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A Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e conflito entre a Primeira República e o Catolicismo – MATOS (LH)

MATOS, Luís Salgado deA Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e conflito entre a Primeira República e o Catolicismo. Lisboa: D. Quixote, 2011. Resenha de: CARVALHO, David luna de. Ler História, v.65, p. 179-181, 2013.

1 O livro A Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e conflito entre a Primeira República e o Catolicismo de Luís Salgado Matos apresenta logo no subtítulo uma indicação preciosa sobre o seu contributo para a historiografia, a de que também houve concórdia no processo de separação do Estado da Igreja! Segundo o autor, o próprio processo de implementação da Lei da Separação demonstra mesmo que numa fase inicial o projeto da lei era de molde a não levantar problemas; devido a um acordo tácito entre o Estado e a Igreja as cultuais eram, na prática, voluntárias e o culto paroquial livre.

2 Não saindo da tradicional vertente da história da I República – a História Política – Luís Salgado Matos inova no entanto ao demonstrar que cada um dos dois intervenientes no processo em análise, o Estado e a Igreja, longe de serem entidades homogéneas, decompunham-se numa heterogeneidade de protagonistas e interesses contraditórios. Para exemplo podemos ver como o autor avalia a sensibilidade em matéria religiosa por parte do Estado, ou seja dos republicanos. A existência de diversas sensibilidades como as dos evolucionistas e unionistas, adeptos de uma política de atração e para quem a Igreja só devia ser reprimida se fizesse política contra a República, até aos democráticos, considerados como os mais radicais e para quem defender a República era reprimir a igreja já era conhecida, mas Salgado Matos debruça-se ainda sobre outra categoria, a dos laicistas. O autor demonstra que os mais radicais não foram os democráticos, mas sim os laicistas. Estes consideravam a religião como algo a extinguir ao contrário dos democráticos que a concebiam de um modo positivo.

3 Partilhando a conceção de que a questão religiosa foi central na «vida e morte» da I República, Salgado Matos demonstra como a organização política esteve refém da «dialética dos extremos», quer no interior do Estado Republicano quer no da Igreja Católica. No campo republicano, o do Estado, a tendência laicista mais radical pressionava a corrente laica e no campo do Catolicismo os católicos monárquicos constitucionais, representados pelo rei exilado, D. Manuel, pressionavam a hierarquia eclesiástica e os partidários da indiferença face à questão do regime político, como os membros do Centro Católico.

4 Os republicanos laicos, pretendendo um relacionamento com o topo da hierarquia católica, o Vaticano, não conseguiam dissociar-se de um laicismo intolerante, de tal modo que fundamentavam a importância dessa relação praticamente apenas na salvaguarda do empreendimento colonial. A hierarquia católica, reforçada por já não partilhar o seu poder com o Estado Regalista, não se demarcou das ofensivas monárquicas e do próprio constrangimento proveniente do rei exilado ser considerado um rei «fidelíssimo», tornando-se «refém do seu imaginário de vítima perseguida».

5 No cerne de toda a questão religiosa esteve, segundo o autor, a questão da personalidade jurídica da Igreja Católica. Contrariamente às teses que consideram que o Estado republicano era irredutível, atribuindo a personalidade jurídica apenas à associação dos cidadãos crentes em cultuais e que a Igreja também o era, considerando apenas a hierarquia eclesiástica, para Luís Salgado Matos houve entendimentos que consideravam soluções intermédias. Estas soluções existiam no próprio texto da lei, pois as cultuais aí consagradas constituíam mais de que uma categoria, além das cultuais a serem criadas de novo existiam também as cultuais baseadas em organizações tradicionais como as misericórdias, irmandades e outras instituições seculares da Igreja. Ainda que as Irmandades tivessem de alterar os seus estatutos, muitas não o fizeram, não sendo postas em causa e, além disso, não tardou que existisse legislação atribuindo ao clero a acreditação dos membros cultualistas como católicos. Esta foi uma solução de compromisso aceite pelos moderados de ambas as partes e contrariada pelos seus extremistas, demonstrando que a Lei da Separação portuguesa não era uma cópia da lei francesa de 1905, mas sim uma lei original.

