A História do Tempo Presente emerge das incertezas e durezas de um tempo próximo, com feridas abertas a serem tratadas. Um passado que ainda não está acabado e no qual os sujeitos históricos são um “ainda aí”. Defini-la pode causar dissensos e confusões: consiste numa concepção teórica, muitas vezes confundida com um recorte temporal. As pesquisas históricas dedicadas ao estudo de eventos temporalmente próximos ao presente de produção do historiador/a são, em algumas oportunidades, interpretadas equivocadamente, como se tal proximidade qualificasse por si só um estudo inscrito no âmbito da História do Tempo Presente.
Como concepção historiográfica, a História do Tempo Presente está relacionada à forma como lidamos com o tempo e estabelecemos relações temporais mediadas por operações próprias do mundo pós-guerra: as memórias, seus usos e abusos; os testemunhos vivos de um passado-presente; os monumentos e homenagens públicas; as mídias e as comemorações. Essa perspectiva está associada à intenção de compreender os diversos passados que, de alguma maneira, ainda se fazem presentes. Compartilhamos, assim, a perspectiva apresentada pelo historiador François Dosse, para quem a singularidade do tempo presente reside “na não contemporaneidade do contemporâneo” (DOSSE, 2012, p. 6), em um passado que ainda circula pelos labirintos das temporalidades e que segue pulsante na atualidade.
Este campo de estudos emergiu na década de 1970, quando a sociedade europeia passou a lidar com os traumas ainda vivos da Segunda Guerra Mundial, em que colocavam a dor no centro do debate e promoviam a necessidade de lidar com o passado que custava a passar. Nesse contexto e, ainda, numa França que havia lidado com a força da juventude há poucos anos, em 1968, foi inaugurado o Instituto de História do Tempo Presente, no qual atuaram nomes importantes do arcabouço teórico deste campo de estudos, tais como François Bédarida e Henry Rousso. Nos anos seguintes, o mundo enfrentava uma Guerra Fria e as identidades nacionais começavam a se esfacelar. As certezas de outrora passaram a ser questionadas e a instabilidade tomou seu lugar. Era preciso, pois, que a história tomasse assento na vida pública para dar sentido às fragmentações identitárias que ali se apresentavam.
Há quem afirme, pautado nos cânones da disciplina, que esse não é o papel do historiador/a. Contudo, esses profissionais frequentemente – e cada vez mais – têm sido chamados para participar do debate público sobre o passado e, também, sobre o efeito de certos passados no nosso presente. Temas sensíveis como o Holocausto, as Ditaduras Militares na América do Sul e o Apartheid na África do Sul, que geraram políticas conciliatórias diversas, são exemplos importantes das potencialidades de uma História do Tempo Presente.
A cientificidade da historiografia, nos marcos da História do Tempo Presente, é colocada à prova constantemente, pois lida diretamente com processos em aberto e, especialmente, com as testemunhas ainda vivas. Testemunhas que podem contestar a história narrada pelo historiador/a a partir da análise das fontes. Não existem razões, no entanto, para considerarmos a História do Tempo Presente como “outra história”, com menor ou nenhum grau de cientificidade. Assim como a história em seu sentido mais amplo, a HTP é municiada de métodos, fontes e teoria. Como nos recordam os historiadores Serge Bernstein e Pierre Milza, “a história do tempo presente é primeiramente e antes de tudo história” (BERNSTEIN; MILZA, 1999, p. 127). Os holofotes devem estar, como noutras perspectivas, no tempo, no estudo do tempo.
A História do Tempo Presente se situa como uma maneira de compreender e problematizar o tempo presente, apontando-o como historicizável. Isso não chega a ser surpreendente, afinal, basta retornar a clássica definição realizada pelo historiador Marc Bloch: “a História é o estudo do homem no Tempo” (BLOCH, 1997, p. 55). Com essa afirmação, Bloch buscou romper com a ideia de que a história era um estudo do passado, preocupando-se em estudar permanências e rupturas que ocorreram em determinados recortes temporais. Essa concepção de história está presente em diversas pesquisas realizadas no Brasil e no mundo, tais como os artigos reunidos neste dossiê, que compreendem a História do Tempo Presente, principalmente, como campo vasto e aberto para as pesquisas historiográficas, para além de recortes temporais definidos. As pesquisas que se centram nessa concepção apreendem a necessidade de estudar a forma como as sociedades e seus indivíduos são afetados pelo passado e, muitas vezes, condicionam seu presente e seu futuro a partir das experiências passadas.
