Peronismo: como explicar lo inexplicable | Santiago Farrell
Nesse livro, mais do que teorizações acadêmicas, a ideia é pensar, a partir de memórias e histórias, um fenômeno localizado e complexo: o peronismo. Já na introdução da coletânea, o organizador afirma que “o peronismo é fácil de entender, mas impossível de se explicar”. “Les he preguntado sobre el peronismo a varios argentinos a los que conosco y ningun me respondió lo mismo”, diz o organizador, continuando, “aunque todos tenían una opinión formada, a veces parecía que hablaban de cosas diferentes” (SANTIAGO, 2016, p. 11). E é nesse sentido que o livro se constrói, juntando interpretações e “variações” de Peronismo, inclusive em relação aos pontos de partida. O norte-americano Joe Horowitz, estudioso da história argentina, é o autor do primeiro capítulo, “Un fenómeno cultural más que una ideologia”. Para ele o fenômeno cultural se sobrepõe, até porque o Peronismo, mesmo que alguns digam o contrário, nunca teve uma cara muito definida em termos ideológicos. Isso mesmo enquanto Juan Perón, o fundador esteve no poder na Argentina: sua postura e suas ações sempre foram muito mais pragmáticas, inclusive nos momentos em que ele teve que negociar ou angariar aliados para suas “causas”.
O segundo a se manifestar é Jean-Jacques Kourliandsky, um pesquisador francês, estudioso da América Latina, com o capítulo “Desde París: ‘Perón’ sin doble ere para entender Argentina”. Há, nesse momento, espaço para reflexões e memórias, com as visões de fora sobre a Argentina e os elementos constituídos no movimento Peronista para estrangeiros verem. Exemplo dos mais simbólicos encarnou-se em Eva Maria (ou simplesmente Evita), que saiu a viajar e a criar uma imagem positiva de seu país, tendo no final conseguido enorme sucesso, sobretudo na Europa que até então pouco conhecia sobre o nosso país vizinho. Fazendo considerações sobre como a imagem da Argentina e do Peronismo apareceram para os europeus, especialmente, nesse caso para os franceses, o autor contribui para discutir a transmissão de imagens intencionais do peronismo, que para ele (um francês), não seriam suficientes para dirimir a dificuldade de se fazer uma definição clara do mesmo.
O próximo a se manifestar é o economista Facundo Firmenich, cujo pai fora um dos fundadores do grupo guerrilheiro argentino Montoneros. Em seu capítulo “El sentido común del pueblo argentino”, ele se debruça sobre suas experiências familiares e pessoais com a militância em torno do Peronismo. Através de uma visão mais favorável, ele procura sair da “Era Perón” para compará-la com as fases seguintes do “movimento”, criticando especialmente o “menemismo” e a guinada do presidente da Argentina entre 1989 e 1999, Carlos Menem para o neoliberalismo. Ele critica também o que considera visões distorcidas do Peronismo, que estaria “más acerca de ser el sentido común del Pueblo argentino que de conformar una ideología dogmática, estática y universal” (FARRELL, 2016, p. 42 ss). Nesse sentido, não se deve, segundo ele, confundir o Peronismo com a burocracia partidária que se estabeleceu ao longo das décadas e usa o povo de forma muito eficaz; tendo mais a ver com as transformações feitas e por se fazer na sociedade, na busca por melhorar as condições gerais de vida dos argentinos, especialmente dos trabalhadores. Por fim, sem chegar até Mauricio Macri, Firmenich encerra com uma reflexão do “kirchnerismo y o francisquismo”, especialmente de Cristina e do papa Francisco, tidos como uma volta ao elemento popular do Peronismo e dos ares da transformação positiva. Termina por concluir que, seja qual for a época em que se nasça, o peronismo seguirá presente e que para conhecê-lo nada melhor será que vivê-lo.
