Reversed Gaze: An African Ethnography of American Anthropology | Mwenda Ntarangwi

Quão diferente é a vida do antropólogo “em casa”, se comparada à compartilhada por ele nas etnografias e memórias de campo? Como estudantes de antropologia navegam pelos desafios da etnografia durante o treinamento que precede a ida ao campo? Como os antropólogos interagem nas reuniões anuais de trabalho? Seriam eles tão alienados e hostis com relação às suas culturas ocidentais que compensam pela idealização de outras culturas? Essas são algumas das questões que animam o queniano Mwenda Ntarangwi – Professor Associado de Antropologia na Calvin College, EUA – em sua jornada ao “coração da antropologia”.

Em Reversed Gaze: an African Ethnography of American Anthropology o enfoque é dirigido às subjetividades de antropólogas e antropólogos, bem como suas práticas nos departamentos de antropologia, encontros profissionais, salas de aula e na escrita etnográfica, em uma tentativa de etnografar a prática antropológica “em casa”. Essa abordagem é justificada como forma de revelar o “outro lado” da antropologia, usualmente invisível nos artigos científicos, etnografias e memórias de campo. É nesse sentido que Ntarangwi propõe uma “reversão do olhar”, utilizando as ferramentas da antropologia para, do ponto de vista de um africano treinado nos EUA, realizar uma análise da antropologia e da cultura ocidental.

Não se trata, entretanto, de um estudo sistemático no qual um projeto pré-elaborado orienta a obtenção de dados na pesquisa de campo. O principal material primário que alimenta as considerações é composto pelo conjunto de diários mantidos pelo autor durante os seis anos de sua formação. Esse registro é complementado com experiências de campo no Quênia e pelas vivências como antropólogo e professor de antropologia nos Estados Unidos. Sua carreira acadêmica é, portanto, o fio condutor que perpassa os seis capítulos que, quando considerados em conjunto, apresentam certo caráter quimérico, combinando características dos gêneros etnográfico, biográfico e ensaístico.

Entre seus seis livros publicados, este é o terceiro. Uma publicação fruto de uma parceria com a Fundação Wenner-Gren para a produção de uma pesquisa de Pós-Doutorado. Este trabalho se destaca entre as demais publicações de Ntarangwi, centradas, sobretudo, nas culturas expressivas dos centros urbanos do Leste africano, como em Gender, Identity and Performance: Understanding Swahili Cultural Realities Through Songs (2003) e East African Hip Hop: Youth Culture and Globalization (2009). O livro está dividido em seis capítulos, que podem ser considerados individualmente e tem como fio condutor a trajetória de Ntarangwi na Antropologia. Nele, o autor anuncia dois diálogos importantes para a construção de seu texto, o primeiro diz respeito à produção ligada à virada reflexiva, da qual são mobilizados nomes como George Marcus, Doug Holmes, James Clifford e Michael Fischer. Por outro lado, Ntarangwi mobiliza um conjunto de antropólogos e antropólogas africanas e afro-americanas que tem produzido no sentido de perturbar o status quo da Antropologia, como Archie Mafeje, St. Clair Drake, Faye Harrison, Elliot Skinner e Maxwell Owusu.

Ntarangwi nos conta que seu interesse pela antropologia se desenvolveu durante seus estudos de graduação e mestrado em sociolinguística na Kenyatta University, Quênia. Após a leitura de um manual de antropologia indicado por seu orientador, Ntarangwi resolveu desenvolver sua pesquisa de doutoramento nessa disciplina, como forma de aprofundar suas investigações sobre a cultura popular anteriormente conduzidas no campo da linguística. Com isso em mente, o autor chega aos Estados Unidos no ano de 1992, momento que descreve como “uma fase muito dinâmica da antropologia em geral e da antropologia americana em particular” (p. viii). Era o ápice da crise da autoridade etnográfica e da acomodação das críticas do pós-modernismo à antropologia, de forma que a preocupação com a reflexividade marcou não só sua formação como é estruturante em Reversed Gaze. Outra preocupação que parece ter se cristalizado em seu espírito durante os primeiros anos nos EUA é a de desafiar a herança colonial da disciplina, rotulada como racista por colegas da sociologia e ciência política. Nesse sentido, o autor anuncia um movimento de crítica à ênfase no exótico e às heranças problemáticas, aprofundando a virada reflexiva no sentido de uma reformulação da disciplina que não incorra em sua condenação total e completa, trata-se de um trabalho que aposta no potencial do instrumental antropológico na reforma da antropologia.

