A Sacred Space is Never Empty: a history of soviet atheism | Victoria Smolkin

O anticomunismo, como conjunto de ideias e atividades de oposição e combate àquilo que é entendido como comunismo – no caso, a destruição da propriedade privada, da família, das liberdades políticas, econômicas e da religião -, é tema presente em nossa historiografia. Ricardo Antonio Souza Mendes (2004), Carla Simone Rodeghero (2002) e Rodrigo Patto Sá Motta (2020) possuem estudos sobre esse fenômeno na história do Brasil. No trabalho desses autores é possível encontrar constante associação por parte das forças anticomunistas entre comunismo e ateísmo, sendo a União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS) posta como grande antítese de valores que essas forças defenderiam: a fé e tradição cristã da sociedade brasileira.

Contudo, sobre a relação entre o comunismo da URSS e o ateísmo, a historiografia brasileira carece de pesquisas que elucidem o que teria sido a história do ateísmo soviético. Uma oportunidade para sanar essa lacuna é o livro da historiadora Victoria Smolkin, publicado em 2018 nos EUA, com o título A Sacred Space is Never Empty: a history of soviet atheism (em tradução livre: Um espaço sagrado nunca está vazio: a história do ateísmo soviético).

Victoria Smolkin é professora de História na Universidade de Wesleyan, situada em Middletown, no estado norte-americano de Connecticut, e desenvolve pesquisas sobre o Leste Europeu, a Eurásia, o comunismo, a Guerra Fria, o ateísmo e a Religião na Rússia e ex-União Soviética. A Sacred Space is Never Empty é fruto de investigação realizada no meio acadêmico dos Estados Unidos, mas amparada em material de arquivos consultados na Rússia, entre os quais: Arquivo do Estado da Federação Russa, Arquivo do Estado de História Política e Social Russa, Arquivo do Estado Russo de História Recente e Museu do Estado de História da Religião.

A proposta do livro é ser um estudo da história do ateísmo soviético desde a Revolução Russa de 1917 até a dissolução da União Soviética em 1991. Para isso, ele foi estruturado em sete capítulos após o texto da introdução, A saber: 1) The Religious Front: militant atheism under Lenin and Stalin; 2) The Specter Haunting Soviet Communism: antireligious campaigns under Khrushchev; 3) Cosmic Enlightenment: soviet atheism as Science; 4) The Ticket to the Soviet Soul: soviet atheism as worldview; 5) “We Have to Figure out Where We Lost People”: soviet atheism as social Science; 6) The Communist Party between State and Church: soviet atheism and socialist rituals; 7) The Socialist Way of Live: soviet atheism and spiritual culture. Já o título da conclusão é Utopia’s Orphan: soviet atheism and the death of the communist project.

Na introdução do livro, Victoria Smolkin apresenta três principais narrativas sobre a religião e o ateísmo no comunismo soviético. A primeira narrativa, dominante durante o período da Guerra Fria, teve como foco a repressão antirreligiosa da URSS e foi produzida por estrangeiros que visitaram o país nos primeiros anos após a Revolução de 1917 e por exilados russos. A segunda narrativa ganhou força nos anos imediatamente posteriores à dissolução da União Soviética em 1991, quando estudiosos tiveram acesso aos arquivos estatais. Em uma conjuntura marcada pela ênfase na análise da cultura nas ciências sociais, as pesquisas examinaram o ateísmo soviético como parte de um projeto mais amplo de utopia e revolução cultural. A terceira narrativa, proveniente da Antropologia, Sociologia e estudos religiosos, buscou interpretar a política soviética para a religião como modalidade de modernidade secular, no sentido de um secularismo como projeto político e distinto da secularização como processo social.

As três narrativas mostram características importantes do projeto soviético: 1) ele foi repressivo do início ao fim, embora os objetos da repressão tenham mudado ao longo das décadas; 2) a utopia soviética incluiu o ateísmo; 3) esse projeto foi “uma versão particular da modernidade secular” (SMOLKIN, 2018, p. 10) [tradução do autor].1 No entanto, para Victoria Smolkin, ver essas narrativas como histórias distintas, em vez de entrelaçadas, mascara as complexidades e obscurece contradições essenciais para entender como o regime soviético se relacionou com a religião e com o ateísmo e como essas abordagens mudaram no decorrer das décadas.

