Modelando Condutas: Educação católica em escolas masculinas | Roseli Boschilia
O livro Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018, é resultado de sua tese de doutoramento, defendida em 2002, na qual a autora analisa os modelos educacionais propostos por instituições católicas masculinas do Paraná, para perceber as formas e estratégias por elas utilizadas para educar jovens e crianças, conforme a tradição e moral cristã. A autora doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e também professora desta mesma universidade, tem focado suas pesquisas nos temas imigração, memória, autobiografia e relações de gênero.
Na obra composta por quatro capítulos, mais introdução e reflexões finais, a autora coloca em debate “os mecanismos utilizados pela Congregação Marista para a construção de um dispositivo organizacional, social e simbólico que possibilitasse a formação de uma elite modelada por um sistema único de pensamento” (BOSCHILIA, 2018, p.272). Apoiando-se em uma ampla lista de autores, tais como Michel Foucault, Roger Chartier, Eric Hobsbawm, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, etc. Roseli Boschilia analisa por meio de dispositivos de memória de ex-alunos do colégio marista Santa Maria, localizado no Paraná no período de 1920 a 1960. Boschilia analisa ainda as relações do colégio com a política e sociedade e propõe perceber as formas de controle e poder utilizados pela instituição católica para modelar as condutas dos alunos, e assim efetivar o projeto pedagógico religioso, além de conciliar as inovações da modernidade, com os valores tradicionais Católicos ultramontanos. Para destacar tais questões, o livro possui duas apresentações, a primeira escrita por Etelvina Trindade e a segunda pela própria Boschilia na qual apresenta o processo de produção da pesquisa, motivações e apoio bibliográfico.
A autora analisou para a obra uma ampla gama de fontes, que permitiu adentrar nas diferentes facetas: desde entrevistas com ex-alunos até um acervo documental guardado por estes. Além disso, a autora analisou o Guia escolar (Guide des École a L’usage des petits frères de Marie).
No primeiro capítulo Igreja, Educação e Juventude, antes de adentrar no colégio Santa Maria, a autora faz uma breve genealogia da Igreja Católica e da educação no Brasil. Boschilia anota a preocupação da sociedade com as crianças e os jovens na chegada da modernidade e, como a Igreja Católica percebe a possibilidade de manter as práticas religiosas tradicionais através da aproximação com os jovens por meio da educação. Para tanto, são criadas as congregações religiosas masculinas e femininas, normalmente direcionadas às populações mais pobres da sociedade. Contudo, até o século XIX, a educação no Brasil ainda representada em boa parte pelas instituições Maristas, não alcançava toda a população brasileira. Logo, a educação tornava-se um meio de diferenciação entre as classes com renda médias e altas para com as mais famílias de renda baixa.
Enquanto no restante do Brasil, as instituições maristas perdem força para instituições privadas leigas, nas décadas de 1940 e 1950, em Curitiba e boa parte do sul do Brasil, elas se fortalecem mais. Segundo Boschilia esse fato ocorre devido a forte presença de imigrantes europeus cristãos nessa região, além da estrutura precária do estado em relação à educação secundária nesse período.
No segundo capítulo Modelando Condutas, Boschilia aborda a estrutura escolar do colégio marista, do Instituto Santa Maria, instalado no Centro de Curitiba – PR. Uma escola acessada por alunos, na maioria, descendentes de imigrantes europeus, com certo privilégio econômico. Em 1925, este instituto passou a oferecer os cursos Primário, Intermediário e Ginasial. Com apoio do Estado e de boa parte da sociedade Curitibana, o Instituto Santa Maria, teve seu estabelecimento regulamentado permanentemente em 1935. Nesse período, houve um fortalecimento do modelo de militarização proposto pelo governo Vargas, como forma de reconhecimento e fortalecimento de sua estrutura na sociedade, todavia, o Instituto seguia o Guide des École a L’usage des petits frères de Marie (BOSCHILIA, 2018, p.113), um guia nos moldes tradicionais ultramontanos que buscava a promoção de bons cristãos e cidadãos virtuosos (Op. cit., p. 116).