No esquema geral do texto, o primeiro capítulo parece cumprir função introdutória. Nele, o autor apresenta de forma mais detalhada sua proposta de “reversão do olhar”. Segundo ele, a África e os africanos têm sido os principais objetos e temas da antropologia, de forma que suas imagens têm sido formadas por noções ocidentais específicas de alteridade. A noção de uma reversão está presente não apenas pelo fato de que o autor está dirigindo um olhar antropológico à antropologia, mas principalmente por fazê-lo desde uma perspectiva caracterizada como “africana”. Ainda que essa problemática não seja tomada como o cerne do trabalho, é louvável a proposta de mobilizar o ferramental teórico-metodológico que durante tanto tempo foi utilizado na invenção da África para abordar a cultura antropológica do ocidente. Ntarangwi descreve ainda sua pesquisa como uma continuação da virada reflexiva, mas de forma a questionar alguns de seus princípios, que reduzem os problemas da representação às questões de estilo, pressuposições metodológicas e localização dos trabalhos de campo.

Em um segundo momento, Ntarangwi procede ao relato de seu “encontro com a antropologia”. As experiências vividas na Kenyatta University e os estudos da cultura Swahili a partir da sociolinguística são apresentados como, em uma crônica da morte anunciada, um tipo de preparação que não poderia resultar em outra coisa que não uma guinada para a antropologia. Apesar de oferecer informações que ajudam a compreender seus afetos pela antropologia, o formato do testemunho memorialístico é apresentado como o desenrolar de uma predestinação inexorável, o que faz com que essa narrativa não seja objeto da análise, mas seu preâmbulo.

Em seguida o autor expõe suas opções em termos de posições teóricas e escolhas metodológicas. Em termos metodológicos, a análises são feitas a partir dos “diários de campo” mantidos pelo autor durante o tempo que esteve nos Estados Unidos, prática que ele declara não ter sido planejada com a finalidade de produção de uma etnografia. Esses diários, diz ele, continham observações, pensamentos e interpretações de experiências vividas tanto no contexto universitário como em outros espaços pelos quais transitava no dia-a-dia. Há uma ênfase bastante importante no “estive lá” como fonte de legitimidade do material primário e da etnografia que dele decorre, o que parece indicar que, ainda que a autoridade etnográfica esteja (ou estivesse) em crise, há certas rezas em que é necessário proceder de acordo com o rito.

No que diz respeito às suas opções teóricas, Ntarangwi diz ter sido atraído, durante seu doutoramento, por abordagens teóricas que o permitissem desenvolver um distanciamento crítico para entender a nova cultura em que estava vivendo. O autor declara adesão à perspectiva interpretativa e simbólica ancorada nos trabalhos de Clifford Geertz e Victor Turner. Sua abordagem foi consolidada em estudos sobre música popular, nos quais a noção de cultura como conjunto semiótico o permitiu considerar não só as expressões de beleza e virtude, mas também a criação e manutenção de valores, visões de mundo e do ethos compartilhado pelo grupo. A partir das ideias de “liminaridade” e “comunitas” o autor afirma abarcar a constante negociação e reformulação operadas nos processos e performances que analisa. Nesse sentido, as reuniões profissionais, etnografias e comportamentos em sala de aula são considerados textos sociais de uma “cultura expressiva”, a ser analisada pela abordagem simbólica e interpretativa.

Ntarangwi fala, ainda, sobre os enquadramentos da comparação intercultural. Ele afirma que sua apresentação da cultura antropológica é parcial e informada por sua própria, em um processo de conhecer outra cultura e conhecer a si mesmo, o que ele chama de “esgarranchar-se entre duas culturas”. Nesse momento sua empreitada é apresentada de forma mais comedida, como o compartilhamento de algumas questões que surgiram durante o processo de abandonar uma forma de ver e adotar outra. Resta uma inquietação, entretanto, a respeito da sua adesão às categorias e textos canônicos, principalmente em um trabalho que anuncia um aprofundamento de um movimento de distanciamento e crítica dessas mesmas categorias e textos.

No segundo capítulo, o autor aborda o trabalho de campo, a composição de narrativas etnográficas e a questão racial a partir de duas experiências vividas nos primeiros anos de sua formação nos Estados Unidos. A primeira diz respeito a um projeto em grupo desenvolvido como requisito para aprovação em uma disciplina e a segunda fala das dinâmicas e discussões em sala de aula em que um texto sobre raça foi proposto para a leitura. A partir do primeiro caso, uma pesquisa em grupo na qual Ntarangwi era o único não-americano, o autor reflete sobre o trabalho de campo na antropologia, concluindo que a condição de outsider pode ser um fator facilitador do sucesso no campo e um motivo pelo qual a busca por trabalho de campo “fora de casa” seja mais recorrente. Ademais, o autor era o único negro no grupo, o que resultou no fato de que, em uma pesquisa sobre segregação racial em um bairro habitado por uma maioria afro-americana, apenas ele tenha conseguido contato com interlocutores no campo. Esse dado, junto ao silêncio observado por ele em uma discussão em sala de aula sobre o White Women, Race Matters, de Ruth Frankenberg, é interpretado como indicativo da condição de tabu das relações raciais nos EUA e da subutilização da raça como categoria analítica frente a sua importância como realidade social entre os estadunidenses.