Já o italiano Fausto Bertinotti, por sua vez, partindo de sua posição como político sindicalista, reflete sobre essa que ele considera “una palabra peligrosa” – que, aliás, é o título de seu capítulo. Ele procura mostrar em seu curto texto o caráter ambíguo do Peronismo e como em tempos atrás era difícil para ele e seus compatriotas se referirem a um movimento que é essencialmente argentino. Chama a atenção para as semelhanças com o Fascismo italiano, mas adverte que isso acaba ainda hoje por produzir uma “distorción óptica”, que leva muitos a crerem na Itália que o Peronismo fosse matriz de movimentos de extrema direita. Ele faz questão de comparar os dois nos seus pontos principais, quais sejam: o populismo (palavra usada de forma puramente funcional); a figura do líder carismático; o papel desse líder como intermediador dos conflitos entre as classes altas e as baixas; a concentração da produção; o intervencionismo e a centralização política; a semelhança específica entre os movimentos dos “descamisados” argentinos e dos “camisas negras” de Mussolini; a ideia de construir uma Nação, “no solo el Estado, sino el Estado sobre la Nación”; por fim, também no que diz respeito ao anticomunismo. Apesar das possíveis semelhanças, Bertinotti afirma que não se pode confundir o Peronismo com o Fascismo e adverte que se deva ter atenção para a especificidade do que se entende por Peronismo. Palavra que, aliás, gera muitas interpretações, devido ao seu caráter extremamente ambíguo: o Peronismo vai muito além das ideologias, procurando antes seguir a corrente e se adequar às diferentes situações conjunturais enfrentadas, especialmente quando se trata de se manter no poder e evitar os golpes dos que se encontram excluídos. O que explica a perseguição aos membros dissidentes e destoantes do próprio movimento, inclusive com prisões e exílios; explica, por exemplo, a “excomunhão” dos montoneros pelo próprio Juan Perón em seu último mandato presidencial. Seu carácter ambíguo ajuda ainda a entender o Peronismo com Juan Perón no poder e o Peronismo (ou Peronismos) vivido na Argentina quando Perón esteve ausente do poder. Essa última situação se dá especialmente com o governo Menem e depois com o governo de Cristina Kirchner, que se dizem peronistas, mas se diferenciam fundamentalmente nas concepções e ações de governo, tendo o primeiro navegado na “barca” do Neoliberalismo e a segunda tendo se “voltado às origens” mais populares do justicialismo.
Por outro lado, embora precisemos ter sempre em mente as particularidades de cada fenômeno histórico-político-social, a jornalista brasileira Denise Chrispim Marin se preocupa em reconhecer as semelhanças do Peronismo com os fenômenos histórico-político-sociais brasileiros em seu capítulo “Más parecidos de lo que pensamos y de lo que nos gustaría”. Destaca-se a comparação com a figura de Getúlio Vargas, inspirado no fascismo europeu, ditador ou populista, centralizador, intervencionista, controlador dos sindicatos, persuasivo, repressor e encarcerador de seus opositores, censurador da imprensa e dos meios de comunicação… Mas, além disso, também implantador do trabalhismo no Brasil e promotor do nacional-desenvolvimentismo. Como aconteceria com Perón, Vargas também deixou uma marca em nosso país, uma idolatria em torno de si, o varguismo. Mas, esse teve duração menor que a “religião” dos nossos vizinhos. Nesse sentido, Marin vê muitas semelhanças ao fazer essas “odiosas comparaciones”, das quais não se vê igual todo dia; mas vê também diferenças fundamentais. Assim, conclui que, enquanto no caso brasileiro houve com o tempo o fim da idolatria e o “culto masivo de su imagen ha desaparecido”, no caso peronista a história foi outra. Após sofrer um golpe em 1955, Juan Perón “seguió como líder máximo e inspiración para sectores populares y de la clase media argentina”. Além disso, depois de suas mortes, os dois também seguiram destinos diferentes na memória coletiva, tendo Perón e o Peronismo seguido vivos no imaginário político argentino. Nesse sentido é que Perón e o Peronismo ainda aparecem até hoje em qualquer eleição, como salvação ou como carma – depende do lado que se está. Nesse sentido é que ela termina dizendo que, seja qual for a doutrina que se tenha adotado ao longo dos anos – menemismo, duhaldismo ou kirchnerismo –, no caso dos nossos vizinhos há uma “idolatría sin fin”.
E por falar em particularidades, o jornalista e escritor chileno Carlos Tromben vai direto ao ponto, ao afirmar já no título do seu capítulo que no caso do Peronismo se trata de “una espécie endógena”. Nisso muita gente concorda, pois o Peronismo é original em grande medida. Ele muda de cor, de roupa, de direção, se divide e se multiplica em formas diferentes e por vezes distintas, fala línguas diferentes, mas, ainda assim, sobrevive aos tempos, coisa que não aconteceu com outros governantes e movimentos semelhantes da América Latina, dos quais Tromben faz uso comparativo, especialmente seu compatriota, Carlos Ibáñez Del Campo, esse “un militar austero, un orador deplorable, soporífero, que más bien actuaba detrás de bombalinas, en los pasillos”. E mais ainda, ao contrário do que ocorreu com Juan Perón, Ibáñez não pode contar com uma figura como Evita, fundamental para o movimento Peronista, como uma ferramenta de ligação entre Juan Perón e as massas de trabalhadores, contribuindo assim para a sua popularização e perpetuação na Argentina.
