Noturno do Chile | Roberto Bolaño

O aclamado Roberto Bolaño, na época com 47 anos, lança em 2000 o livro Noturno do Chile. Bolaño, nascido em 1953, em Santiago do Chile2, tem 12 obras traduzidas para o português3 e mais de 20 obras em sua língua de origem4, distribuída por todo o mundo. Em 1968, foi com a família para o México. Com ideias revolucionárias, retorna ao Chile em 1973 e é preso após o golpe de mesmo ano. Seguiu para o exílio em El Salvador, voltou ao México e finalmente assentou-se na Espanha em 19775 até sua morte em 2003.

A obra Noturno do Chile é contada em apenas dois parágrafos, sob a narrativa de 1ª pessoa, a vida do religioso, soberbo e como Bolaño dita: lamentável6, padre Sebastián Urrutia Lacroix, um crítico literário, escritor e padre, que delirante em seu leito de morte confronta-se consigo mesmo os erros e acertos do passado, que revela em uma fomentada e quase polêmica voz a sua conduta, que pouco condiz com sua batina, ou sua carapuça, como o próprio diz. Isso pode ser visto quando o personagem repudia camponeses por sua feiura e até a velhice de seu amigo, que o induziu ao mundo intelectual, o crítico literário e amigo pessoal de Pablo Neruda, Farewell. Há também uma culpa impregnada na narrativa, que nos é permitida sentir pela figura do jovem envelhecido, que provoca e aborrece o doente padre: é o próprio, debochando de seu estado atual.

De fato, o padre Ibacache faz parte de uma elite intelectual conservadora, que repudia a ascensão da figura de Allende, mas que não expõe sua opinião para com o regime pós-1973, até que tem sua liberdade cerceada, seus encontros e sua produção artística interrompidos. Essa classe se vê reunida na casa de uma escritora, durante toda a noite, a furtar o toque de recolher. A mesma, María Canales, descobre-se mais tarde, possui em seu porão um quarto de tortura, o qual foi visitado – por meio de uma série de enganos e outros nem tanto – por diversos intelectuais, que se mantiveram em silêncio durante anos, até que o caso vem a público. Com isso, Bolaño visa transpassar a omissão dos intelectuais que não se manifestam durante todo o regime e que percebem após o fim desse, que acabaram por contribuir para o sucesso dele, uma vez que eram sabidos de segredos que poderiam abalar a ditadura chilena.

Quanto a sua relação com o regime, Bolaño a estabelece de forma genial e surpreendente: Lacroix é convidado para dar aulas sobre marxismo para os generais Augusto Pinochet, Gustavo Leigh, César Mendoza e o almirante José Toribio Merino. Isso, contudo, não nos mostra explicitamente o que o personagem realmente pensa sobre o governo. A incógnita da opinião pessoal do padre Urrutia permanece, apesar de sua aversão a Allende nos dar uma pista.

O autor tenta, com sucesso, inserir uma visão humana de Pinochet. A percepção de que, por trás da figura de um ditador, está um homem mortal, um intelectual que nada deseja além de transformar o seu país. Essa humanização de figuras tidas historicamente como autoritárias gera um conflito deveras interessante no leitor que passa a conhecer um outro lado dessas personalidades e é tentado a vê-las como meras figuras que incessantemente tentam melhorar a vida daqueles a sua volta e sofrem com uma série de incidentes que os levam a tomar medidas drásticas. Esse debate interno, capcioso, é largamente utilizado nos dias atuais em discursos voltados ao senso comum, que geram uma identificação entre o líder e a população. A visão de Pinochet como alguém curioso, que decide “conhecer para combater” e até mesmo a do crítico padre, que por trás de sua batina esconde sua repulsa pelo que pensa ser inculto e seu caráter orgulhoso, é uma marca do talento de Bolaño: a habilidade em criar situações de catarse é o principal elemento de seu êxito.

Noturno do Chile foi publicado no de 2000, 10 anos após o início da redemocratização do Chile. Período no qual as denúncias começam a surgir e as providências a serem tomadas. Roberto Bolaño vivia na Espanha durante tal período, mas sua ligação com a pátria mostra-se forte o suficiente para que tal obra tenha sido escrita. Bolaño mostra o surgimento de tais denúncias quando retrata os relatos escutados pelo padre Lacroix sobre o quarto no porão de María Canales. Confidências essas que não são feitas à polícia, mas ao próprio Sebastían, o que demonstra que a cumplicidade dos intelectuais permaneceu intacta durante todos aqueles anos e, talvez, também o embaraço de não se ter revelado antes o conhecimento das práticas sombrias do regime, como se de alguma forma, confessar tais relatos ao padre os redimisse, e fosse de fato, uma confissão religiosa, pelo pecado de terem permanecido em silêncio.

