História das Construções em territórios ibéricos: do Românico ao Barroco | História Revista | 2021
Por meio da História das Construções, temos a possibilidade de conhecer os desafios e as soluções encontradas, testadas e colocadas em prática na busca empreendida pelos seres humanos em desenvolver a atividade construtiva e enfrentar problemas relativos ao processo de construção. Problemas que passam, entre outros, pelo encontro e pela escolha de materiais – pedra, argila, madeira, por exemplo –, de técnicas e ferramentas a serem utilizadas, de modelos a serem empregados e adaptados às situações locais, de executores para a obra e pela forma de remuneração dos trabalhadores. Assim, a análise das construções permite desvendar muitos dos caminhos percorridos para que elas pudessem ser realizadas. As construções dão testemunho sobre aspectos que se fizeram presentes no tempo em que foram levantadas. Constituem, portanto, documentos que devem ser mais explorados nas pesquisas e no ensino da História.
A percepção da importância da História das Construções motivou o presente dossiê, cuja ideia inicial surgiu no âmbito do Programa de Pós Graduação/Mestrado Profissional em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas (PPGHI/UNIFAL), cujo propósito é o ensino e a pesquisa em História Ibérica Medieval. No segundo semestre de 2019, demos início, no PPGHI, a um projeto sobre o tema, que resultou na em uma disciplina optativa, ofertada no curso de graduação, intitulada Construções medievais: instrumento de aprendizado e ensino de História e de Física, ministrada em conjunto pelos professores Adailson José Rui, docente de História e coordenador do PPGHI, Luiz Eduardo Silva, docente de Ciências da Computação e integrante do PPGHI, e Artur Justiniano, docente do curso de Física e coordenador do Programa de Pós Graduação em Física da UNIFAL‐MG. A partir do desenvolvimento da disciplina, surgiu o desejo de ampliar os estudos e as discussões de alguma maneira relacionadas à História das Construções, buscando, em específico, exemplos de construções erguidas em espaços ibéricos e em áreas dominadas por Portugal e Espanha. Nesta direção, propusemos à História Revista esse dossiê, visando receber contribuições que viessem a possibilitar novos conhecimentos acerca da História das Construções, do Românico ao Barroco.
Para Amparo Graciani García (2000, p. 470), os edifícios, ao delimitar e definir o espaço, refletem o espírito e o gosto da sociedade de seu tempo, melhor que nenhuma outra forma de expressão artística. Manifestam seu significado através dos materiais com que foram construídos e pelo uso ou função para que foram levantados. Concordando com Graciani García, consideramos que a História das Construções nos possibilita o aprofundamento de conhecimentos relacionados aos materiais, às técnicas empregadas, à atuação dos construtores e, até mesmo, de quem foram esses construtores. Temas que nos auxiliam no processo de compreender os desafios enfrentados e superados pelos nossos antepassados na busca de soluções para as necessidades construtivas que se colocavam.
Os materiais, as técnicas e os construtores foram objetos de apresentações e discussões em colóquios, entre eles os que resultaram nos livros História da Construção – Os construtores (2011), História da Construção – Os materiais (2012) e História da Construção – Arquiteturas e técnicas construtivas (2011). Tais eventos, e as publicações deles derivadas, também nos inspiraram a organizar o presente dossiê, com o qual almejamos possibilitar e incentivar o desenvolvimento de estudos e discussões que venham contribuir para o conhecimento e o ensino da História Ibérica também por esse campo do conhecimento histórico.
Seguindo esta perspectiva, iniciamos o dossiê com o artigo San Xoán de Vilanova y la cuestión lombardista, de Javier López Castaneiras, que oferece uma atualização, em relação aos estudos, referente à igreja de São João de Vilanova, localizada ao norte da província galega de A Coruña. De acordo com o autor, não se tem notícia sobre a fundação dessa igreja, porém, sabe‐se que já estava erguida 1156, uma vez que a mesma consta na bula assinada pelo Papa Adriano IV (1100‐1159, papa desde 1154) como um dos principais monastérios da diocese de Mondoñedo. Na referida igreja, segundo o autor, temos uma mostra de aspectos da arquitetura lombardista, termo empregado para denominar os trabalhos de uma série de construtores itinerantes que, em inícios do século XI, começaram a colocar em prática formas arquitetônicas inovadoras. Formas que se farão presentes na igreja de São João de Vilanova, possibilitando‐nos entrar em contato com o pioneirismo lombardo presente no estilo românico empregado na Galiza.