Organizamos os artigos que compõem o dossiê em núcleos, buscando aproximar os trabalhos por meio de temáticas centrais em comum. A primeira série de artigos versa sobre questões da esfera política, principalmente quando atrelado ao contexto de renovação e alargamento deste campo, como nos propôs René Rémond (1997). O artigo intitulado “Partido Operário Comunista (POC): uma história do tempo presente” foi escrito pelo historiador Celso Ramos Figueiredo Filho. Num primeiro momento, apresenta o Partido Operário Comunista (POC), organização de esquerda, atuante entre os anos de 1968 e 1971, período correspondente aos chamados “anos de chumbo” da ditadura brasileira. Na sequência, a narrativa se encaminha para uma reflexão sobre os aspectos teóricos-metodológicos da História do Tempo Presente que, ao serem entrelaçados com os aportes das fontes orais, resultam na incorporação da memória e da experiência pessoal dos atores sociais envolvidos. Uma vertente que explorou as individualidades, os condicionantes e as motivações particulares dos membros do POC e que acabou por apontar uma outra dimensão, diferente daquela que restringiu o acontecimento a uma mera fatalidade ou ao fato em si.
O tema central do segundo artigo – que compõe este núcleo político – é a corrupção brasileira, mais precisamente os atos ilícitos praticados por políticos brasileiros da esfera federal entre 2004 e 2015. O artigo “A corrupção no Brasil contemporâneo: um estudo sobre os crimes políticos federais no Brasil (2004-2015)” utilizou como fontes históricas os inquéritos oriundos do Acervo Virtual do Supremo Tribunal Federal. O autor, Francisco Rente Neto, a partir desse conjunto documental, avaliou as principais denúncias: crime de lavagem de dinheiro público e formação de quadrilha, prática de licitação irregular e, por último o crime de captação ou uso ilícito de recursos eleitorais. Essas denúncias, segundo o autor, sinalizam a confusão que se faz entre o que patrimônio público e o patrimônio privado, quando os representantes “do povo” se apropriam de recursos que deveriam ser destinados à saúde, à educação, ao transporte, à segurança e a tantas outras demandas públicas.
O segundo núcleo é composto por três textos que versam sobre censura, repressão e resistência em tempos ditatoriais. Natália Martins Besagio é autora do artigo “Cálice: censura e violência na Ditadura Militar brasileira”, cujo objetivo central foi apresentar duas faces de uma mesma moeda em relação ao período ditatorial brasileiro. De um lado, o quadro de oposição ao Regime, focado em uma pequena parcela populacional que teve sua liberdade de expressão cerceada e que, por consequência, encampou um projeto de resistência. Do outro, um aparato repressivo composto por uma complexa rede de órgãos com poderes quase irrestritos, que materializava a barbárie por meio de censuras, prisões e torturas. Nesse contexto, a autoria também apresenta um quadro que esquematiza as etapas de apuração de informações relacionadas aos sujeitos considerados “subversivos” e as etapas subsequentes de violência, tortura e, em alguns casos, morte.
O livreto Cancionero de la Nueva Canción Chilena e um olhar apurado resultaram no artigo “Canções para não serem esquecidas: os rastros da Nueva Canción Chilena na memória da resistência cultural brasileira nos anos 1970”. O artigo, de autoria de Rodrigo Lauriano Soares, teve por intuito central explorar a presença da Nueva Canción Chilena na memória da resistência cultural brasileira por meio do livreto produzido no ano de 1976. O que levou esse material, produzido na Itália, que continha músicas de vários artistas chilenos, a ser arquivado no Brasil? Esse foi o trajeto percorrido pelo autor no decorrer do artigo ao apontar meios para pensar fluxos, redes e trocas culturais entre países do Cone Sul no contexto dos anos de 1970.
A construção do conceito de comunista foi alvo de reflexão do artigo “Ditaduras no Cone Sul: um debate conceitual e as representações do passado” de autoria de Leonardo Lopes de Mendonça. As ditaduras implantadas no Cone Sul no decorrer das décadas de 1960 e 1970, segundo o autor, se assemelhavam por seu caráter reacionário e por ter um inimigo em comum: o comunismo. Dentro da Doutrina da Segurança Nacional, os chamados subversivos eram inseridos na categoria “comunista” indiferentemente se fossem operários, camponeses, jornalistas, estudantes, intelectuais, artistas, sindicalistas. O autor estabelece um paralelo entre este contexto e o do Brasil em 2021, e aponta que em certo sentido há uma onda conservadora que utiliza o rótulo de comunista para qualquer pessoa que conteste as querelas sociais.
