O livro de Angelo Segrillo (professor Livre Docente de história contemporânea, coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP; Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de Moscou (Rússia) e doutorado na UFF; É especialista em história da Rússia e ex-URSS eurasiana) se soma a outros dois trabalhos, com escopo biográfico, publicados por pensadores brasileiros. O primeiro deles, “Marx – vida e obra” de Leandro Konder publicado no Rio de Janeiro pela editora Paz e Terra, nos anos 1970 (em 2015 foi publicado em nova edição pela Editora Expressão Popular) e o outro, “Marx Vida e Obra” do professor José Arthur Giannotti publicado em 2000 na coleção L&PM Pocket Filosofia. Porém, enquanto estas duas obras abordam com maior ênfase aspectos teóricos do pensador alemão, Segrillo produz um trabalho com foco na vida de Karl Marx.
‘Karl Marx: uma biografia dialética’ é dividido em 10 capítulos, além da introdução, da conclusão, de um anexo (que é a cronologia da vida de Marx) e da bibliografia. As seções do livro não são proporcionais, uma vez que cada uma delas analisa como Marx viveu, em cada cidade pela qual passou. Dessa forma, lugares em que o Mouro (apelido pelo qual Marx era conhecido em razão da cor de sua pele, mais escura que os seus amigos e familiares) permaneceu por menos tempo tiveram um espaço menor no livro, sendo o décimo capítulo, “Londres, agosto 1849-14 de março 1883”, o maior de todos.
Na introdução da obra, Segrillo explica o título escolhido, em particular a expressão “uma biografia dialética”. Em suas palavras,
o adjetivo dialético no subtítulo não se refere apenas ao sentido stricto sensu filosófico (hegeliano) do termo, mas sim ao sentido mais geral da palavra dialética como um método de discussão: posições diferentes sendo colocadas ou vistas em busca de uma síntese esclarecedora. Ou seja, faremos nossa descrição da vida e obra de Marx em constante discussão com as biografias do pensador alemão já existentes. (SEGRILLO, 2019, p.7)
Assim, como fica explícito no trecho acima, Segrillo repassa um número grande de biografias de Marx (senão todas) que já foram escritas e dialoga com elas. Em artigo publicado em 2017 na revista Estudos Ibero-Americanos com o título “Karl Marx: um balanço biográfico”, o autor já havia analisado as biografias do pensador alemão, e o texto serviu de base para a introdução do livro. Também cabe ressaltar, que Segrillo não sustenta sua pesquisa apenas em fontes primárias inéditas, com intuito de trazer novas revelações sobre a vida de Marx.
No primeiro capítulo, “Infância e Adolescência (Tréveris, 1818-set.1835), aparece as origens de Marx. O nascimento no seio de uma família de novos cristãos, pois o pai do Mouro, com vistas a driblar as dificuldades impostas aos judeus na Prússia, decide se converter ao luteranismo em 1817 para exercer a advocacia. Assim Heschel Marx Levi Mordechai, um descendente de rabinos, germaniza seu nome e vira Heinrich Marx. Além disso, a família de Marx é caracterizada como aberta intelectualmente, especialmente Heinrich, que é leitor dos iluministas franceses, de Shakespeare e de Goethe.
Ainda, nesse curto capítulo de 3 páginas, Segrillo menciona a influência que duas outras pessoas tiveram sobre Marx na fase inicial de sua vida: o diretor do Ginásio de Tréveris, em que ele estudou e, o seu futuro sogro, Ludwig Von Westphalen. E, apresenta um trecho grande da famosa redação escolar, em que Marx problematiza a escolha da profissão, que alguns biógrafos mais entusiasmados apontam como germe do futuro materialismo histórico. Posição descartada por Segrillo que encontra um Marx jovem inteligente, mas ainda romântico e enquadrado nos valores iluministas herdados do pai e do futuro sogro.