Além da ponderação sobre as narrativas, a autora destaca, na introdução de A Sacred Space is Never Empty, o conceito dado pelo regime soviético à religião e ao ateísmo. No que concerne à primeira, é destacado que a obra de Marx (1818-1883) a interpretou a partir da concepção filosófica do materialismo histórico. Nesse caso, religião representaria o “ópio do povo” ao mascarar a dominação dos donos dos meios de produção e prometer justiça social no céu. Já a abordagem de Lenin (1870-1924), líder da Revolução Russa, foi ditada por objetivos políticos mais práticos; assim, destacou a religião no debate sobre a separação Igreja e Estado. Mas uma conclusão dessas análises foi que, sem a base econômica capitalista, as instituições religiosas que exploravam as massas morreriam, dando lugar ao ateísmo (SMOLKIN, 2018).

Um dos argumentos que Victoria Smolkin apresenta para ressaltar a particularidade de sua análise é que a relação do Estado e do Partido Comunista da URSS com a religião e o ateísmo mudou a partir das situações específicas das conjunturas históricas. No primeiro capítulo, enfatiza a preponderância do viés político nas décadas de 1920 e 1930, quando as instituições criadas após a Revolução Russa estavam em processo de consolidação. A Igreja Ortodoxa foi vista nesse período como ameaça política dado seu vínculo orgânico com o regime czarista, extinto em 1917. As medidas criadas pelos bolcheviques nesse período tinham um alvo preferencial na Igreja Ortodoxa, ainda que não exclusivo: em 1918, foi instituída a separação entre Igreja e Estado e, em 1929, decretos limitaram a atividade religiosa e litúrgica ao interior das Igrejas. Outras ações adotadas pelo regime soviético foram promoção da educação secular, criação de centros de cultura e propaganda antirreligiosa, esta com suporte da Liga dos Militantes Sem-Deus, entidade criada na década de 1920 para promover o ateísmo militante. A autora faz evidenciar que, em 1927, a Igreja Ortodoxa capitulou e jurou fidelidade ao novo regime político. Porém, os bolcheviques tiveram menos sucesso no combate à religiosidade popular, socialmente mais resistente (SMOLKIN, 2018).

Em 1943, no cenário da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), Stalin se reaproximou da Igreja Ortodoxa para usá-la como força espiritual na luta contra o nazismo e, assim, pôs fim ao enfoque político. Na sequência, os capítulos dois, três e quatro de A Sacred Space is Never Empty destacam nova dinâmica do regime soviético com a religião e o ateísmo após a morte de Stalin em 1953 e a ascensão de Nikita Kruschev ao poder político. Como a Igreja Ortodoxa foi vista como instituição patriótica na 2ª Guerra Mundial, a religião deixou de ser encarada preponderantemente pelo prisma político e passou a ser pautada pelo prisma ideológico: “o ateísmo soviético teve de renunciar às suas origens militantes e se tornar científico” (SMOLKIN, 2018, p. 83). No governo de Kruschev, que durou até 1964, o Partido Comunista buscou difundir de modo mais amplo, na sociedade, uma visão de mundo científico-materialista empregando duas estratégias: por um lado, criando obstáculos legais para atividades religiosas e, por outro lado, propagando os postulados científicos do ateísmo marxista-leninista via educação, imprensa e leituras públicas. Nos anos 1950/60, o sucesso do programa espacial soviético também foi utilizado para mostrar a superioridade da ciência sobre a religião.

Os capítulos cinco, seis e sete de A Sacred Space is Never Empty são dedicados a explicar o viés espiritual atribuído ao binômio religião-ateísmo pelo regime soviético durante o governo de Leonid Brejnev (1964-1982). Aos olhos dos governantes comunistas, intrigava a persistência da religiosidade entre a população soviética, inclusive entre membros do Partido Comunista do país. Para remobilizar o trabalho ateísta, foi criado o Instituto do Ateísmo Científico em 1964; além disso, atentou-se aos estudos na área das ciências sociais, posto que demonstravam a religião como forte apelo afetivo entre as pessoas e presente em vários rituais da vida cotidiana.

Diante disso, “o trabalho ateísta teve que se esforçar para ser uma síntese de razão e emoção” (SMOLKIN, 2018, p. 157) [tradução do autor].2 Assim, as ações do governo soviético deixaram a repressão em segundo plano e deram atenção a rituais como nascimento, casamento e morte. O objetivo era duplo: “enfraquecer a igreja e a religião, minando os ritos religiosos, e obter apoio para o partido e o comunismo, efetuando a transformação ideológica e espiritual da sociedade soviética” (SMOLKIN, 2018, p. 177) [tradução do autor].3 Algo a destacar nesses capítulos é a presença da iconografia sobre os rituais socialistas.

