana:
Argumento que a relutância pelos atores políticos em abordar abertamente a questão da identidade nacional relaciona-se, ao menos em igual medida, com a identidade instável da própria elite política enquanto classe privilegiada branca ou mestiça governando um país africano negro (p. 97).
Cabe perguntar, no entanto, qual seria o Estado que propõe um debate sobre seus próprios privilégios, e em quais termos, para que tal comparação pudesse ser explicitada e render frutos analíticos.
Talvez a questão da identidade nacional tenha-se tornado “imprecisa e escorregadia” (p. 97) não só porque na esfera pública angolana não se realiza uma discussão identitária nos mesmos termos da que se realiza em outros contextos, mas também porque a questão da identidade nacional, tão central para a geração da independência, passou a ser tomada por certo pelo discurso oficial quando este passou, com a guerra, a preocupar-se com a “unidade nacional”. Trata-se, no primeiro momento, de constituir tal unidade, enquanto no segundo ela é apresentada como correndo perigo de iminente destruição pela UNITA. Se a “identidade” não fosse um suposto do debate sobre a diferença, a análise poderia desenvolver-se no sentido de mostrar como tais práticas discursivas se articulam, ao longo do tempo, a contextos sociopolíticos distintos.10 Não é esse o objeto da etnografia proposta, que se volta para as dinâmicas sociopolíticas na contemporaneidade. Contudo, tendo em vista a revisão bibliográfica sobre a historiografia angolanista realizada, semelhantes reflexões enriqueceriam a análise no capítulo 3.
É digna de nota a discussão acerca da oposição entre rural e urbano, segundo a qual os polos superiores das oposições hierarquizadas – como branco e negro, rico e pobre – são via de regra assimilados a uma ideia de urbanidade cosmopolita que se opõe à ruralidade do “mato” inculto (p. 103). A centralidade de Luanda nessa rede de oposições é bem apontada por Schubert, para quem a vitória do MPLA sobre a UNITA representou também a consolidação do lugar de privilégio das cidades do litoral sobre o interior. Embora em linhas gerais tais oposições discursivas sejam de fato verificadas no terreno, há momentos em que a posicionalidade social dos sujeitos carece, na etnografia, de maior precisão, tal como a seguir: “Eles se sentem muito mais sofisticados e melhores do que os angolanos do interior” (p. 104). Caberia perguntar a quem “eles” se refere: a todos os luandenses? Semelhante deslize aparece na referência a sentimentos por parte da elite, como o “desdém pelas massas incultas (leia- -se negras)” por parte da “elite governante socialmente branca”, oposta ao “povo matumbo socialmente negro” (p. 110). Embora a etnografia revele tal oposição, que também encontrei em campo, é complicado estabelecer uma relação inequívoca entre posicionalidades sociais e sentimentos. Aqui se coloca a questão metodológica não só de como acessar, mas também de como generalizar o sentimento atribuído.
O capítulo 4, escrito em grande medida a partir da experiência do autor no processo de obter um visto de pesquisa, é o ponto alto da etnografia. Mostra como a “cunha”, mobilização estratégica de uma relação de familiaridade ou parentesco com alguém bem posicionado na hierarquia política, depende da personalização cotidiana das relações com base em critérios compartilhados (p. 115). A “cunha”, assim como a “gasosa” (termo que literalmente significa “refrigerante”, mas é usado com o sentido de suborno), é apontada como um mecanismo a partir da qual o “sistema” funciona (p. 113). Ao se afastar de noções como nepotismo, favoritismo e tráfico de influências para compreender tal ordenamento moral, Schubert pretende mostrar como burocratas e cidadãos, Estado e sociedade confluem para a construção e manutenção do “sistema” (p. 115). Recomendo veementemente a leitura desse capítulo aos interessados na dinâmica das relações de influência em Angola ou, mais especificamente, Luanda.
Um de seus achados etnográficos é a ideia de que, embora Angola não se distancie muito de outros contextos da África Subsaariana, nos quais é comum a concepção de que “um governante justo deve ser para seus súditos o que um pai é para sua família” (p. 131), essa comparação, mobilizada por elementos da população angolana, não se reproduz no discurso oficial do MPLA. Isso se dá, segundo Schubert, porque este nega o usufruto de privilégios por parte de seus membros, apresentando-se como um “Estado moderno”. Como consequência, as pessoas que mais se beneficiam das “cunhas” mascaram esse fato: a despeito de ser do conhecimento da população quais são as famílias da elite, estas apostam em um discurso do mérito e do trabalho como explicação para o sucesso, enquanto os menos privilegiados explicitam o uso das “cunhas” para acessar benefícios. Caberia, no entanto, questionar a oposição implícita entre “modernidade” e as relações pessoalizadas que fazem parte do “sistema”.