Seguimos com o artigo Las almunias en el Mediterráneo islámico: el caso almorávide, de Maria Marcos Cobaleda. Nele, entramos em contato com uma temática pertencente ao mundo islâmico presente na Península Ibérica ao longo do período almorávida. De maneira específica, a autora apresenta resultados preliminares de uma pesquisa referente à existência, tanto no norte da África como em al‐Andaluz, de almunias, isto é, espaços de produção agrícola com ricas construções rodeadas de jardins e hortos pertencentes a linhagens aristocráticas, na época almorávida.
A temática islâmica se faz presente também no terceiro artigo que integra o dossiê. Por meio do tema Recuperación de patrimonio arquitectónico doméstico en el Albaicín de Granada (España). Principios de transformación de viviendas mudéjares a viviendas sociales, Maria de Lourdes Gutierrez Carrillo nos apresenta a reabilitação arquitetônica como meio que possibilita conectar dois momentos históricos específicos, um pertencente ao século XVI e outro ao século XXI. Para tanto, apresenta‐nos um estudo referente à ampliação da vida útil das construções erguidas pelos muçulmanos que permaneceram vivendo em território cristão após a conquista do reino de Granada pelos Reis Católicos.
Seguindo também a perspectiva de valorização e preservação do patrimônio histórico e possibilitando‐nos entrar em contato com a História das Construções, temos o quarto artigo que integra este dossiê. Algumas considerações sobre as transformações da Braga romana para a medieval é o tema do artigo de Roberta Alexandrina da Silva e Claudio Umpierre Carlan. Nele, os autores apresentam‐nos as várias memórias da cidade de Braga. Para tanto, fazem uso dos resultados obtidos pelo Projeto de Salvamento de Bracara Augusta, realizado pela Universidade do Minho, na década de 70 do século passado. Destacam especificidades referentes à dinâmica urbana da cidade que, mediante os trabalhos da arqueologia, possibilitam identificar características quanto ao período romano e ao medieval vivenciados pela cidade.
Partilhando da ideia de que os edifícios são, também, símbolos que refletem o espírito e o gosto da sociedade de seu tempo, Maria de la Encarnación Cambil Hernandez, no artigo La Catedral de Guadix. Historia, enigmas y peculiaridades apresenta‐nos uma pesquisa referente ao processo de construção da Catedral de Guadix, cidade espanhola localizada no centro‐leste da província de Granada. Tal catedral foi construída no período que se estende do século XVI ao XVIII. A autora tem como propósito possibilitar que tenhamos uma aproximação à história da catedral, permitindo, com isso, que conheçamos as etapas do seu processo de construção. Segundo Cambil Hernandez, apesar dos numerosos trabalhos de pesquisa publicados e da abundante documentação, existem ainda, em nossos dias, enigmas a serem conhecidos, assim como peculiaridades que fazem da catedral de Guadix uma das mais belas do patrimônio histórico artístico da Andaluzia. A catedral é, segundo a autora, “um edifício cheio de segredos, novidades e soluções construtivas realizadas com grande habilidade técnica, através das quais os artífices souberam unir e harmonizar os elementos das fases construtivas gótica, renascentista e barroca, fazendo que, à primeira vista, passem despercebidas.
Verificar e analisar os símbolos presentes nas construções foi o objeto de trabalho de Rubén Sánchez Guzmán e António Rafael Fernández Paradas que, para elaborar o artigo Uniendo caminos, contando historias: el puente en España en la época Moderna, valores simbólicos e iconográficos, analisaram 26 pontes de complexa estrutura arquitetônica construídas na Espanha ao longo da Idade Moderna. Para os autores, as pontes, bem como os elementos nelas presentes e a carga simbólica que possuem, expressam a sociedade que as construiu. A maioria das pontes analisadas são, em virtude das imagens de santos nelas presentes, uma continuação da sacralização do espaço urbano. A presença de imagens de santos – seja do padroeiro do local ou de algum santo importante para a região – tinha por finalidade proteger a cidade. Mediante a busca de respostas e as respostas propriamente ditas para uma série de questões que os autores fazem, visando o desenvolvimento da pesquisa, temos a oportunidade de conhecer os valores simbólicos e iconográficos presentes nas pontes, e com isso ampliarmos o nosso conhecimento, principalmente, em relação ao tempo em que foram construídas.
