Religiões de matrizes africanas e intolerância religiosa no Brasil | Escrita da História | 2018
A intolerância religiosa não é um fenômeno político e social que acontece exclusivamente no Brasil. Um breve panorama histórico sobre as tramas de construção dos Estados nos mostra que a intolerância religiosa foi durante a Idade Média um dos motivos das caças aos “hereges” e às “bruxas”, tal como na Era Moderna e Contemporânea seria uma das razões para perseguições a judeus, mulçumanos, cristãos ortodoxos, grupos ciganos, grupos religiosos afro-brasileiros etc. Ao nos debruçarmos sobre o contexto histórico americano, especificamente o brasileiro, chamamos atenção para o fato de que, entre estes grupos, os mais perseguidos por motivo de intolerância religiosa são de religiões de matrizes africanas. 1
A intolerância religiosa, construída no Brasil, faz parte de um processo dicotômico de dominação social, política e religiosa entre a “boa” e a “má” religião, no qual os adeptos das religiões africanas, com suas culturas e representações, configuram um mal a ser combatido pelos não adeptos destas religiosidades desde o período colonial. Portanto, os artigos aqui reunidos buscam entender as configurações históricas da intolerância religiosa no Brasil, em especial contra os segmentos religiosas de matrizes africanas. O Dossiê “Religiosas de Matrizes Africanas e Intolerância Religiosa no Brasil” tem a intenção de contribuir para os estudos, as pesquisas e os debates sobre o tema.
Os dois artigos que abrem a edição são dedicados a pensar as políticas de promoção da igualdade racial. Constatando o crescimento do conservadorismo a partir de 2013, o graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Yego Viana Santos, procurou abordar o panorama atual da aplicação das leis n os 10.639/2003 e 13.298/2007, relacionadas ao ensino de História Africana nas escolas, como forma de remediar o avanço da intolerância e do racismo no Brasil.
Ainda na seara das políticas de promoção igualdade, Caio Isidoro Silva, mestrando na Unifesp, analisou os relatórios da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o relatório final do I Congresso Nacional de Promoção da Igualdade Racial de forma a compreender de que maneira o poder público agiu, entre 2003-2006, na promoção da igualdade racial, mais especificamente na promoção da tolerância religiosa.
O terceiro artigo do dossiê, elaborado por Rodrigo Pereira e demais pesquisadores envolvidos na escavação do Terreiro de Gomeia, possui uma dupla importância; ao mesmo tempo que promove os estudos arqueológicos brasileiros, aponta de que maneira a arqueologia pode contribuir na compreensão das religiões de matriz africana. A partir da escavação do sítio Terreiro de Candomblé da Gomeia, localizado em Duque de Caxias, o grupo buscou enfatizar o estudo da cultura material como meio de combate à intolerância, sobretudo por meio do conhecimento dessas religiões, como o Candomblé.
O artigo de Gilmara Santos Mariosa e Claudia Mayorga, o quarto neste dossiê, traz a história de gênero para o entendimento do espaço ocupado pelas mulheres na hierarquia sacerdotal do candomblé. A partir da análise interseccional das relações hierárquicas existentes dentro e fora da religião, as pesquisadoras concluíram que o papel autônomo e independente dessas mulheres, ao longo do processo de desenvolvimento da religião e nos enfrentamentos machistas e racistas aos quais eram suscetíveis, possibilitou o seu empoderamento.
O quinto artigo, de autoria de Lucas Obalera de Deus, discute os episódios recentes de perseguições religiosas conduzidas pelas Igrejas neopentencostais do Rio de Janeiro. O autor analisa cinco casos de perseguição religiosa, incluindo o da adolescente alvejada por uma pedra quando voltava do terreiro vestindo trajes religiosos. Lucas Obalera de Deus parte do pressuposto de que o racismo como uma categoria analítica nos ajuda a compreender o problema da intolerância.
Por fim, Lucimar Felisberto Santos retorna ao período colonial para demonstrar como foi realizada a associação do diabo com as religiões de matrizes africanas. A autora defende que a imagem do Diabo, trazida da Europa pelos colonizadores, foi fundamental para a marginalização das religiões africanas e indígenas, uma construção que permanece até os dias de hoje.
Dando prosseguimento ao número, o artigo que abre a seção livre aborda o papel das artes plásticas na construção do nacionalismo mexicano no pós-revolução. Rafael Rodrigues, da Universidade Autônoma Metropolitana do México, analisa o Movimento Muralista no México para destacar como o contato do movimento nacionalista do século XX com o marxismo e seu arcabouço teórico – a saber, luta de classes, materialismo e a dialética – modificou a compreensão do papel indígena na sociedade, promovendo-os de meros coadjuvantes do passado mexicano para o centro da nação no pós-revolução.
O artigo de Lucas Andreto buscou explorar as diferentes visões que comunistas e anarquistas possuíam sobre a participação dos trabalhadores nas disputas eleitorais das primeiras décadas da República. O autor analisou jornais, programas partidários e entrevistas para delinear seus fundamentos e suas diferenças.
O terceiro artigo que compõe a seção livre, escrito por Caio Paião, mestre pela Universidade Federal do Amazonas, analisou o movimento operário marítimo no Amazonas na segunda metade do século XX. O autor buscou compreender as formas de resistências e a luta dos trabalhadores por meio da imprensa operária e da imprensa convencional, principal fonte de deslegitimação do movimento.
O artigo de Airton Souza, graduando pela Unifesp, encerra a seção de artigos livres para tratar da história das emoções. Ao pesquisar os diários dos viajantes que cruzaram o oceano Atlântico entre os séculos XVI e XVII, o autor buscou identificar as maneiras pelas quais o medo era retratado nesses escritos e suas consequências. Para sua análise, utilizou duas manifestações associadas ao medo: a religião e os motins. A primeira relaciona-se à fúria marítima como manifestação da punição Divina; e a segunda, à eminência da morte em contexto de ruptura da ordem dentro das embarcações.
Esta edição se encerra com duas resenhas. A primeira, de Maurício Silva, professor da Universidade Nove de Julho, trata do livro de Roberto Camargos, Rap e política. Percepções da vida social brasileira, publicado em 2015 pela editora Boitempo. E a segunda, publicada por Vitor Leandro Souza, doutorando pela PUC-RJ, aborda o livro África e Brasil. História e Cultura, de autoria de Eduardo D’Amorin, publicado pela editora FDT, também em 2015.
Desejamos a todos uma excelente leitura.
Nota
1 As expressões “religiões de matrizes africanas” ou “religiões afro-brasileiras” referem-se aos grupos culturais e religiosos que passaram pelo processo de ressignificação interna e externa durante o período das diásporas africanas.
Organizadores
Mariana Gino
Fábio Duque
Referências desta apresentação
GINO, Mariana; DUQUE, Fábio. Apresentação. Escrita da História, v.5, n.9, p.11-14, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]