Memória, comemoração e celebração compõem a temática do terceiro núcleo deste dossiê. Estes elementos se tornaram, nas últimas décadas, objetos centrais no campo da História do Tempo Presente, principalmente em países que vivenciaram acontecimentos traumáticos. As comemorações, as rememorações e o não esquecimento tendem a demonstrar que os processos de construção de uma memória é objeto de disputa por diferentes grupos sociais. O primeiro artigo deste núcleo foi escrito por Carlos Gilberto Pereira Dias e teve como intuito refletir sobre memória e história nos escritos de Svetlana Aleksiévitch e Régine Robin. A primeira autora, por meio da literatura documental, nos aponta que a memória tem cor e associa o tom cinza às memórias de Guerra; já Robin restaura o passado na autoficção e afirma que o passado neva sobre nós. Ambas percorreram o caminho da escrita para a exposição de traumas, das chamadas lembranças subterrâneas, com a intenção de salvar essas memórias do esquecimento, ou como afirma o próprio título do artigo: “História e Memória: a persistência das lembranças impedidas”.
Na narrativa “Políticas de tempo, contemporaneidade e história do tempo presente: reflexões a partir das comemorações dos “500 anos do Brasil” (2000)”, Pedro Henrique Batistella entrelaça memória, tempo e política ao analisar alguns manifestos divulgados por organizações indígenas e o texto intitulado “O eterno retorno do encontro”, de Ailton Krenak. As disputas de memórias e os usos do passado em torno da referida comemoração são centrais para o autor refletir sobre noções temporais e políticas do tempo. Os usos do passado no cenário das comemorações dos 500 anos da chegada dos portugueses nessas terras foi alvo de disputas no campo político e também da memória. Nesse contexto, dentre as diversas facetas envoltas ao cenário de comemoração, surgiram iniciativas de protesto contrárias à organização das encenações comemorativas oficiais, como por exemplo, o movimento Brasil Outros 500, que apontava a perspectiva indígena desse acontecimento histórico.
O quarto núcleo apresenta debates relacionados à categoria gênero, aos direitos das mulheres e aos feminismos. Um dos pontos cruciais dos feminismos consiste na defesa dos direitos das mulheres, demanda analisada no artigo “A IV Conferência Mundial Sobre a Mulher e as estratégias do Estado brasileiro para implementar a igualdade de gênero”, de autoria de Glenda Lunardi. O texto se centra no evento em questão – organizado pela ONU, em 1995 – estabelecendo relações entre o documento da plataforma de ação da conferência e os seus desdobramentos nas políticas públicas brasileiras como, por exemplo, sua influência na criação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, em 2003. Além disso, Lunardi aponta a constante instabilidade relacionada às conquistas dos direitos das mulheres e traz à tona a realidade brasileira que, nos últimos anos, teve suas estruturas boicotadas pelo próprio governo federal.
A narrativa “O corpo como implosão do mundo: ontologia do presente, imaginação literária feminista e fabulações eróticas” foi escrita a seis mãos. Gabriela Simonetti Trevisan, Fábio Gonzaga Gesueli e Varlei Rodrigo do Couto são autores do artigo que cruzou literatura e a categoria “Ontologia do Presente” de Michel Foucault. Nesse sentido, alguns textos de autoras como Hilda Hilst, Júlia Lopes de Almeida, Virginia Woolf e Chrysanthème foram utilizados para pensar o corpo como espaço de resistência. A crítica feminista embasa a problematização de novas formas de subjetividades, transgressões, práticas de liberdade e erotismo, resultando na produção de novos imaginários sociais, principalmente quando relacionadas às práticas já normatizadas pela sociedade ocidental e ao seu imaginário cristão.
Migrar, experimentar novas culturas, manter os laços de origem são processos que compõem o cenário mundial atual e que conquistaram espaço em investigações acadêmicas. Os textos alocados no núcleo “Cultura, identidade e migração” versam sobre esses assuntos. O primeiro deles, intitulado “A Teoria do Estado de Bourdieu e o não-lugar do refugiado” foi escrito por Suzyanne Valeska Maciel de Sousa e problematiza o não-lugar do refugiado através da teoria de estado de Bourdieu. A autora apresenta a hipótese de que a figura do refugiado rompe com os pressupostos do seu Estado receptor, uma vez que ele desconhece suas normas e seus padrões burocráticos, fator que pode ser interpretado como um desafio à lógica estatal. O Estado como detentor do poder simbólico deve (re)pensar algumas situações que fogem às suas regras e normatizações refletindo sobre a possibilidade de criar um ambiente não excludente, facilitando o processo de adaptação e garantindo direitos e deveres de participação em relação ao seu Estado receptor.