A “cultura do imediatismo” é abordada no capítulo seguinte, que mostra como o desenvolvimento econômico de Angola no período anterior à crise de 2014 levou à impressão generalizada – em Luanda? – de que é possível enriquecer rapidamente desde que se tenha acesso às influências e habilidades necessárias. Uma forma de ascensão social imediata apresentada é a cooptação de cidadãos que expressam sua insatisfação com o regime. Ao discutir tais casos, Schubert defende que a agência não se dá necessariamente em contraposição ao “sistema”, mas também pela filiação à ordem dominante. Isso adquire especial relevância no contexto angolano na medida em que se verifica uma “simbiose entre poder econômico e político” (p. 154) de tal modo que as linhas divisórias entre partido, Estado e governo não são claramente demarcadas. Assim, é possível à maior parte das pessoas, mesmo àquelas com poucas conexões, filiar-se ao MPLA e, assim, beneficiar-se da proximidade ao poder.
O sexto e último capítulo parte do suposto gramsciano de que a oposição política, mesmo quando explícita, se dá segundo os repertórios da ideologia dominante. Seu objeto etnográfico são as manifestações contra o governo ocorridas a partir de 2011, na esteira da Primavera Árabe. Abordam-se os principais protestos organizados; a reação do governo angolano, incluindo violência policial e controle dos meios de comunicação pelo Estado; a composição social dos manifestantes: de filhos da alta burguesia do MPLA a moradores de musseques,11 veteranos de guerra e vendedores ambulantes; as reivindicações dos manifestantes; as estratégias performativas adotadas nos protestos. Schubert aborda as continuidades e rupturas entre momentos históricos analisando, por um lado, como ecos do 27 de maio se fazem sentir nos protestos e, por outro, as transformações relacionadas à afirmação dos manifestantes de que são “a geração que não tem medo”. Segundo ele, a despeito do pequeno número de manifestantes, estes são significativos por terem tornado visível uma insatisfação popular.
A conclusão do livro retoma seus principais argumentos e é seguida de um epílogo sobre os acontecimentos políticos pós-crise de 2014. Para o autor, a extensão da repressão indica a perda da hegemonia do governo (p. 191), pois na medida em que a crise leva ao questionamento dos ganhos da paz, o discurso oficial sobre o risco de retorno à guerra perderia força mesmo entre os beneficiários da proximidade com o MPLA. Schubert conclui sua narrativa desejoso de que as reivindicações da população angolana sejam atendidas nos próximos anos. Embora aprecie sua descrição etnográfica, não me convence tanto a afirmação de que a hegemonia do MPLA foi abalada. Afinal, como nos lembra Mabeko-Tali,12 trata-se de um regime historicamente pragmático e adaptável. Se há brechas no “sistema”, como sempre as há, os resultados de seus deslocamentos e extensões são sempre imprevisíveis.
É muito reveladora a análise dos discursos realizada ao longo da etnografia: formulações elípticas a respeito de temas censuráveis; silenciamentos; polissemias e expressões idiomáticas, jocosas ou não, usadas para falar da vida política em Angola contemporânea. Ao considerar como a subjetividade política é constituída na imbricação entre práticas e discursos que mantêm uma relação com o Estado mas não se esgotam nela, a atenção à linguagem é fundamental para mostrar como se dá a “coprodução da hegemonia”. É bem-sucedida a tentativa de mostrar como, no cotidiano das práticas linguísticas, o “sistema” aparece. Contudo, cabe questionar se a etnografia, ao pautar- -se no gesto êmico,13 não teria como consequência indesejada uma totalização que, como ocorre no discurso de muitos angolanos acerca do “sistema”, acaba por mascarar falhas e possibilidades de deslocamento que uma abordagem menos sistêmica talvez permitisse. Ademais, uma das questões que a etnografia suscita é se o tal “sistema” começa no pós-guerra – como parece ser afirmado (p. 29) – ou se, o que parece mais provável, alguns de seus aspectos não remontariam à guerra civil, ao colonialismo ou mesmo ao período que antecede a efetivação deste. Afinal, circunscrever o “sistema” exclusivamente à dita “nova Angola” implicaria, em alguma medida, aderir ao discurso de que 2002 seria o “ano zero”.
No que diz respeito ao caráter sistêmico da descrição, há que se ter em mente que a etnografia foi realizada em Luanda. O deslizamento de escala etnográfica que se verifica quando se fala ora de Luanda, ora de Angola, precisaria ser matizado. Embora seja possível afirmar com alguma precisão que muitos dos elementos da etnografia também se verificam em outras partes de Angola, isso não pode ser pressuposto – por exemplo, a nostalgia da solidariedade socialista é muito mais característica de Luanda do que dos interiores, onde o período socialista não foi vivenciado da mesma forma que na capital. Assim, no que tange à proposta de uma “etnografia dos entendimentos êmicos do político na Angola do pós-guerra” (p. 5), caberia perguntar se o êmico seria o mesmo para todos os angolanos, questão metodológica elidida pela suposição sistêmica com base na qual o êmico é afirmado. Ou bem seria necessário dar conta da relação entre o suposto êmico e as diferentes posicionalidades sociais em Angola, ou embasar etnograficamente que tal êmico independe de posicionalidade social. Trata-se, evidentemente, de questões metodológicas que ultrapassam a etnografia em questão, mas que são suscitadas por uma leitura atenta do livro de Schubert.
