1968: Eles só queriam mudar o mundo | Regina Zappa e Ernesto Soto
Em um mundo onde movimentos sociais ainda engatinham precariamente, posto que são sufocados por regimes autoritários, exclusão das minorias e opressão exercida pela classe dominante, os jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto, em sua obra “1968: Eles só queriam mudar o mundo”, discorrem sobre os elementos artísticos, culturais e sociais que marcaram o referido ano no Brasil e no mundo. Buscando resgatar experiências e relatos no período, os autores ressaltam memórias e fatos que influenciaram os desencadeamentos dos movimentos sociais no final da década de ‘60 e a busca pela liberdade coletiva.
Dividido em 12 capítulos nomeados seguidamente conforme os meses do ano, o livro busca, através de uma série de imagens, depoimentos, composições artísticas e relatos de pessoas que estiveram presentes em 1968, discutir as consequências (in)diretas de vários acontecimentos históricos, como a Guerra do Vietnã, os Panteras Negras, os desdobramentos dos AI-5 no Brasil, as agitações na França e as mortes de Martin Luther King e John Kennedy, problematizando, assim, tais eventos e recuperando as lutas travadas a partir das insatisfações populares, desprezos e preconceitos.
1968 foi um ano repleto de lutas coletivas, um campo de disputas, conquistas e, ao mesmo tempo, retrocessos na política. É conhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o “Ano Internacional dos Direitos Humanos”, dada a sua expressão de lutas e conquistas. É um ano decisivo para os jovens, sobretudo aos das esquerdas, os quais se manifestaram através de passeatas, encontros hippies, teatros, filmes, músicas e outros encontros para protestarem contra os abusos cometidos pelos governos e reivindicarem a paz mundial, exigindo reformas de base. Entretanto, não foram somente os estudantes que apareceram como personagens principais, mas também o movimento negro, o movimento feminista e os ecologistas defenderam os valores da igualdade de direitos.
No primeiro capítulo, “Janeiro: Prenúncios de primavera, conflitos antigos e corações novos”, os autores destacam os fatores que desencadearam os choques políticos e os movimentos sociais que começaram a surgir no final da década de ‘60, entre eles a influência da música no cenário internacional, o movimento hippie em Nova York, os protestos contra a Guerra do Vietnã e as poesias que se difundiram como lutas ideológicas. Destaca-se na moda desse período as roupas geométricas lançadas pelo estilista Pierre Cardin e as minissaias confeccionadas por Mary Quant. Na área da saúde, o cirurgião Christiaan Barnard e sua equipe na África do Sul realizaram com sucesso o segundo transplante de coração do mundo. Porém, as notícias e os desdobramentos históricos nem sempre são felizes, há também os desfortúnios da humanidade provocados pelo jogo macropolítico e por ambições individuais, como a troca de tiros na fronteira entre Israel e Jordânia, o envio de tropas americanas ao Vietnã e as ditaduras que eclodiram em vários lugares, como na Grécia e na América Latina, inclusive no Brasil. A contracultura, movimento artístico-cultural que produziu inúmeras críticas aos governos e autoridades da época, se espalhou velozmente pelo mundo, marcada pelo seu caráter denunciador dos problemas socioeconômicos, ao mesmo tempo em que fomentava o questionamento da situação política.
No Brasil tivemos o Cinema Novo, o Teatro de Arena, a peça Roda Viva e o Movimento Tropicalista de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Jards Macalé, Gal Costa, Hélio Oiticica, Torquarto Neto, Os Mutantes, dentre outros. No segundo capítulo, “Fevereiro: Avanços e recuos no Vietnã”, Zappa e Soto (2018) preocupam-se em estabelecer as causas e efeitos da guerra no continente asiático e enfatizar os movimentos de protestos ao redor do mundo. Vale destacar os chamados Comitês Vietnã, grupos franceses que fizeram manifestação de oposição aos americanos no território asiático, e em Berlim, estudantes liderados por Rudi Dutschke, principal líder estudantil alemão, saíram às ruas para protestar contra a guerra.
A Guerra do Vietnã foi um conflito que ocorreu durante as décadas de ‘60 e ’70 no contexto da Guerra Fria tendo por influência os Estados Unidos da América (EUA) e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Até a Segunda Guerra Mundial, o Vietnã era colônia francesa e, após a Guerra, o país iniciou seu processo de independência. Em 1954, o principal líder da resistência vietnamita, Ho Chi Minh, propôs ao país a consolidação de um Vietnã Socialista. Logo depois, no mesmo ano, ocorreu a Conferência de Genebra, que dividiu o Vietnã em duas áreas, respectivamente influenciadas pela URSS e pelos EUA, o Vietnã do Norte e o Vietnã do Sul, porém, dois anos passados, houve um plebiscito em que a população deveria votar para a unificação do país, adotando um dos sistemas. A possibilidade de uma vitória do Norte colocaria em risco a hegemonia e, consequentemente, os interesses dos americanos, razão pela qual eles investiram massivamente em armas e soldados para o conflito contra o Norte, que acabou avançando com suas tropas em direção à capital do Sul, Saigon, e impediu a conquista dos americanos. O resultado da Guerra foi assombroso, mais de 60 mil soldados mortos e milhares de feridos. Esse quadro repercutiu em todo mundo, levando os movimentos estudantis e a opinião pública americana a se organizarem contra a Guerra.