O segundo capítulo trata de uma fase importante da vida Marx, o ingresso no mundo universitário alemão, a escolha da carreira profissional, o investimento que o pai fez para Karl Marx (o filho homem mais velho) estudar, o contato com a filosofia de Hegel e a adesão à juventude hegeliana de esquerda. Com título “Anos em Universidades (Bonn/Berlim/Jena, 1835-1841)”, além de tratar da vida acadêmica de Marx, o capítulo também informa sobre o noivado secreto com Jenny Von Westphalen em 1836. Aborda a transferência da Universidade da pequena Bonn, cidade com aproximadamente 40 mil habitantes, para a academia da cosmopolita Berlim, capital da Prússia com 300 mil habitantes, que além de tudo tinha outro patamar intelectual. Nas palavras do autor:
O clima intelectual mais aprofundado, propiciado por esse maior tamanho e diversidade, seria importante para que Marx fosse lentamente saindo das tendências românticas, artísticas e literárias, que marcaram seu período de Bonn, para o aprofundamento no caminho mais filosófico (e posteriormente sociológico) que marcaria sua grande obra. Infelizmente para o pai de Marx, no meio do caminho, os estudos de direito e a carreira de advogado tomariam ares cada vez mais formais. Marx seguiria até o final em 1842 na faculdade jurídica de Berlim sim, mas escreveria a tese que lhe daria o título de doutor em um assunto eminentemente filosófico. (SEGRILLO, 2019, p.35)
Nessa fase ainda, em 1838 falece Heinrich Marx, quando o Mouro contava com 20 anos e ainda restavam aproximadamente 3 anos para concluir o curso superior. A herança recebida do pai e, mais um adiantamento da herança que receberia da mãe Henriette Presburg (uma holandesa descendente de rabinos e dedicada à vida doméstica) permitem que Marx conclua a Universidade de Berlim e, envie sua tese de doutoramento em filosofia para ser avaliada na Universidade de Jena. Influenciado por seu amigo Bruno Bauer, o Mouro visava uma vaga como professor na Universidade de Bonn, porém com a mudança na política prussiana, e o início de um período de repressão ideológica, além de Marx não conseguir o sonhado emprego, seu amigo Bauer é demitido. Dessa forma inicia a carreira de Marx como jornalista em um jornal liberal da cidade de Colônia, a Gazeta Renana.
O breve período que Marx viveu em Colônia, onde atuou como redator-chefe da Gazeta Renana é analisado nas 3 páginas do capítulo 3, do livro, “Colônia, 1842-março 1843”. Durante esse ano Marx foi um defensor da democracia liberal, já afastado da esquerda hegeliana tinha os olhos voltados para temas concretos da realidade prussiana de então. Escreveu uma série de artigos chamados “As Atas do Sexto Parlamento Renano”, onde consta “Debates sobre a Lei do Roubo de Madeira”, o Marx dessa fase buscava uma democracia constitucional, que não viu nascer. Pelo contrário, viu seu jornal seu fechado pela repressão do governo do rei prussiano Friedrich Wilhelm IV.
Extinta a possibilidade de continuar exercendo o jornalismo em Colônia, em razão da postura autoritária do governo que fechou a Gazeta Renana e, outros órgãos da imprensa de matiz hegeliana de esquerda, a saída foi criar um periódico fora da Alemanha, na França. Porém, antes de ir para o exterior Marx rumou para a cidade onde então vivia a família da noiva Jenny, que dá nome ao capítulo 4 “Kreuznach, maio 1843-out.1843”. A passagem de Marx pela cidade serviu para a efetivação de seu casamento com a filha do finado barão Ludwig Von Westphalen e para pouco mais de um ano de fecundos estudos. O Mouro aproveitou para estudar alguns clássicos da filosofia: Hegel, Rousseau, Montesquieu, Maquiavel, Thomas Hamilton entre outros. E, também, desenvolveu estudos sobre a França, a Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos além da Suécia, Veneza e Polônia. O resultado dessa atividade foi o conjunto de anotações, denominados “Cadernos de Kreuznach”, onde Marx utilizou o método que aprimorou na universidade, de copiar trechos dos autores lidos seguidos de amplos comentários de sua própria autoria. Além disso, nesse ano germinou dois futuros relevantes trabalhos filosóficos de Marx: “Sobre a Questão Judaica” e “Introdução à Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”.
Em outubro de 1843 o casal Marx chegaram em Paris. Com cerca de um milhão de habitantes na época, “Paris é uma festa” (p.61) pelo menos nos primeiros momentos da chegada na cidade das luzes. No capítulo 5 “Paris, out. 1843-fev.1845” é apresentada a conversão de Marx ao comunismo, seu contato com importantes pensadores e líderes do movimento dos trabalhadores como Proudhon, Bakunin, Louis Blanc, por exemplo. Angelo Segrillo resenha algumas obras importantes escritas por Marx no período em que viveu em Paris: “Introdução à Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”(p.p. 64-66) e “Sobre a Questão Judaica” (p.p. 67-71), ambos publicados nos Anuários Franco-Alemães, e “Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844”(p.76).