Com o artigo El oficial Juan de Robles y su papel en la definición del modelo constructivo de las iglesias de doctrina neogranadinas, Guadalupe Romero Sánchez nos faz cruzar o Atlântico e conhecermos alguns aspectos dos desafios construtivos vivenciados no território que, no período colonial, ficou conhecido com o nome de Nova Granada. No estudo que nos apresenta, a autora tem como meta oferecer‐nos uma reconstrução da atividade realizada pelo oficial Juan de Robles (sec. XVI) no território central neogranadino. Com isso, visa compreender o papel desempenhado por ele na definição de um modelo construtivo que oferecesse qualidade e que fosse duradouro. Juan de Robles, em função das suas ações e projetos, promoveu uma alteração na prática construtiva no decorrer do século XVI.
A apresentação de modelos de construções adotadas pelos espanhóis na América é também tema desenvolvido por Ewa Kubiak, que, por meio do artigo El modelo arquitectónico de iglesia misionera jesuita en el Virreinato del Perú: entre lo global y lo local, nos oferece a análise de algumas construções feitas pela Companhia de Jesus na Colombia, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. A autora destaca elementos globais da arquitetura missionária desenvolvida pelos jesuítas e, também, aspectos que deixam claro a diversidade quanto as especificidades presentes nas construções. Trata também de aspectos como o processo de construção em si, a sobrevivência de tradições indígenas, o uso de formas e materiais e a variedade de decorações.
Com o artigo O contexto social da produção arquitetônica e artística nas Minas Gerais no início do século XVIII, Maria do Carmo Pires nos oferece um estudo referente à estruturação dos ofícios mecânicos em Portugal, destacando a transplantação deles para o mundo minerador do início do século XVIII. Trata também, das redes de sociabilidades criadas pelos diversos grupos que habitaram a região. Conforme apresentado pela autora, os ofícios mecânicos eram necessários em terras mineiras, e, a partir deles, foram feitas adaptações que possibilitaram a realização de construções que atendiam as necessidadesimpostas em virtude do contexto social local. A autora apresenta‐nos também a trajetória de Manuel de Matos e Antônio Rodrigues Belo, dois artistas/artífices do Barroco Mineiro ainda pouco conhecidos, porém, cujas obras presentes na Igreja Matriz Nossa Senhora de Nazaré, em Cachoeira de Campo, no estado de Minas Gerais, revelam as suas grandiosidades.
Desejamos ótima leitura. Que ela contribua para abrirmos novos caminhos para o ensino e a pesquisa em História Ibérica.
Referências
GARCIA, Amparo Graciani, Hacia el nacimiento de la Historia de la Construcción. Origen y devenir de una Ciencia. In: Actas del Tercer Congreso Nacional de Historia de la Construcción. Sevilla, 26‐28 octubre 2000, eds. A. Graciani, S. Huerta, E. Rabasa, M. Tabales, Madrid: I. Juan de Herrera, SEdHC, U. Sevilla, Junta Andalucía, COAAT Granada, CEHOPU, 2000.
MELO, Arnaldo Sousa & RIBEIRO, Maria do Carmo. História da Construção – Os construtores. Edição CITCEM ‐ Centro de Investigação Transdiciplinar “Cultura, Espaço e Memória”. 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/4223040/Hist%C3%B3ria_da_constru%C3%A7%C3%A3o_Os_construtores
MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo. História da Construção – Os materiais. Edição CITCEM ‐ Centro de Investigação Transdiciplinar “Cultura, Espaço e Memória”/LAMOP Laboratoire de Mediévistique Occidentale de Paris ( Université de Paris 1 et CNRS). 2012.
MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo. História da Construção – Arquiteturas e técnicas construtivas. Edição CITCEM ‐ Centro de Investigação Transdiciplinar “Cultura, Espaço e Memória”/LAMOP Laboratoire de Mediévistique Occidentale de Paris ( Université de Paris 1 et CNRS), 2013.
Organizadores
Adailson José Rui – Universidade Federal de Alfenas. E-mail: adailsonrui@gmail.com
Luiz Eduardo da Silva – Universidade Federal de Alfenas. E-mail: luizedsilva@gmail.com
Referências desta apresentação
RUI, Adailson José; SILVA, Luiz Eduardo da. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 26, n. 1, p. 104‐109, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]