As questões relativas à raça e ao racismo são aprofundadas no terceiro capítulo, junto a uma observação mais detida da sala de aula e das práticas observadas nela. Essa seção é iniciada por uma descrição de um flyer de um dos clubes que organizavam atividades extracurriculares no departamento de antropologia. O flyer, como forma de atrair estudantes para a reunião do clube, anunciava um curso fictício de “primatologia”, que abordaria tópicos como escalada em árvore e pesca termal. O curso falava ainda em viagens com tudo pago para Equador, Quênia e Sumatra, além de trazer uma imagem de Michael Jordan justaposta à de um macaco. Esse caso é mobilizado como forma de refletir não só sobre o racismo, mas também sobre a fixação da antropologia com a alteridade. Sua síntese parcial a esse respeito é a de que as representações negativas observadas no flyer são indicativas da aparente ausência, na antropologia, da noção de raça. O autor se refere às considerações de Kamala Visweswaran a respeito do papel da tradição boasiana em determinar a raça como assunto da biologia, o que explicaria essa ausência.

A investigação sobre a ausência da raça na antropologia leva Ntarangwi a se questionar se a sala de aula não seria um espaço de engessamento das discussões e conversas no universo acadêmico. A esse respeito, o autor associa a alta carga de leitura ao curto espaço de tempo para as discussões e debates como forma de indicar que os cursos e disciplinas teriam um formato fixo e predeterminado, como se as interações em sala seguissem um roteiro, encenado com maestria por atores bem treinados. Essa observação é relacionada a um processo de comoditização da educação superior nos EUA, o que coloca sobre os professores a necessidade de agradar os alunos-consumidores e produz nesses “consumidores” uma forma de participação apática e roteirizada. Ao fim do capítulo, o autor retoma a questão da busca pelo Outro, de forma a definir o trabalho de campo como produto das tendências da disciplina e resultado das práticas no espaço da universidade que precedem a ida a campo.

Nesses dois capítulos – segundo e terceiro – estão localizadas as contribuições mais importantes e as análises mais perspicazes deste trabalho, é também nestas páginas que a propostas de uma etnografia da antropologia americana e de “reversão do olhar” se concretizam de forma mais completa a partir de uma articulação entre os dados de campo e as análises sobre a antropologia e a cultura ocidental. Nesse sentido, o quarto capítulo, dedicado ao seu retorno ao Quênia para realização de trabalho de campo para o doutoramento, representa certo detour com relação à proposta inicial. Nesta parte algumas descrições são desnecessariamente longas e a riqueza de detalhes parece cumprir o papel de produção de verossimilhança, o que indica mais uma vez a persistência de determinadas formas de construção de legitimidade e autoridade etnográfica. Ainda assim, as considerações a respeito da condição do imigrante que retorna ao lar são bastante interessantes e a análise da marginalidade da antropologia em África, apesar de ter recebido pouco espaço, é da maior relevância para os debates sobre a reformulação da disciplina.

O quinto capítulo é dedicado à análise dos encontros anuais das associações de antropologia. Ntarangwi oferece uma detalhada descrição de três encontros aos quais ele pôde atender: dois da American Anthropological Association (AAA) e um da Association of Social Anthropologists (ASA). O autor ressalta, inicialmente, a facilidade com que foi possível identificar os antropólogos, cuja maioria carregava uma peça de roupa ou joia que representasse a região na qual teria realizado trabalho de campo. Essas peças, ele afirma, seriam ostentadas como prova do “estive lá” e estariam ligadas, mais uma vez, à fetichização da alteridade. Outro tema importante para ele é a forma ritualizada das interações durante as apresentações nos painéis, espaço no qual ele observa uma constante preocupação em articular as ideias certas para parecer inteligente. Essa questão é lida pelo autor como parte de uma apreciação acadêmica pela linguagem pouco clara, não com a finalidade de esclarecer, mas de impressionar.

Em sentido semelhante, ele fala sobre um tipo de economia do prestígio que orienta as interações durante as conversas informais nos intervalos. Nesse sentido, Ntarangwi realiza uma análise bastante ousada das reuniões e encontros das associações como espaço de uma performance ritual ligada à antropologia como fenômeno cultural específico.

