Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico | Joaze Bernardino Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel
[…] Emancipe-se da escravidão mental
Ninguém além de nós mesmo pode
Libertar nossas mentes.
Canção da Liberdade – Bob Marley
Para problematizar decolonialidade, fazem-se necessárias reflexões sobre o conhecimento. Assim como, interrogar as resistências impostas pelas lógicas econômicas, políticas, culturais, estéticas e da natureza produzidas em um longo processo colonial. Na obra em pauta, os autores compreendem decolonialidade e pensamento afrodiaspórico como um sentido mais amplo que se interroga e se dispõe apresentar debates que podem ser inspiradores de estratégias para se transformar as realidades em que a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza se perpetuam.
A obra Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico, organizada pelos professores Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel em um esforço horizontal de dialogo junto a outros 13 autores/as que são igualmente professores/pesquisadores, feministas negras, intelectuais/ativistas antirracistas e negros(as); os quais partem da premissa que o conhecimento está ligado ao poder, além de asseverar que a raça é um principio estruturante para se problematizar o sistema-mundo moderno/colonial.
A obra, atenta para o risco que corre a tradição acadêmica brasileira em compreender e transformar o projeto acadêmico-político da decolonialidade, elucidando historicamente a colonialidade do poder, do saber e do ser, desvinculado da sua dimensão política; isto é, do seu enraizamento nas lutas políticas de reexistência dos corpos políticos negros, do seu lócus de enunciação e, com isso, produzindo um academicismo abstrato sem intervenção na realidade, bem como negando a afirmação corpo-geopolitíca para a produção de conhecimento.
Logo, o lugar de enunciação coloca-se contrário ao universalismo abstrato, visto que os autores sustentam a ideia de uma democracia plurirracial, presente na tradição de autores como Franz Fanon2, Aimé Cesaire3, Abdias Nascimento4 e Paulo Freire5, cujos apontamentos inferem que existem outras narrativas desprezadas pela modernidade, ao mesmo tempo em que debatem acerca de um mundo afrodiaspórico segregado pela história branca, racista e colonial.
As quase-brancas universidades brasileiras após as políticas de ações afirmativas tornam-se coloridas e, a partir disso, impactam diretamente em pesquisas direcionadas a produção de conhecimento oriundo de experiências e vivências pessoais – em que as distintas formas de vida e organização político-social causam tensões no polo hegemônico da sociedade brasileira e no campo do saber.
O livro conta com 365 páginas e, é de um dos frutos do Seminário Decolonialidade e Perspectiva Negra, realizado no Instituto de Ciências Sociais na Universidade de Brasília entre os dias 5 e 7 de outubro de 2016. Reune 16 artigos e inicia com a apresentação pelos organizadores intitulada “Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico”, quando apresentam o contexto histórico e político da obra, denotando as tradições de resistência das populações negras e indígenas.
O artigo “Analítica da colonialidade e pensamento afrodiaspórico”, escrito por Nelson Maldonado-Torres, destaca as preposições cientificas referente ao tempo, espaço, conhecimento e subjetividades. Dialoga com Muriel Evelyn Chamberlain, professora emérita de história na Universidade do País de Gales, especialista em colonização e descolonização européias e política externa britânica no século XIX e o psiquiatra e filósofo martinicano Franz Fanon no sentido de elucidar a relação entre modernidade e colonização considerando que a decolonialidade é um projeto a ser construído.
“Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada”, de Ramón Grosfoguel, professor de Sociologia porto-riquenha da University of Califórnia, Berkeley, EUA, conceitualiza alguns termos como sistema mundo, colonialidade, civilização, modernidade. Como reconhecimento à diversidade epistêmica que invizibiliza e hierarquizam outras, dominadas pelo “ego conquiros” enfermos que constitui a todos nós, apresenta no início que a teoria do sistema-mundo originou-se com Oliver Cromwell Cox, negro, nascido na República de Trinidad, membro da Escola de Chicago de Sociologia e um importante estudioso do racismo e o seu relacionamento com o desenvolvimento capitalista global nos anos 60 do século passado. Desse modo, faz um chamado ao diálogo e aliança entre os povos do eixo sul-sul.