Utilizando de obras de Foucault e Thompson, Boschilia nota que modelos de conduta utilizados pelas instituições católicas para educar os meninos se embasavam no conceito de disciplina e nas tecnologias de poder, para moldar as condutas individuais. A vigilância constante no cuidado do corpo, controle e usos precisos do tempo do aluno, além da utilização das hierarquias entre os estudantes, foram algumas estratégias utilizadas pela escola para educar indivíduos virtuosos, dentro da moral e tradição cristã.
Quanto à formação intelectual, Boschilia afirma que a educação seguida a partir do Guia buscava a percepção, a imaginação e a memória, estimuladas pelos professores que traziam diversos conteúdos que se relacionavam constantemente com a vida externa e a escola. A religiosidade era abordada em todas as aulas como atividade comum, além de haver os cultos e missa, atividades obrigatórias dos estudantes. Boschilia percebe que o cuidado com o corpo e a alma também estava vinculado à religiosidade, a exemplo do ditado “Deus vê tudo” que era utilizado como uma das formas de controle. O Instituto Santa Maria prezava também por atividades que ensinavam o amor à pátria e a civilidade, através do batalhão escolar, atividades estas estimuladas pelo governo Vargas; por meio desse batalhão escolar eram realizados mostras e desfiles cívicos, demonstrando as práticas de ordem e disciplina presentes no colégio católico.
No terceiro capítulo, Construindo identidades, Boschilia aborda a estrutura escolar e os modos de organização dos estudantes nas atividades cotidianas como forma de criar uma identidade institucional e buscar o reconhecimento dos alunos na sociedade. A primeira característica que difere as escolas Maristas para com as escolas públicas, refere-se ao espaço onde são construídas as escolas católicas, normalmente em regiões retiradas dos centros das cidades, com muitas áreas verdes e envoltos pelo silêncio, pois ali seria um espaço de maior aproximação com Deus e longe dos perigos da modernidade. Eram nesses espaços onde se incentivava a sociabilidade, com a finalidade de criar relações entre os estudantes. Ao criar uma identidade própria, distinguiam-se os alunos destas escolas, dos alunos de escolas públicas, esses considerados como tendo uma educação religiosa precária, portanto jovens com os quais os das escolas Maristas não deveriam se relacionar. O Instituo Santa Maria, entretanto, conseguiu uma localização diferencial, localizada no centro de Curitiba, mas ainda contava com amplo espaço de campo e arborização, o que atraia maior público por estar perto da população e possuir uma boa estrutura de estudos e socialização.
Os espaços de sociabilidade mais reconhecidos pelo Instituto Santa Maria eram: futebol, jornal escolar, cinema e atividades religiosas. O Futebol, atividade iniciada pelos alunos, logo tomou forma, com treinamentos adequados e mais tarde, com o fim do batalhão escolar, tornou-se aula complementar de educação física. A criação de jornais institucionais, formulados e organizados por alunos também teve grande importância, com várias edições e repercussão, inclusive da comunidade externa. Boschilia afirma que, através da leitura desses jornais, é possível analisar o comportamento dos alunos na escola, tanto durante as aulas como em atividades externas ao colégio (BOSCHILIA, 2018, p.192). O Serviço de altofalantes também foi utilizado para animar os recreios e organizar eventos, como festas.
Uma das atividades muito frequentadas pelos estudantes e comunidade próxima era o cinema Santa Maria, que iniciou seu funcionamento em 1950, como forma de utilizar a modernidade em prol dos objetivos de uma instituição católica. As sessões eram organizadas e adequadas pelo colégio que, com participação dos alunos, selecionavam e adequavam os filmes à moral cristã. Em relação aos círculos religiosos, incentivados pela escola e pelo Guia escolar, era formado apenas por alguns alunos de elite selecionados por processos de aprovação. No meio desses grupos se mantinha a tradição religiosa, a pureza e a fé. As atividades comuns ao grupo eram de catecismo, trabalhos sociais e recreativos. Por fim um dos grupos de identificação com certa importância foi a Associação dos Antigos Alunos do colégio Santa Maria, responsável em reunir os ex-alunos, a grande maioria de uma elite do colégio, que mantinham as tradições e religiosidade.