Notas
1 As principais etnografias sistemáticas sobre Angola durante o período colonial foram produzidas por missionários e administradores. Para uma apreciação das etnografias missionárias, ver Iracema Dulley, Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial, São Paulo: Annablume, 2010.
2 A maior parte da produção sobre questões político-sociais durante a guerra é da autoria de jornalistas e cientistas políticos. Contudo, cf. Luena Pereira, Os Bakongo de Angola: etnicidade, religião e parentesco num bairro de Luanda, Rio de Janeiro: Contracapa, 2015 e Christine Messiant, L’Angola postcolonial: guerre et paix sans démocratisation, Paris: Karthala, 2008.
3 Exceções são as etnografias de Blanes e Pearce: Ruy Blanes, A Prophetic Trajectory: Ideologies of Place, Time and Belonging in an Angolan Religious Movement, Oxford: Berghahn Books, 2014; Justin Pearce, A guerra civil em Angola (1975- 2002), Lisboa: Tinta da China, 2017. Jess Auerbach, Filipe Calvão, Sylvia Croese, Aharon De Grassi, Claudia Gastrow, Selina Makana, Shana Melnysyn, Ariel Oliveira, Cheryl Schmitz, Jaqueline Santos, John Spall, António Tomás e Cláudio Tomás defenderam recentemente doutorados sobre Angola contemporânea que devem resultar na publicação de novas etnografias.
4 Refiro-me à violência contra pessoas de origem ovimbundu e bakongo nos “massacres do Dia das Bruxas”, perpetrados entre 30 de novembro e 1º de outubro de 1992, e na “Sexta-feira Sangrenta” de 22 de janeiro de 1993.
5 A etnografia de Schubert explora os rumores que o acusam de ser cabo-verdiano.
6 No contexto angolano, “crioulo” faz referência a um lugar social de privilégio, pois remete à elite que se formou nas cidades costeiras a partir das relações estabelecidas entre africanos e portugueses no período do tráfico de escravos. Embora não se possa afirmar a inexistência de qualquer hierarquização racial nesse período, critérios como raça e/ou cor de pele não eram determinantes para a pertença a tal elite. Cf. Marcelo Bittencourt, Dos jornais às armas: trajectórias da contestação angolana, Lisboa: Vega, 1999 e Christine Messiant, 1961. L’Angola colonial, histoire et société, Basel: Schlettwein Publishing, 2006.
7 A esse respeito, ver a brilhante discussão em Luena Pereira, “Identidades racial e religiosa emAngola e no Brasil: reflexões a partir da experiência de campo em Luanda”, in Iracema Dulley e Marta Jardim (orgs.), Antropologia em trânsito: reflexões sobre deslocamento e comparação (São Paulo, Annablume, 2013, pp. 59-89). O trabalho de Schubert poderia ter-se beneficiado do diálogo com esta e outras referências importantes em língua portuguesa, tais como Rita Chaves, Nelson Pestana, Maria da Conceição Neto, Marcelo Bittencourt.
8 Sobre a relação entre angolanidade e nacionalismo, ver Rita Chaves, A formação do romance angolano: entre intenções e gestos, São Paulo: Via Atlântica, 1999.
9 Para vários exemplos, ver Jaqueline Lima Santos, “Imaginando uma Angola pós- -colonial: a cultura hip-hop e os inimigos políticos da Nova República” (Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2019).
10 Para uma análise sobre as inflexões discursivas do discurso do MPLA e da UNITA durante diferentes fases da guerra civil angolana, ver Ariel Oliveira, “Dissensões do universal: itinerários da imaginação nacional em Angola” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2017).
11 Os musseques são bairros de areia habitados pelas camadas mais desprivilegiadas da população.
12 Jean-Michel Mabeko-Tali, Dissidências e poder de Estado: o MPLA perante a si próprio (1962-1977), Luanda: Nzila, 2001.
13 Para uma discussão acerca das implicações do gesto êmico, ver Iracema Dulley, On the Emic Gesture: Difference and Ethnography in Roy Wagner, Londres: Routledge, 2019.
Resenhista
Iracema Dulley – Universidade Federal de São Carlos. E-mail: idulley@gmail.com
Referências desta Resenha
SCHUBERT, Jon. Working the System: a Political Ethnography of the New Angola. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 2017. Resenha de: DULLEY, Iracema. Sobre a vida política na Angola contemporânea. Afro-Ásia, n. 60, p. 299-307, 2019. Acessar publicação original [DR/JF]