Noturno do Chile dialoga com todo o contexto geopolítico na América Latina das décadas de ’60 e ’70. É possível absorver alguns pontos comuns nos processos políticos latino-americanos neste momento. Apesar das imensas diferenças, alguns pontos em comum podem ser notados. Uma das possíveis abstrações deste livro é a natureza distinta das percepções de um regime ditatorial. As reações, os alvos, os momentos políticos são interpretados, aceitos ou refutados de maneiras distintas pelos indivíduos, suas opiniões mudam de acordo com a sua proximidade da violação de direitos, da posição social e até mesmo do momento pessoal e intelectual. É possível observar, sob o olhar do padre, o ponto de vista de uma classe que se encontra não acima do poder, mas que, de certa forma, é capaz de burlá-lo e que só percebe a realidade na qual vive grande parte de seu país quando é atingida por ela, mas que é cúmplice dessa enquanto ela não chega às suas festas privadas, e assim é também de todas as ações tomadas dentro dele, como sequestros e torturas.

Soma-se a isso, a observação de Augusto Pinochet de uma forma humana. Essa capacidade que historiadores perdem depois de lidar com alguns absurdos. A ideia de que por trás de um torturador, pode haver um homem, um que apenas visa o bem da sua nação é impactante. Esse não é um pensamento com o qual está-se acostumado. Ditadores são vilões. Aqui, não se discute o bom ou mau caráter deles, a intenção de suas ações, mas seus atos. A tentativa de catarse de Bolaño é estrondosa, mas não apaga a individualidade e culpa de seus personagens. Não há amor à pátria, nacionalismo ufanista, desejo de transformação e revolução que justifique a violação de direitos humanos, que de alguma forma, mesmo que com a mais nobre justificativa possível que legitime o número de 40.000 desaparecidos e mortos7. Este não é apenas um número, mas cada unidade é uma vida que viveu intensos momentos de dor, assim como seus familiares e amigos.

Um dos fatores que podem ser observados durante a leitura do livro é a conexão entre o continente americano e a forma com a qual suas peças são notadas. A retomada das relações entre Chile e Cuba, e a visita de Fidel Castro ao país são um exemplo disso. Dessa reunião entre os dois líderes das únicas nações latino-americanas que possuem representantes governamentais alinhados ao socialismo, pode-se extrair que esses dois se apoiam e precisam de relações eficazes. Fidel e Allende não são apenas os governantes de seus países, mas de uma revolução e uma reforma respectivamente. Em termos de bipolarização mundial é um desafio à autoridade capitalista, é a emergência dos ideais socialistas na esquina dos Estados Unidos.

O último discurso de Salvador Allende no dia 11 de setembro de 1973, por meio da Rádio Magallanes, permite observar a ameaça sob a qual o então governo chileno se encontrava devido às suas convicções políticas. Ele lembra a autodefesa de Fidel Castro, após sua prisão devido a tentativa de invasão ao quartel de La Moncada, no qual diz a famosa frase “a história me absolverá”. Allende contudo, utiliza-se da frase “a história os julgará”, se referindo aqueles que tentaram contra seu governo, assim como por meio de seu imaginário, o jovem envelhecido de Bolaño, fiel representante da consciência do padre Sebastían, o julga.

“Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. […] Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo está há tempos presente; nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando as vias férreas, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio daqueles que tinham a obrigação de agir. Estavam comprometidos. A história os julgará. […] Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.”8 (ALLENDE, 1973)

Essa relação com os Estados Unidos é outra que é permeada no livro. Nele, o estadunidense James Thomson, o Jimmy, marido de María Canales é um agente da DINA (Diretoria de Inteligência Nacional), a polícia política chilena. Assim como houve a Regional na Guatemala, responsável pela Polícia Nacional, e a Escola Superior de Guerra alinhada à Doutrina de Segurança Nacional, no Brasil. Todas essas se voltavam para CIA (Central de Inteligência Americana), como é o caso da polícia guatemalteca que possuiu um instrutor – John Longan9 – pertencente à instituição; ou a Escola das Américas, – escola no Panamá que treinava soldados latino-americanos em técnicas de guerra e contra insurgência, financiada pelos norte-americanos – onde o diretor da DINA, Manuel Contreras, estudou e na qual tantas outras academias foram inspiradas como a Escola Superior de Guerra da Colômbia, a Escola Nacional de Guerra do Paraguai, e a Escola de Altos Estudos Militares da Bolívia.10