Na conclusão do livro, Victoria Smolkin oferece uma interpretação sobre o que teria levado o ateísmo soviético a fracassar em alcançar seus objetivos. De acordo com a autora, nos esforços para refazer o mundo, os bolcheviques tentaram remover a religião dos “espaços sagrados” da vida soviética, renunciando às instituições religiosas, sua teologia e seu modo de vida, para colocar no lugar o Partido Comunista da URSS e o ideário marxista-leninista. Contudo, “a incapacidade do ateísmo de abordar questões existenciais, atender às necessidades espirituais e produzir convicção ateísta entre as massas criou a percepção de que o ateísmo era um espaço vazio em vez de uma categoria significativa” (SMOLKIN, 2018, p. 241) [tradução do autor].4

Os desafios enfrentados pelo ateísmo soviético se agravaram nos anos 1960/70 perante uma juventude que se mostrou cada vez mais indiferente ao ateísmo e à religião. Algo inadmissível, uma vez que “o ateísmo soviético não era sobre secularização ou secularismo, mas sobre conversão” (SMOLKIN, 2018, p. 241) [tradução do autor].5 Para Victoria Smolkin, o ateísmo soviético não foi secular porque o secularismo tolera a indiferença e a crença religiosa como assuntos privados. Não sendo a religião aceitável a longo prazo, o ateísmo soviético encarava as posições de indiferença e neutralidade como afronta ao ideário marxista-leninista.

Após a ascensão de Gorbachev na URSS em 1985, houve nova mudança nas relações do Estado com a religião e o ateísmo: enquanto o Partido Comunista se manteve fiel ao ateísmo como parte de sua visão de mundo, Gorbachev se reaproximou da Igreja Ortodoxa e permitiu que ela voltasse a atuar em espaço público [vide as celebrações do milênio de cristianização da Rússia em 1988]. Essa atitude visava consolidar a autoridade política e ideológica de Gorbachev diante da constatação do abismo existente entre o Partido Comunista e a sociedade soviética. Mas o que ocorreu, por fim, é que “o ateísmo soviético foi abandonado no divórcio entre partido e estado, tornando-se órfão da utopia” (SMOLKIN, 2018, p. 245) [tradução do autor].6

A Sacred Space is Never Empty se mostra excelente fonte para historiadores brasileiros conhecerem a história do ateísmo na antiga URSS; tem-se, assim, percepção para além dos discursos anticomunistas tendenciosos que se fazem presentes no debate público brasileiro até hoje. Afinal, trata-se de pesquisa amparada em fontes produzidas pelo estado bolchevique, pela militância ateísta do Partido Comunista da URSS – como jornais, revistas, fotografias, cartazes de propaganda etc. – e documentos da Igreja Ortodoxa. Como nota final, destaca-se que a persistência da religiosidade na vida soviética ao longo das décadas ajuda a rebater a tese que mostra a URSS como estado totalitário com domínio absoluto sobre a vida das pessoas.

Notas

1 No original: “[…] or particular version of secular modernity”.

2 No original: “Atheist work had to strive toward a synthesis of reason and emotion”.

3 No original: “to weaken the church and religion by undermining religious rites, and to buttress the party and Communism by effecting the ideological and spiritual transformation of Soviet society”.

4 No original: “Atheism’s inability to address existential questions, meet spiritual needs, and produce atheist conviction among the masses created the perception that atheism was an empty space rather than a meaningful category”.

5 No original: “Soviet atheism was about not secularization or secularism but instead conversion”.

6 No original: “Soviet atheism was abandoned in the divorce of party and state, becoming utopia’s orphan”.

Referências

MENDES, Ricardo Antonio Souza. As direitas e o anticomunismo no Brasil: 1961-1965. Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 10, n. 1, p. 79-97, 2004.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). Niterói: Eduff, 2020.

RODEGHERO, Carla. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 463-488, 2002.

SMOLKIN, Victoria. A Sacred Space is Never Empty: a history of soviet atheism. New Jersey: Princeton University Press, 2018.


Resenhista

Ricardo Oliveira da Silva – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: ricardorussell@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1274-9003


Referências desta Resenha

SMOLKIN, Victoria. A Sacred Space is Never Empty: a history of soviet atheism. New Jersey: Princeton University Press, 2018. Resenha de: SILVA, Ricardo Oliveira da. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.23, n.41, p.203-207, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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