O sexto e último capítulo, apresenta características de uma conclusão e é o espaço no qual o autor se permite, em tom ensaístico, conjecturar a respeito do futuro e das tendências emergentes na disciplina. Ntarangwi retoma algumas das questões que abrem o livro, questionando-se sobre as possibilidades de retrabalhar o campo da antropologia em uma era global. Suas tentativas de oferecer respostas, ainda que preliminares, a essa questão seguem dois caminhos. O de apresentar desenvolvimentos recentes a respeito das “antropologias do mundo” (World Anthropologies) e os caminhos para estabelecimento de uma prática antropológica condizente com a realidade africana.

A respeito das World Anthropologies, o autor começa pelo questionamento das diferenças existentes entre as diversas antropologias nacionais, aventando a possibilidade de que essas diferenças não sejam, em termos epistemológicos, tão profundas e que as diferentes tradições sejam produzidas pelo contato e intercâmbio. Certamente, não há tradições antropológicas cercadas por fronteiras fixas, mas sim distinções operadas por diferenças de prestígio e capital. Isso leva Ntarangwi, de forma bastante perspicaz, a considerar a possibilidade de que as iniciativas de cooperação e diálogo por ele apresentadas reproduzam em escala nacional divisões do tipo centro/periferia, um tipo de situação fractal denominada “Dilema da Matrioshka” (boneca russa). Nesse sentido, as linhas de fuga desenhadas por ela devem ter em consideração as assimetrias na organização do financiamento e nas redes de comunicação e publicação, de forma que possamos habitar nossas realidades históricas, reconhecendo as estruturas de poder subjacentes à produção do conhecimento e a tendência acadêmica em reproduzi-las.

No âmbito da prática da antropologia em África, Ntarangwi começa pela identificação dos bloqueios ao desenvolvimento da disciplina como ferramenta para escrita e compreensão das realidades africanas. Para ele, a antropologia tem falhado no engajamento da teoria com uma prática política que torne a etnografia relevante para as populações estudadas. Sua proposição leva em consideração o fato de que o trabalho de campo pressupõe negociações sociais e pessoais de dar e tomar, além de que o caráter relacional de seu método gera uma maior expectativa de intervenções na realidade, o que está relacionado às agendas pessoais dos diferentes agentes no campo. É preciso, segundo ele, portanto, reconhecer uma trajetória disciplinar na qual a busca por legitimidade acadêmica fez com que a disciplina perdesse relevância prática e que um caminho possível para resgatar essa relevância seja um investimento em uma prática antropológica que tenha um componente aplicado.

Acredito, portanto, que é possível falar de Reversed Gaze como um trabalho incitativo. As questões e entradas apresentadas oferecem uma reflexão substancial sobre o fazer antropológico e sustentam a pertinência e relevância deste trabalho para o aprofundamento das discussões sobre a superação de legados nefastos na disciplina e para o desenvolvimento de redes de cooperação que não reproduzam o modelo de exclusão vigente na academia. Longe de ser um trabalho de caráter voyeurístico, o texto traz análises preocupadas em não jogar fora o bebê proverbial junto à agua do banho, bem como em oferecer propostas concretas de intervenção no campo.

É certo que há momentos nos quais a proposta de uma etnografia da antropologia americana apareça sobrepujada por um tom memorialístico e biográfico. É notório que os capítulos mais interessantes sejam os que mobilizam de forma mais evidente as experiências registradas nos diários. As análises sobre a autoimagem dos estudantes como consumidores, sobre a ausência das categorias de raça e classe na antropologia, dos encontros das associações como rituais de um fenômeno cultural específico e sobre a produção e disseminação do conhecimento antropológico conferem verdadeiro vigor ao trabalho de Ntarangwi, que, até naquilo que lhe falta, oferece oportunidades para leitoras e leitores atentos.

Por fim, parece que Mwenda Ntarangwi produziu o livro que gostaria de ter lido em seu período de adaptação à disciplina, um trabalho de valor informativo e que afirma as potencialidades da antropologia como crítica cultural sem perder de vista a necessidade de superar suas limitações e alianças problemáticas. Reversed Gaze é um livro dirigido não só a praticantes e estudantes de antropologia, mas às comunidades acadêmicas como um todo. Trata-se de uma narrativa-registro de uma trajetória e de um “estado da arte”.


Resenhista

Bernardo Moraes Ferreira Reis


Referências desta Resenha

NTARANGWI, Mwenda. Reversed Gaze: An African Ethnography of American Anthropology. Chicago: University of Illinois Press, 2010. Resenha de: REIS, Bernardo Moraes Ferreira. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 135 – 140, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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