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O mundo se despedaça | Chinua Achebe

Esta resenha tem como objetivo analisar o impacto do colonialismo a partir da obra ficcional O mundo se despedaça (1958), do escritor nigeriano Chinua Achebe, entendendo a importância do culto à ancestralidade para o povo ibo, por meio da análise dos personagens principais da obra: Okonkwo, Nwoye e Ezeudu. Num instigante romance nigeriano, escrito dois anos antes da independência do país de origem do autor, Achebe não só constrói uma história para os atores em questão, como utiliza-os para fazer-nos entender sobre o período de colonização do continente africano. Desse modo, torna-se possível analisar questões coloniais e pós-coloniais a partir da identidade em torno desse povo e os impactos do colonialismo.

É valido esclarecer, entretanto, que tal escolha – tema e obra – não se pauta numa arbitrariedade, e sim num constante incômodo suscitado pela leitura do texto, acentuado pela relevância de uma temática tão cara para a modernidade: a de entender o(s) impacto(s) da colonização nas mais diversas regiões e o quanto as tradições religiosas dos colonizados foram atingidas pela violência colonial.

Torna-se necessário, ademais, realizar uma breve nota explicativa no que diz respeito ao título deste texto. O conceito de Sankofa pode ser visto como um fio que perpassa todo o livro de Achebe. Isso porque Sankofa é o ideograma de um pássaro de pescoço longo olhando para trás e faz parte do sistema de escrita Adrinka do povo Akan, da Árica Central. A palavra significa “volte e pegue”, e o conceito é descrito como o movimento de retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Sabe-se, todavia, que a Nigéria – país natal do autor -, está localizada na África Ocidental, entretanto, ao buscar refletir sobre a importância do culto religioso a Egungun1 para o povo ibo, com presença recorrente em toda a obra, o conceito de Sankofa se faz possível ao pensarmos na religião como uma forma de reconstrução do mundo despedaçado. Ora, louvar a ancestralidade numa região assolada pela catequização, além de “retornar” ao passado, pode reconstruir o presente. É resistência. É Sankofa.

As reflexões que aqui serão discutidas, partem da ideia de um possível questionamento epistemológico, critico à perspectiva histórica. Isso porque, ao criar alternativas de outros saberes e epistemologias, torna- se possível questionar e problematizar a hierarquia de conhecimento estabelecida pela perspectiva europeia. Chinua Achebe, de certa forma, realiza tal problematização ao provocar no leitor a necessidade de perceber a importância do africano como protagonista na construção de narrativas e interpretações marcadas pela sua experiência, seja histórica ou social. A reflexão de Walter Mignolo (2005) acerca da importância do deslocamento das epistemologias de conhecimento privilegiadas nos ajuda a compreender a perspectiva do próprio sujeito da pesquisa, a refletir nosso lugar dentro de uma produção e a forma como nossa formação está carregada por um imaginário marcado pela colonialidade e pelos pensamentos europeizados.

“O que significa a África para o mundo? Quando se vê um homem africano, que significa isso para um homem branco?”2 O questionamento de Achebe, em entrevista, parte da lógica aqui exposta. Obviamente a ideia de criar novas alternativas epistemológicas não se implica em desconsiderar saberes e conclusões provenientes de estudos europeus ou americanos, por exemplo. Nem mesmo, ademais, atribuir a exclusividade aos africanos como produtores de conhecimentos, muito menos de considerar que apenas eles possam falar sobre si. Todavia, como propõe Hountondji, é válido refletir “quão africanos são os chamados estudos africanos? Por exemplo, por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos” (HOUNTONDJI, 2008.).

Ao ler O mundo se despedaça, as ideias de Hountondji (2008) e Mudimbe (1988) sobre a escrita da África se tornam ainda mais pertinentes. A obra, mesmo que ficcional, possibilita-nos mergulhar numa narrativa dos impactos e perspectivas africanas acerca da colonização europeia marcada pelo posicionamento de Achebe. Dessa forma, as visões do escritor nigeriano nos permitem refletir acerca da colonialidade do saber (QUIJANO, 2007) e constituir o questionamento de uma epistemologia eurocêntrica que fez com que saberes se tornassem “subalternizados”, como aponta os teóricos aqui mencionados. Entretanto, partindo da ideia de subalternidade, se os africanos, pela lógica da obra de Achebe, são acessados e considerados enquanto construtores de conhecimento, tornam possível pensar e ver o mundo a partir de outra perspectiva. Dessa forma, é necessário dá importância à ideia de enunciação do então subalternizado, proposta pela indiana Gayatri Spivak (1985).

Qual seria, então, o lócus de enunciação observado na obra de Chinua Achebe? Utilizarei aqui a questão religiosa como forma de enunciação. A todo momento, os cultos religiosos se fazem presente no trabalho de Achebe. Em Umuófia, a importância a ideia de ancestralidade é vista desde a organização estrutural do clã, passando pelas relações sociais, até as festividades narradas por Chinua Achebe. Para além disso, a noção de ancestralidade pode ser vista na lógica de passagem de conhecimento da cultura local realizado por Okonkwo, personagem principal, para seus filhos. Como aponta o crítico literário Homi Bhabha (1998), os espaços de enunciação não devem ser definidos pela polaridade dentro x fora, mas vistos como compostos de divisões, no entremeio das fronteiras que definem qualquer identidade coletiva. Dessa forma, a compreensão deste lugar de enunciação possibilita o entendimento de que nossos posicionamentos, produções e visões de mundo podem ser modificados.