No capítulo Construindo Memórias, Boschilia busca entender como os ex-alunos do colégio Santa Maria reveem ou reconstroem as experiências vividas no colégio, focando tanto na memória individual quanto na coletiva. Neste sentido, trabalha com o conceito de geração, não apenas cronologicamente, mas também como forma de unir experiências. Revendo o conceito de memória, Boschilia passa desde Aristóteles, para se apoiar em Michael Pollak, Michel de Certeau e Paul Ricoeur, além dos nomes mais recentes como Jacques Le Goff e Pierre Nora, para entender o trabalho do historiador com a memória. Relacionando a memória com a identidade escolar, Boschilia busca nos estudantes do colégio Santa Maria rever a memória construída por esses personagens. A autora trabalha, por meio das narrativas da memória, sobre como lembravam os alunos da escola, nota que conforme o grupo em que se encontrava o entrevistado e o período em que esteve no colégio, estes relembram a escola e as motivações que os levaram a ela, de forma diferente.
Para a identificação e seleção desses estudantes, Boschilia separa em dois grupos distintos devido às fases e processos diferenciados que o Santa Maria passou. O primeiro unia desde a formação do colégio até 1942, e o segundo grupo a partir de 1943 que se inicia com os projetos vindos pelo Estado Novo e final do governo Vargas. Boschilia afirma que, por meio das memórias e noções de pertencimento, foi possível perceber a eficácia das redes estabelecidas entre os antigos alunos do colégio, pois muitos alunos remeteram aos encontros de antigos colegas e amigos de infância vindos do colégio (BOSCHILIA, 2018, p.269). Entre os dois grupos organizados pela autora para a realização de entrevistas, ela nota uma evidente diferença entre a construção da memória, mas observa que ambos constroem suas memórias positivas e negativas a partir de momentos importantes ou excepcionais à vida cotidiana. Assim, “Enquanto os mais jovens deram asas à imaginação, lembrando-se de acontecimentos, personagens e lugares ligados à vida escolar […] os mais velhos, aos falarem sobre a escola, procuram avaliar a própria experiência de vida” (BOSCHILIA, 2018, p.271).
Essa pesquisa de Boschilia se apresenta muito atenta a todas as relações e formas de poder estabelecidas no colégio Santa Maria, o que nos permite visualizar de forma muito clara como era a vida de quem estudava nesse colégio e também permite estender para colégios de estrutura similar que se espalharam pelo Brasil no século XX. Embora pouco se atente ao currículo dos professores do colégio Santa Maria, a autora mostra um cuidado excelente e atencioso com as fontes que utiliza. Além disso, as relações de poder expostas nessa pesquisa evidenciam (ainda mais por meio das entrevistas de ex-alunos no último capítulo) como essa instituição forjou por meio de micro poderes as maneiras e estilos de vida de seus alunos, perpetuando nos homens de classe média alta os costumes tradicionais religiosos e sociais. A autora também nos lembra de como os espaços de sociabilidade tiveram grande importância para a formação desses sujeitos e a identificação e defesa do colégio.
Agradecimento
Agradeço a CAPES pela bolsa.
Resenhista
Isabel Schapuis Wendling – Mestranda em História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: isabel.wendling@live.com
Referências desta Resenha
BOSCHILIA, Roseli. Modelando Condutas: Educação católica em escolas masculinas. Curitiba: SAMP, 2018. Resenha de: WENDLING, Isabel Schapuis. Modelando Condutas: uma resenha da obra sobre os poderes nas escolas católicas masculinas no Brasil. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 35, p. 192- 196, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]