No próximo texto surgem Rafael Bielsa e Federico Mirré, colocando o Peronismo como um “objeto político não identificável” ou como eles chamam: OPNI. Ambos, com ligações diretas no direito, na diplomacia e na política nacional, fazem uso de uma série de memórias para defenderem o Peronismo e a história argentina diante das diversas considerações estrangeiras, muitas vezes eivadas de incompreensões e mesmo de preconceitos. Por exemplo, uma referência a um artigo londrino do conservador Sunday Telegraph, em que um futuro prêmio Nobel nos anos 1970 se referiu à Argentina como “la ciudad entre los cementerios y los prostíbulos”. Ou ainda fazem referência a um encontro de um ilustre diplomata argentino com Stalin em 1953, quando esse último, procurando resumir as impressões que tinha sobre o Peronismo, no poder naquele momento, disse que “si lo entiendo bien, ustedes serían capitalistas, pero no tanto; pero también socialistas, aunque casi nada. Llegan al poder por elecciones, pero no creen em la democracia burguesa”. Mas, Bielsa e Mirré defendem especialmente o governo de Néstor Kirchner, do qual o primeiro foi parte como ministro de Estado. Isso ocorre com considerações a respeito da crise que se instalou na economia nacional na época e das tentativas dos EUA de “participar” das soluções e “aconselhar” as autoridades argentinas nos rumos que deveriam seguir. Baseando-se em artigos de jornais norte-americanos, que defendiam uma virada “libertária” para a economia argentina, os autores criticam as sugestões dadas, especialmente a proposta de dolarização e os caminhos para a liberalização.
Mas sigamos como os demais textos, devendo ter em conta serem complementares aos que já comentamos até aqui, por isso apontaremos suas considerações de forma mais breve. Assim, não podemos esquecer sempre de nos perguntar, como fazem a politóloga Lucrecia Teixidó e o periodista Sergio Bufano, de “qual Peronismo” estamos falando? Esses dois argentinos procuram fazer um histórico do Peronismo, em poucas páginas, desde sua origem com o próprio Perón até os governos Kirchner, para mostrarem suas controvérsias e o que ele não é, nas suas muitas viradas pragmáticas, nas mudanças de atitude em relação à economia e à política; mas também como a base trabalhista, ao menos em sua forma institucionalizada sempre se manteve presente e de forma decisiva, impedindo inclusive governos não-peronistas de governar.
No texto seguinte, escreve o analista político Manuel Monereo desde Espanha, para tentar mostrar que, se há uma figura síntese, ao menos de uma fase do Peronismo, essa é Evita, uma “santa” em torno da qual se construiu uma verdadeira religião.
Quase no fim do livro, temos uma perspectiva escandinava, a do jornalista e escritor Rune Vitus HarritshØj. Esse, escrevendo desde a Dinamarca, onde, segundo ele, por suposto pouco se sabe sobre o Peronismo, chega à conclusão de que se pode amar e odiar o peronismo ao mesmo tempo. Isso é fato até mesmo para nós brasileiros (vizinhos de fronteira) quando olhamos para esse fenômeno argentino, por vezes achando que estamos entendendo, para logo em seguida encontrarmos algum elemento que nos faz repensar e por vezes repudiar ações postas em práticas ao longo da história do peronismo. Agora, imagine você um dinamarquês, tão longe e com muito menos contatos, tentando compreender e sintetizar um sentimento a respeito do Peronismo.
Eis aí o que torna o livro interessante ao público em geral, argentino ou não, assim como também ao público acadêmico, pois é essa complexidade que impede que a questão central do livro seja plenamente respondida e nos deixa antes de qualquer coisa reflexões: afinal, o que é o Peronismo? Existe um só Peronismo? É possível realmente entendê-lo? Bom, o que o jornalista francês Pierre Dumas faz – como também devemos fazer –, é concluir, a partir da comparação com o Gaullismo francês (ou de qualquer outro tipo de comparação com governos de outros países), que o peronismo é (e sempre será) uma “grande incógnita argentina”!
Resenhista
José Antonio Fernandes – Doutor em História. Professor da rede estadual de Santa Catarina. E-mail: jose_jaf@hotmail.com
Referências desta Resenha
FARRELL, Santiago (Org.). Peronismo: como explicar lo inexplicable. Buenos Aires: Ariel, 2016. Resenha de: FERNANDES, José Antonio. Peronismo: um conceito (quase) inexplicável. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 36, p. 252- 256, jul./dez.2020. Acessar publicação original [DR]