Partindo dessa ideia de “africanizar” os estudos africanos, Chinua Achebe, sem dúvidas, carrega consigo e transpassa para sua obra suas vivências enquanto nigeriano no contexto de independência e “construção” de nação. Dessa forma, as questões de identidade africana tendem a figurar a vida literária do autor, conforme sugere Kwame Anthony Appiah (1997, p. 108). Na época que Achebe escrevia tal obra, era o mundo do autor que havia se despedaçado, assim, o autor reflete sobre a necessidade de escritores africanos examinarem as várias identidades que detém. Tudo isso através da escrita. Instrumento este utilizado pelos colonizadores para dominação. Logo, Chinua Achebe, Wole Soyinka e tantos outros escritores denunciam as marcas da herança colonial com a imposição violenta de uma cultura que se mantém alheia às realidades e as tradições das populações do continente africano (APPIAH, 1997, p.108).

Diante do exposto em torno do debate de colonização e o quanto isso impacta e é visível nas motivações de Achebe a realizar a obra, torna-se necessário, enfim, buscar entender qual a relação do debate em torno da ancestralidade e da colonização presente em O mundo se despedaça. No romance em questão, o autor destaca o culto aos ancestrais praticado pelos habitantes da aldeia Umuófia, localidade onde se dá toda a trama. A pratica de louvar a ancestralidade é uma característica invariável das religiões negras e um marco do qual se dá a continuidade ao processo civilizatório do negro no transito transatlântico. Logo, a ancestralidade é o principal elemento da cosmovisão africana, perpassando o limite biológico (OLIVEIRA, 2001).

A partir dessa premissa, é possível entender a ancestralidade como um sistema que dá continuidade às tradições africanas. Entretanto, tal continuidade não se dá somente nos cultos religiosos, mas sim no cotidiano e na organização social das sociedades africanas, conforme aqui já exposto. Seguindo tal lógica, ao fortalecer os valores sociais, fortalece, também, a identidade. É chegado, então, ao ponto cerne da questão ancestral presente no trabalho de Chinua Achebe. Durante toda a primeira parte, Achebe não somente descreve a vida de Okonkwo, como também a de todo o clã, o que, de certa forma, é a vida em Umuófia, no qual se caracteriza, basicamente em: respeitar o oráculo e aos mais velhos; cultivar inhame; louvar os ancestrais e recorrer aos Egungun quando necessário. São os quatro pontos que sustentam a ideia da importância da presença do respeito ancestral no cotidiano da sociedade ibo para a formação da identidade africana presente em O mundo se despedaça.

Cotidiano este marcado pela ancestralidade do nascimento à morte. Tal visão fica clara na longa passagem de descrição dos ritos funerários após a morte do personagem Ezeudu, onde toda a aldeia lamenta ao som de palmas e tambores. Segundo João José Reis (1991), para as tradições africanas, os ritos funerários são de extrema importância, com o objetivo de não ver a more como uma simples ruptura. No caso de Ezeudu, especificadamente, por ser um velho guerreiro, os ritos funerais tornam-se importante na condição de entender que ele poderia se tornar um ancestral que protegesse a aldeia.

Para além disso, o culto aos Egungun também se faz muito presente em toda a obra. Segundo a antropóloga Juana Elbein dos Santos, “são os Egungun antepassados conhecidos, que levam nomes próprios, estão vestidos de maneira que os singulariza e são cultuados pelos membros de suas famílias e seus descendentes” (ELBEIN, 1986, p.106). Dessa forma, entende-se que o culto aos egungun, para a sociedade ibo, pode ser entendido como uma forma de continuidade de uma cultura tradicional. Outrossim, um outro ponto que faz com que entendêssemos o objetivo de Chinua Achebe em dar clara importância ao culto ancestral é a insistência de relembrar a importância do cultivo de inhame para o povo de Umuófia. Mas, por que o inhame? Dentre dos diversos mitos yorubá, entende-se que o inhame tenha ligação direta com os Egungun, ou seja, com a ancestralidade (ELBEIN, 1986). Havia na cidade de Oyó um fazendeiro chamado Alapini, que tinha três filhos chamados Ojéwuni, Ojésamni e Ojérinlo. Um dia Alapini foi viajar e deixou recomendações aos filhos para que colhessem os inhames e os armazenassem, mas que não comessem um tipo especial de inhame chamado ‹ihobia›, pois ele deixava as pessoas com uma terrível sede. Seus filhos ignoraram o aviso e o comeram em demasia. Depois, beberam muita água e, um a um, acabaram todos morrendo, sendo louvados posteriormente no culto Egungun. 3

Assim, conforme já mencionado, a ancestralidade deve ser entendida como o símbolo máximo de um sistema que tem como objetivo dar continuidade à uma cultura, aos valores civilizatórios. Logo, quando há um choque de culturas na trama a partir da chegada do homem branco britânico na aldeia Umuófia. O encontro da cultura trazida pelo colonizador com a cultura da aldeia não conhecida no mundo ocidental – e vice-versa, obviamente -, torna os habitantes da aldeia vulneráveis devido à relação de poder que se estabelece entre dominante e dominado.