6 As irmandades foram, segundo o autor, o terreno de encontro entre o Estado e a Igreja e esta prática remontava ao Estado monárquico liberal. O desejo dos republicanos laicos era o de uma reconfiguração que não abandonasse totalmente o regalismo, tendo chegado a negociar com o Vaticano e com os bispos antes da publicação da Lei da Separação, algo que o papa de então, Pio X não aceitou. Posteriormente, sobretudo devido a um novo papa, Bento XV, advogando uma política de ralliement, e a Sidónio Pais, com medidas segundo as quais os associados teriam de ter o aval do clero, a questão religiosa foi resolvida em termos institucionais.

7 Com o cuidado de não equiparar a separação da Igreja do Estado com a Lei da Separação, pois que aquela foi realizada também em muitas medidas anteriores a esta, a tese fundamental de Salgado Matos é a de que nem o Estado nem a Igreja pretendiam a separação que acabou por ocorrer, mas após o processo se ter iniciado cada uma das entidades foi ultrapassada e os seus objetivos alterados de um modo antes inimaginável. A divulgação da pastoral dos bispos em fevereiro de 1911 constituiu o marco dessa clivagem, não obstante o culto ter prosseguido com normalidade na maioria das paróquias. Mesmo com a sua conciliação depois da primeira guerra, nem o Estado republicano nem a Igreja católica tinham conseguido dominar os seus extremistas.

8 Sendo eu próprio um historiador da «Separação» em Portugal, embora numa perspetiva menos política e mais social e cultural, as conclusões de Luís Salgado Matos são particularmente preciosas, não apenas por aquelas que são coincidentes, mas também devido às que são divergentes.

9 No que respeita a conclusões convergentes com as minhas existe uma coincidência fundamental, concluímos ambos não ter existido uma guerra religiosa no processo de laicização e o autor considera que esse processo não constituiu uma perseguição, mas apenas um combate, com a «violência de forças opostas».

10 No respeitante a conclusões divergentes será muito interessante tentar perceber a sua razão de ser. Pela minha parte pude concluir que a faceta mais conflitual da «Separação» se tinha verificado no contexto da realização dos cultos, pois a grande maioria dos tumultos inventariados referia o constrangimento desses atos como pretextos de rebelião. Para Luís Salgado Matos, porém, o fulcro do conflito entre o Estado e a Igreja foi o da organização dos cultos uma vez que colocava em causa a personalidade jurídica da Igreja. Creio que esta divergência se deve exatamente ao diferente tipo de universo que ambos estudámos, no meu caso observei as reações dos fiéis comuns face aos implementadores locais da lei, enquanto Luís Salgado Matos observou essas reações sobretudo no topo das duas esferas, o Estado e a Igreja. Mais difícil de explicar é o autor não ter atribuído importância à «Lei do Registo Civil Obrigatório», anterior à «Lei da Separação», no que diz respeito à sua prescrição de proibição do cortejo fúnebre religioso no espaço público. Na minha inventariação de conflitos o maior pico mensal de tumultos verificou-se precisamente após a implementação dessa medida. Porque não terá havido eco nas esferas superiores da contenda, quando sabemos que foi a única ocasião em que os mais altos representantes do Estado republicano consideraram a possibilidade de um «conflito passional de natureza religiosa»?

11 A terminar uma breve alusão positiva à preocupação do autor em explicitar constantemente o significado de muitos conceitos pouco acessíveis a quem não tiver alguma especialização neste domínio, algo que não é muito vulgar!

David Luna de Carvalho – Doutorado em História Contemporânea e investigador do Centro de Estudos de História Contemporânea (ISCTE-IUL). E-mail: davidlunadecarvalho@gmail.com.

Consultar publicação original

Itamar Freitas

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