Estes são trabalhos importantes no processo de afastamento de Marx do idealismo de Hegel. Algumas frases importantes do Mouro estão nestes textos: “o homem faz a religião, não é a religião que faz o homem”, “a religião é o ópio do povo”, “ser radical é compreender as coisas pela raiz”. É nesse período que “Marx frequentaria muitos dos círculos intelectuais e operários, socialistas e comunistas, sociedades secretas e abertas” e, o mais importante, “teria seu grande encontro de dez dias com Engels, em que a amizade dos dois ficaria selada”(p.72). Friedrich Engels (1820-1895) nascido na cidade de Barmen, dois anos mais jovem que o Mouro, de uma família religiosa e burguesa (fabricante de tecidos) isso possibilitou a Engels “contato direto com a classe trabalhadora há muito tempo” (p. 84) que Marx nunca teria. Fato que foi útil para a parceria que durou até o final da vida de Marx.
No seu período em Bruxelas de fevereiro de 1845 a março de 1848 (Capítulo 6) Marx renuncia a sua cidadania prussiana e, torna-se apátrida, status que matem para o resto de sua vida. Uma medida extrema que adota para evitar a constante perseguição do conservador governo da Prússia. Nessa época escreve “A Sagrada Família”, “Teses sobre Feuerbach”, “A Ideologia Alemã” e o “Manifesto do Partido Comunista”, todas estas obras – matrizes do materialismo histórico de Marx e Engels – foram resenhadas por Segrillo ao longo do capítulo. Obras que marcaram a ruptura com os idealistas irmãos Bauer, Feuerbach e Proudhon. A consequência lógica da atuação política e intelectual de Marx em Bruxelas foi a expulsão do país e a migração para a revolucionária França, onde ficou por um mês, período descrito no Capítulo 7 “Paris, 5 mar.1848- 5 abr. 1848”, antes de rumar para Colônia onde ficaria por 2 meses dirigindo a Nova Gazeta Renana (p.p.131-137) e respondendo 23 processos judiciais (p.142), movidos pelo governo prussiano.
Mais uma vez forçado a deixar Colônia, Marx e família rumam para uma última passagem por Paris, que durou pouco mais de 2 meses – Capítulo 9 Paris, junho 1849- agosto 1849. Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho do famoso imperador, estava no poder como presidente eleito. Durante o pouco tempo que passou na cidade, Marx escreve uma série de artigos sobre a política na Alemanha, França e Itália. Em 24 de agosto, aos 32 anos de idade, Marx partiria para Inglaterra, país em que viveria até o final de sua vida e, escreveria os mais importantes capítulos de sua obra.
O décimo capítulo da biografia escrita por Segrillo – Londres, agosto 1849-14 março 1883 – é o mais longo em relação aos demais. Ocupa mais da metade do livro, afinal trata do período em Marx viveu na Inglaterra, ou seja, quase 34 anos – a maior parte de seus 64 anos vida. Nesse ponto é demonstrado como o Mouro viveu em extrema pobreza no país mais rico do mundo, o sofrimento de sua família com a morte prematura de 4 filhos: Guido, Franzisca, Edgar, e uma menina morta antes de receber um nome.
Também foi nessa fase que Marx teve intensa atuação política, começando no Comitê de apoio aos refugiados alemães em Londres, e culminando na Associação Internacional dos Trabalhadores, AIT, a I Internacional. Em Londres escreveu as páginas mais importantes a respeito do Materialismo Histórico-Dialético, e Segrillo apresenta individualmente boa parte dos livros escritos por Marx. Inclusive, o autor faz em torno de 19 resumos de textos do Mouro no decorrer da biografia.
Dois aspectos da vida de Marx ficam esclarecidos no livro, em primeiro lugar a atuação de Marx como jornalista, uma vez que foi correspondente internacional por mais de uma década de importantes jornais norte-americanos. Além das matérias que publicou em periódicos espalhados pela Europa. Mesmo que a renda obtida com essa atividade tenha sido insuficiente para o sustento familiar, isso representa uma contestação aos críticos de Marx, aqueles que dizem que ele não tinha gosto pelo labor. Outro ponto esclarecido na biografia, inclusive com um quadro na página 170, foi a colaboração financeira de Engels por 32 anos, com aumento significativo nos últimos 20 anos da vida de Marx. Quando Engels se aposentou da atividade empresarial passou a pagar uma pensão de 350 Libras para Marx, até a morte do Mouro em 1883.