O receio de Okonkwo, ao voltar para a aldeia é de uma possível ruptura cultural promovida pela catequização instaurada pelos colonizadores. A não aceitação da imposição dos missionários, faz com que o personagem principal seja preso ao lado de outros habitantes do clã. Entretanto, sua principal tristeza era ver seu filho Nwoye junto aos missionários. Ao ser libertado, Okonkwo convoca uma reunião junto aos membros do clã para declarar guerra aos missionários. Todavia, a ideia de guerra é descartada pelo personagem. Ora, declarar uma guerra significava guerrear com seus irmãos convertidos. Nas sociedades africanas, a relação de parentesco é extensa e o pertencimento à família é dado pelo convívio social. Os habitantes, assim, consideram laços parentais por identidade territorial ou por ancestralidade (OLIVEIRA, 2001). Fato é que Okonkwo se mata, num claro exemplo de violência psicológica proveniente do colonialismo tão enfatizada por Frantz Fanon (1961). O suicídio de Okonkwo, por fim, também pode ser visto sob a ótica de entender Okonkwo não como um ser individualizado, mas representa toda uma sociedade. A morte, seja ela como for, é um momento tão importante como o nascimento para a sociedade ibo. Okonkwo agora poderia estar ao lado de seus ancestrais.

Por fim, é valido entender que a ancestralidade pode ser vista como uma espécie de encruzilhada, conforme salienta o filósofo Eduardo Oliveira em sua dissertação de mestrado, ou seja, um lugar onde se cruza diversos caminhos e culturas. Visto isso, torna-se remetermos ao conceito de Sankofa desenvolvido no início do presente texto aliado à epígrafe do mesmo. “Exu não só está relacionado com os ancestrais e com suas representações coletivas, mas ele também é um elemento constitutivo, na realidade o elemento dinâmico, não só de todos os seres sobrenaturais, como também de tudo que existe” (ELBEIN, 1986, p.130). Logo, Exu pode remeter à uma ideia de Sankofa, de movimento. Trata-se de expandir, movimentar e transformar com base num saber ancestral. Ora, o culto à ancestralidade presente em O mundo se despedaça, então, pode ser entendido como um movimento de ressignificação do presente e construção do futuro, noção essa que perpassou toda a vida de Okonkwo, até sua morte.

Hodiernamente, louvar os ancestrais nas culturas afro-brasileiras é uma maneira de retomar o passado para dar novo significado ao futuro, e, assim, tal como Okonkwo buscou, construir um futuro. Ou melhor, reconstruir, já que nosso mundo, tal qual a aldeia Umuófia está despedaçado. Tudo isso através da cultura ancestral. E a cultura, como entende Geertz (1978) é simbólica. A semiótica da cultura nos permite dizer que uma experiência pode ser traduzida em outra, de modo a criar novos mundos. É hora então de recriarmos mundos através da cultura. Ele é uma Sankofa.

Notas

1 “São os Egungun antepassados conhecidos, que levam nomes próprios, estão vestidos de maneira que os singulariza e são cultuados pelos membros de suas famílias e seus descendentes” (ELBEIN, 1986, p.106).

2 Entrevista de Chinua Achebe presente em: APPIAH, Kwame. 1997. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura, p.111.

3 Mito presente em: BENISTE, José. Mitos Yorubás: o outro lado do conhecimento. Bertrand Brasil, 2006.

Referências

APPIAH, Kwame. 1997. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Ed. Contraponto.

BHABHA, Homi. 1998. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG.

FANON, Franz. 1978 [1961]. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

GEERTZ, C. 1978. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar.

HOUNTONDJI, Paulin. 2008. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Critica de Ciências Sociais, 80: 149-160.

MIGNOLO, Walter. Colonialidad global, capitalismo y hegemonia epistemica. In: Salvatore, Ricardo. 2005. Culturas Imperiales. Experiencia y representación em America, Asia y Africa. Rosario: Beatriz Viterbo, 55-88.

MUDIMBE, V. Y.. 2013 [1988]. A invenção da África. Ed. Pedago.

OLIVEIRA, Eduardo D. 2001 A Ancestralidade na Encruzilhada: dinâmica de uma tradição inventada. Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR.

QUIJANO, Aníbal. 2005. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. São Paulo: USP. Estudos Avançados.

REIS, João José. 1991. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. Companhia das Letras

SANTOS, Juana Elbein dos. 1976. Os nagô e a morte. Ed. Vozes

SPIVAK, Gayatri. 2000. Pode o Subalterno Falar? BH: UFMG


Resenhista

Layla Silva


Referências desta Resenha

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Trad. Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009. Resenha de: SILVA, Layla. O mundo é uma Sankofa: Chinua Achebe, colonização e ancestralidade. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 125 – 129, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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