No artigo, “Encontro de saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”, José Jorge de Carvalho, professor titular no departamento de Antropologia da Universidade de Brasília apresenta como proposta a exitosa experiência das cotas epistêmicas e o projeto Encontro de Saberes, a que ele denomina como um encontro entre contracolonizadores e descolonizadores. Esse projeto baseia-se em quatro dimensões: a de inclusão étnico-racial, a política, a pedagógica e a epistêmica – que impulsionam a universidade num arranjo transdisciplinar de saberes e de uma reinstitucionalização descolonizadora.
“Antropologia filosófica, raça e a economia política da privação de direito”, de Lewis Gordon, filósofo da Universidade de Yale e pesquisador das obras e pensamentos de W. E. B. Du Bois e Frantz Fanon, parte da premissa dubosiana “como se sente sendo um problema?” e traça uma crítica à teoria política norte-americana e seus valores humanísticos de justiça, liberdade, igualdade e a questão racial. Explora no texto duas forças que entram em jogo no desenvolvimento de práticas legais e epistêmicas de exclusão: a invisibilidade condicionada pela criminalização e o seu efeito das práticas sociais dessa sociedade.
“Epistemologia feminista negra” de Patrícia Hill Collins parte da afirmação que o feminismo dos EUA em sua expressão de teoria social crítica reflete interesse do ponto de vista de suas criadoras e que não deve ser compreendido como universal; agregando reflexões sobre uma epistemologia que se situa nas experiências das mulheres negras, estabelecendo uma não-diferenciação entre raça e gênero. Ademais, ressalta que cada grupo deve falar a partir do seu próprio ponto de vista, visto que apresentam opressões intersectadas diferentes e, com isso, devem compartilhar seu próprio conhecimento.
No artigo “Conceitualizando gênero: a fundação eurocêntrica de conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas”, de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, pesquisadora feminista nigeriana e professora associada à Universidade Estadual de Nova York em Stony Brook, inicia o texto evidenciando a racialização do conhecimento como efeito da modernidade/colonialidade. Embasada numa crítica africana cujos conceitos feministas não estão articulados em uma família nuclear e sim em uma linhagem como sistema familiar, enaltece a necessidade dos estudos que versam sobre gênero e a subsequente preocupação em melhor analisar a categoria. Parte do pressuposto que gênero é uma construção sociocultural com base em experiências europeias e norte americanas.
“Descolonizando a raiva: a teoria feminista negra e a prática nas universidades do Reino Unido”, Shirley Anne Tate, socióloga e professora na Universidade Leeds busca descolonizar a metáfora racista da mulher negra raivosa. Propõe reflexões que causam embate no cânone feminista branco. Debruça-se na dor do racismo dentro do próprio feminismo e aponta a necessidade da construção de comunidades afetivas para usar a raiva – oriunda não da mulher negra, mas do sistema que emana do próprio feminismo supremacista branco e do heteropatriarcado.
“A Marcha das Mulheres Negras conclama por um novo pacto civilizatório: descolonização das mentes, dos corpos e dos espaços frente às novas faces da colonialidade do poder”, Angela Figueiredo – brasileira, professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e associada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro da UFBA) – busca rememorar, a partir de um ponto de vista coletivo, a construção política e de afetos da marcha da beleza ocorrida em 2015, em Brasília. Afirma que este foi um evento civicamente representativo no qual diferentes mulheres negras se auto organizaram numa ação coletiva lutando para conquistar direitos e oportunidades para mulheres negras.
“O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos”, Nilma Lino Gomes, pedagoga brasileira, professora da graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública federal. Aborda a existência de uma perspectiva negra educacional nos processos de descolonização dos currículos como resultado da luta comprometida, política e epistemológica do Movimento Negro, que produz e sistematiza saberes. Sugere a ampliação da luta para além do campo curricular construindo uma ruptura epistemológica também nas estruturas políticas, na saúde, na justiça, nas estruturas sociais associando pensamentos engajados e ação.
No artigo “Convergências entre intelectuais do Atlântico Negro: Guerreiro Ramos, Frantz Fanon e Du Bois”, Joaze Bernardino Costa, pós-doutor em Estudos Étnicos, professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Problematiza os silêncios na história impostos pela hegemonia preponderante – a relação de conceitos já abordados pelo sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos. Aborda três temas: a reação à definição do negro como problema, a constatação da patologia da sociedade moderna colonial e a revolução política epistemológica a partir da afirmação de lócus de enunciação da população negra.