A leitura de Noturno do Chile, não tem como único objetivo informar-nos sobre o Chile, sobre as relações diplomáticas estabelecidas, ou a vida de um intelectual, orgulhoso e arrependido padre, mas a ideia de que como historiadores devem ser capazes de encarar todas as faces de um evento. Não basta acusar a Augusto Pinochet e seus membros estatais de serem sádicos – mesmo que seja possível que alguns de fato o fossem. É preciso que se enxergue que a tortura, o toque de recolher, a censura, e todos os fatores que compõem um governo ditatorial em seus contextos, percebendo que existem diferentes reações e efeitos dele. Não há nenhuma tentativa de anistiar aqueles que torturaram e mataram cidadãos nesta fala, mas de levantar um questionamento sobre os limites do pensamento nacionalista, um apelo por debate sobre discurso justificativo de que certas ações são “pelo bem da nação”, que se torna perigoso até mesmo – e principalmente – em democracias frágeis e recentes como as de grande parte da América Latina.

Não é recomendável que a história seja vista apenas como palavras que está-se acostumadas a dizer, meros títulos, que por tantas vezes repetidos acabam por perder o sentido. Deve-se analisar minuciosamente, para que não haja de fato uma universalização, uma única verdade e que torne a história um reflexo, mas que nela haja um conteúdo, algo em que mergulhar e sempre questionar.

Acredito também em uma sugestão: a de que não se permaneça em silêncio ou sob uma perspectiva cética, como a Urrutia quando diz que “em breve, direita, esquerda, centro, todos voltariam a governar o poder” (BOLAÑO, 2000) e que a ele resta rezar pelas almas que foram feridas pelo regime. Revolta, protesto, denúncias não cabem apenas aos artistas e historiadores, mas àqueles que defendem a vida e a dignidade cabem a luta, pois a história absolverá alguns, mas julgará a todos.

Notas

2 COMPANHIA DAS LETRAS. Roberto Bolaño. Acesso em: 26 Nov 2017

3 Ibdem, loc. Cit.

4 LECTURALIA. Roberto Bolaño. Disponível em:< http://www.lecturalia.com/autor/769/robertobolano> Acesso em: 28 Nov 2017

5 Introdução ao autor. Noturno do Chile, 2000.

6 Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=MG4jdjM06UQ&t=1600s Acesso em 27 Nov 2017

7 Ditadura de Pinochet no Chile deixou mais de 40 mil mortes, diz relatório. G1. Disponível em: G1 – Ditadura de Pinochet no Chile deixou mais de 40 mil mortes, diz relatório – notícias em Mundo (globo.com)

8 CHILE. Presidente (1970-1973: Salvador Allende). Último discurso de Salvador Allende. Santiago do Chile, 11 set. 1973. X f. Disponível em: < http://www.elcorreo.eu.org/Dernier-discours-de-Salvador-Allendele-11-septembre-1973?lang=fr>. Acesso em: 27 nov 2017

9 COELHO, 2014.

10 LOPES, 2016.

Referências

COELHO, Anelise. A Ilha Guatemalteca: O papel da polícia guatemalteca no aparato repressor do estado de 1954-1966 através das fontes do Arquivo História da Polícia Nacional (AHPN). In: CORDEIRO, Janaína; LEITE, Isabel, SILVEIRA, Osmar, REIS, Daniel. À Sombra das Ditaduras [Brasil e América Latina]. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

ANTUNES, Priscila. DOSSIÊ: HISTÓRIA DAS AMÉRICAS: POLÍTICA E CULTURA, O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet. 2007. Disponível em Acesso em 26Nov2017.

ÁVILA, Carlos F. D.. O golpe no Chile e a política internacional (1973): ensaio de interpretação. 2014. Disponível em: Acesso em 27Nov2017

LOPES, Henrique S. G.. Escola das Américas: treinamento militar e ideológico no Canal do Panamá. Revista Hydra, vol. 1, n. 2, agosto de 2016. Disponível em: Acesso em 28Nov2017

MENDES, Clécio Ferreira. O papel da Direção de Inteligência Nacional (DINA) na Ditadura Chilena. São Paulo: PUC-SP, 2016. Disponível em: Acesso em 28Nov2017.

AFP. Ditadura de Pinochet no Chile deixou mais de 40 mil mortes, diz relatório. G1. 18 agosto 2011. Disponível em: Acesso em: 28Nov2017

LECTURALIA. Roberto Bolaño. Disponível em:< http://www.lecturalia.com/autor/769/ roberto-bolano> Acesso em: 28Nov2017

ROTHER, Larry. A Chilean Writer’s Fictions Might Include His Own Colorful Past. The New York Times, 2009. Disponível em


Resenhista

Anna Clara Nascimento Gonçalves – Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: annaclaragoncalves@outlook.com.br


Referências desta Resenha

BOLAÑO, Roberto. Noturno do Chile. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004. Resenha de: GONÇALVES, Anna Clara Nascimento. O tribunal da história. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 175-181, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

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