Na Biografia de Segrillo a questão da luta política e da produção teórica de Marx ganham tanto ou mais espaço que as questões pessoais, não se diferenciando muito das biografias já existentes. Inclusive o termo dialético do título justifica um diálogo que o autor fez com os trabalhos já existentes. Angelo segue um caminho diferente dos outros dois trabalhos feitos por brasileiros, já mencionados no início da resenha, de Konder e de Gianotti, que dividem os seus textos por temas, enquanto Segrillo divide por cidades em que Marx viveu, a semelhança das biografias de David McLellan (considerada a melhor biografia de Marx até hoje), Mary Gabriel e Franz Mehring, por exemplo. Sobre a atuação de Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores, Segrillo escreve 70 páginas (p.230-p.302), discorrendo acerca do papel de Marx nos 6 congressos e 4 conferências de vida da I Internacional.
Faltaram na obra mais informações a respeito do cotidiano de Marx nas suas pesquisas na biblioteca do Museu Britânico, embora tenha registrado a atuação de sua filha Laura como sua auxiliar nessa atividade. Também foi explicitado como a esposa Jenny e a filha Jennychen secretariavam o Mouro passando a limpo seus manuscritos e, a caçula Eleanor cuidava das frenéticas correspondências de Marx com seus camaradas espalhados pelo mundo inteiro.
O processo de produção e publicação da obra máxima de Marx, O Capital, foi bem abordado ao longo da biografia, os 20 anos de pesquisa que foram empenhados pelo Mouro são abordados a partir da página 220 contando, inclusive com um resuminho da teoria. Uma das poucas novidades que a biografia trás, e o propósito de Segrillo não era apresentar fatos novos sobre a vida do Mouro como é informado na introdução, é a grande tabela das páginas 312 até a 316 com os temas estudados por Marx de 1867 até 1883. São estudos em geral, sobre os assuntos mais variados, desde a história da Irlanda, agricultura, fisiologia das plantas, livros administrativos oficiais da Inglaterra, Estados Unidos e Rússia, até a filosofia de Diderot e Descartes. Marx também estuda matemática “para melhorar sua técnica de cálculo diferencial” (p.316), e história da Austrália, Estados Unidos, Turquia e a situação do Egito, na época.
Nos últimos anos de vida, o grande novo amor de Marx seria a Rússia! Aprende russo sozinho para ler mais obras no idioma original a respeito daquele grande, antigo e atrasado império. Estabelece uma amizade com o economista russo Nikolai Danielson, que além de enviar mais de 30 abras russas de várias áreas, mantém forte correspondência com o Mouro e, é responsável pela primeira tradução de O Capital para uma língua estrangeira, o russo.
Por fim, a biografia dialética de Segrillo possui como principal base de pesquisa a obra de Marx disponibilizada e organizada pelo MEGA (Marx-Engels- Gesamtausgabe) projeto em andamento que pretende publicar a obra completa dos dois alemães e está disponível na internet, inclusive no catálogo eletrônico da biblioteca do IFCH-UNICAMP. Destaca-se a bibliografia em vários idiomas: alemão, russo, inglês, francês, espanhol e português. A obra merece ser lida, pois além de ter sido escrita por intelectual brasileiro, contribui para o aquecimento do interesse por Marx, desfaz preconceitos em relação à vida e a atuação do Mouro, além de fazer um balanço do estado da arte dos escritos biográficos a respeito de Karl Marx ao longo do tempo e em vários idiomas.
Resenhista
Daniel de Souza Lemos – Doutorando em História pela UFPel. Professor da SEDUC-RS. E-mail: daniel-dlemos@educar.rs.gov.br
Referências desta Resenha
SEGRILLO, ANGELO. Karl Marx: uma biografia dialética. Curitiba: Editora Prismas e Coeditora Appris, 2019. Resenha de: LEMOS, Daniel de Souza. Um novo estudo sobre a vida de Marx. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 35, p. 185- 191, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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