“Quem negro foi e quem negro é? Anotações para uma sociologia política transnacional negra” de Valter Roberto Silvério, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Propõe que o conceito de transnacionalismo negro já existia desde o Século XIX manifesto nas preocupações sociais e na luta política travadas por intelectuais e ativistas negros ao criarem jornais, periódicos, revistas e associações com diferentes propósitos.
“Por um constitucionalismo ladino-amefricano”, Thula Pires, brasileira, doutora em Direito e professora nos cursos de Graduação e Pós-graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio, inspira-se na antropóloga brasileira Lélia Gonzales e seus conceitos de “amefricanidade” e “Améfrica Ladina”. Ressalta a similaridade entre os continentes africano e americano a partir do processo diaspórico desencadeado pela colonização resultando em resistências. Ressalta ainda, que, os saberes produzidos por mulheres negras e indígenas devem ser inspiradores de lutas enquanto práticas políticas do poder, do saber, do fazer e ser.
“Descolonizando a terra, desembranquecendo a sociologia: questões a partir da África do Sul contemporânea”, Marcelo C. Rosa, doutor em sociologia e Professor Associado no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília aborda a questão da terra desvinculada da questão agrária do capital, inferindo acerca duma analise crítica no prisma da sociologia da terra que opta pela perspectiva epistemológica racializada inspirada no agricultor branco ocidental. Propõe, então, uma mudança de paradigma adotando o pensar a terra como território coletivo. Nesse sentido, afirma que não são os sem-terra e indígenas que precisam de terras, mas é a terra que têm diretos a eles.
No artigo “Ubuntu: por uma outra interpretação de ações afirmativas na universidade”, Wilson Roberto de Mattos, doutor em História, professor adjunto da Universidade do Estado da Bahia, traz a experiência da implantação das políticas afirmativas na UNEB e ressalta que o conhecimento sobre aspectos históricos e culturais comparáveis e sugestivos das sociedades africanas pode ser um caminho promissor. Sobre a experiência das políticas afirmativas, salienta que a inclusão de negros e indígenas na universidade tem operado, ainda que paulatinamente, no sentido de provocar modificações na própria cultura universitária.
As reflexões trazidas em “Etnografia e emancipação: descolonizando a antropologia na escola pública”, de Osmundo Pinho, doutor em Ciências Sociais, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia apontam a experiência de pesquisa em uma escola pública sobre subjetividades masculinas racializadas. Apresenta como resultado a reflexão de prática localizada em condução mais ampla com uma antropologia crítica ou engajada a partir da metodologia de grupo focal. Preocupa-se com a prática de poder e de consciência crítica, ao contrário do que se preocupam as pesquisas antropológicas preocupadas em “devolver” algo para os nativos.
Logo, cabe ressaltar que os artigos que compõem a obra são escritos por autores/as com diferentes lócus de enunciação, nem sempre utilizando dos conceitos que comumente identificamos como conceitos da colonialidade, mas questionando as diversas formas de dominação e opressão colonial – problematizando, em uníssono, as possibilidades de novas esperanças e transformações. Assim, a leitura dessa obra contribui com nossas lutas por outra sociedade mais justa.
Os artigos que compõe essa obra são um convite para a continuação de uma leitura atenta em obras de intelectuais negros e negras, homens e mulheres pertencentes a povos originários que em diferentes territórios e tempos históricos anunciavam resistências perante diversos tipos de violências. Estes escritos nos inspiram para realizar mudanças necessárias para contribuir com um mundo menos violento ao registrar como epígrafe o verso inicial da Canção de Liberdade de Bob Marley, o qual nos conclama a “emancipar-se da escravidão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes”.
Notas
2 Psiquiatra, filósofo e ensaísta da Martinica, deixou de herança importantes contribuições para o debate sobre negritude e colonização destacam-se os livros Pele negra, máscara branca (1952) e Os condenados da terra (1961).
3 Poeta martinicano, dramaturgo, ensaísta e político da negritude.
4 Poeta brasileiro, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras.
5 Educador e Patrono da Educação Brasileira.
Resenhista
Tatiana de Oliveira Santana – Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: tati_ubuntu@hotmail.com
Referências desta Resenha
BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. (Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019. Resenha de: SANTANA, Tatiana de Oliveira. Refletindo sobre a decolonialidade com intelectuais negros brasileiros e as experiências de política e de afeto. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 34, p. 227- 232, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]