Vinícius Silveira Luz é autor do artigo intitulado “As identidades culturais na pós-modernidade, os regimes de historicidade moderno e presentista e a História do Tempo Presente”, o segundo desse núcleo. No decorrer do artigo, o autor apresenta o estatuto da identidade na modernidade, explicando seu processo de descentramento, essa constante fragmentação e deslocamento que resultaram no que hoje compreendemos pela identidade cultural na pós-modernidade. O autor faz ainda uma associação entre o estudo do tempo presente e as pesquisas sobre as identidades culturais. Afinal, vivenciamos um presente marcado por disputas sobre a memória, fato este imprescindível para a formação das identidades culturais; identidade fluída, individual e híbrida.
Cultura é o eixo central do último artigo do presente núcleo, escrito por André Luis Santos de Souza e André Luiz Ribeiro de Araújo. Intitulado “Lei Aldir Blanc, política cultural imaterial e folia de reis em Santa Helena de Minas (MG)”, o artigo analisa o cruzamento entre a referida lei e as ações políticas culturais voltadas para a salvaguarda da Folia de Reis na esfera municipal. A partir de entrevistas audiovisuais e análises do edital de fomento foi possível constatar a construção de uma política cultural, ações para com o patrimônio imaterial, como por exemplo, a difusão e registro sistemático da prática de Folia de Reis, resultando diretamente na preservação de uma memória coletiva e também na valorização e no reconhecimento dos foliões.
O último núcleo do dossiê aborda o contexto pandêmico e o ensino remoto. Desde o ano de 2020 nos encontramos inseridos em um cenário atípico, deixamos o contato físico de lado, operamos com distanciamento social, adiamos a realização de diversas atividades, como a frequência de espaços que até o mês de março daquele ano nos eram cotidianos. A escola foi um desses espaços. A partir daí o ensino precisou se reinventar: entrava em cena o que chamamos de ensino remoto. Esse foi o tema central do artigo “O Ensino Remoto na Educação Infantil de 0 a 3 anos: reflexões de uma História do Tempo Presente” assinado por Greiciane Farias da Silva. A autora analisa alguns aspectos relacionados a esta forma de ensino voltada à educação infantil, com público-alvo entre zero e três anos, durante a pandemia de Covid-19. O texto ressalta a importância do contato social para a aprendizagem das crianças e o quanto a escola contribui nesse processo. A autoria apresenta a escola, para além de um local de socialização, como um espaço de proteção de direitos, de onde partem inúmeras denúncias relacionadas as mais variadas formas de violência.
As páginas do Jornal Paraná Centro, imprensa local de uma cidade paranaense, foram alvo do historiador Paulo Roberto Krüger, que analisou o contexto da chamada “segunda onda” da pandemia. No artigo “Jornal Paraná Centro, informando para desinformar: as notícias sobre COVID-19 em Ivaiporã-PR”, Krüger utiliza o conceito de comunicação de massa para analisar as notícias vinculadas ao contexto pandêmico em Ivaiporã. Nesse sentido, o jornal pode ser considerado um agente político que, ao escolher posições e maneiras de informar a população sobre a COVID-19 construiu uma realidade, nas palavras do autor, que informava para desinformar.
Deixamos aqui, nessas últimas linhas, nossos mais sinceros agradecimentos aos colegas e às colegas – autores e pareceristas – que contribuíram para a confecção deste dossiê. Sem vocês essa empreitada não teria sido possível. Para a equipe editorial, deixamos um afetuoso abraço e agradecemos por compartilhar a organização deste dossiê. Aos leitores e às leitoras, investigadores/as do campo e interessados/as nas questões relacionadas às querelas da História do Tempo Presente, fica nosso convite à leitura.
Referências
BERNSTEIN, Serge. MILZA, Pierre. Conclusão. In: CHAUVEAU, Agnes e TERTART, Philippe. Questões para história do presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 127-130.
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Revista Tempo e Argumento. Revista do Programa de Pós-graduação em História, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5-22, jan./jun. 2012. Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180304012012005. RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Organizadores
Ana Luiza Mello Santiago de Andrade
Elisangela da Silva Machieski
Referências desta apresentação
ANDRADE, Ana Luiza Mello Santiago de; MACHIESKI, Elisangela da Silva. Apresentação do dossiê: Sobre as querelas do Tempo (Presente). Em Tempo de Histórias. Brasília, n. 39, p. 11-16, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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