Já nos Estados Unidos, um forte movimento começa a se consolidar: a luta dos negros pelos direitos civis, principalmente após 1955, com Rosa Parks. Os autores elencam uma cena marcante, o “pódio da discórdia”. Em 1968, pela primeira vez na história, um país da América Latina sediava uma Olímpiada, na Cidade do México. Os XIX Jogos Olímpicos marcaram mais do que simplesmente o interesse dos argentinos, americanos e franceses de sediarem o evento, mas também a presença da Alemanha Ocidental e da Alemanha Oriental e o gesto histórico dos atletas Tommie Smith e John Carlos. O ato repercutiu em todo o mundo, sendo símbolo da luta dos negros contra o racismo e os abusos cometidos pelo Estado opressor. Como ressaltam os jornalistas, o gesto de Smith e Carlos é uma resposta contra as insatisfações dos negros e, principalmente, um protesto contra o regime de segregação racial americana.
No quarto capítulo, “Abril: Cavalos e espadas contra padres”, Zappa e Soto destacam a ação dos militares para inibir os protestos que tomaram conta do Brasil. Foi celebrada, na Igreja da Candelária, no Centro do Rio, a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís. No final da missa houve conflito entre militares e os fiéis que estavam saindo, episódio que revoltou a população. Na Alemanha, o dirigente da Liga de Estudantes Socialistas, Rudi Dutschke, foi baleado com três tiros na cabeça por um militante de extrema direita, Josef Bachman. Já na França, o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit foi preso. Percebe-se que os estudantes brasileiros, alemães e franceses estavam diretamente ligados às novas propostas e ideias de revolução como mecanismo de luta e sentiram-se no direito de protestar. A juventude foi o principal motor da esquerda nesse momento, embora não tenham sido os únicos a lutarem e a ir para as ruas, mas também, por exemplo, o movimento operário, o movimento feminista, entre outros. De forma geral, todos lutavam pela liberdade, pelo fim dos abusos cometidos pelo estado opressor e por garantias de liberdade, mas o que os diferenciava eram suas especificidades, como no caso do movimento negro, que lutava por garantias de liberdade e acesso à política, ou do movimento feminismo, que reivindicava participação na política, e, ainda, dos ecologistas, pela sustentabilidade e não agressão à natureza.
A situação nos Estados Unidos não foi diferente, os estudantes também foram marcantes na cena. Frases de protesto contra o regime de segregação racial começaram a surgir, como “só o povo organizado derruba a ditadura”, “Liberdade Já”, “Poder Negro”, “Igualdade Racial”, etc. Zappa e Soto (2018) dizem que:
A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos continha um potencial tão explosivo que não apenas apavorava a conservadora classe média americana, mas também a ala progressista. Uma nova geração de jovens militantes negros tinha entrado em cena, colocando em xeque as propostas e valores defendidos por organizações tradicionais, como a veterana Southern Christian Leadership Conference (SCLC), fundada e dirigida pelo pastor Martin Luther King, prêmio Nobel da Paz, o mais respeitado e famoso militante negro dos Estados Unidos. Luther King e toda a geração que iniciou o movimento pelos direitos civis cultuavam a não violência como inspiração e método de luta. Mahatma Gandhi e sua campanha contra o colonialismo inglês na Índia eram os exemplos a serem obrigatoriamente seguidos (p. 95).
Sem dúvidas, Martin Luther King foi o grande símbolo da luta e resistência dos negros nos Estados Unidos. Precursor da luta não armada e do protesto pacífico, Luther King marca sua campanha pelo amor ao próximo, inclusive recebendo em 1964 o Prêmio Nobel de Paz pelo combate às desigualdades raciais pela não violência. O pastor protestante se tornou conhecido pelo seu grande discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho), o sonho de liberdade, o qual foi gravemente interrompido no dia 4 de abril de 1968, em que foi assassinato com um tiro de fuzil em Memphis, Tennessee. As mobilizações causadas pela morte de Luther King repercutiram não só nos EUA, mas no mundo todo. O líder do movimento negro morreu, mas os protestos e as mobilizações continuaram.
No Brasil, no primeiro dia de maio, Dia Internacional do Trabalho, uma multidão de dez mil pessoas, entre estudantes, operários, artistas e intelectuais, partiu para a praça da Sé em manifestação, inicialmente pacífica, que começou abrindo espaços para as reivindicações dos operários, representandos por José Ibrahin, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. Já no Distrito Federal, estudantes da Universidade de Brasília (UnB) foram surpreendidos com a invasão dos policiais militares e conduzidos para a quadra de basquete do campus. Foram encontrados nos alojamentos garrafas, substâncias químicas para confecção de explosivos e um coquetel molotov. As paredes da universidade foram pichadas com as palavras de ordem: “Fora o acordo MEC-Usaid”, “Fora a comissão policial”, “Aliança entre os operários e os estudantes”, “Povo no poder”, “Abaixo a burguesia”, “Fora o reitor”.
Outro protesto estudantil, dessa vez na França, foi marcado por revoltas e reivindicações dos alunos. Dentre as pautas do grupo, destacam-se as campanhas contra o Plano Fouchet, o qual visava reformular o ensino superior e o ingresso de estudantes de baixa renda nas universidades, além de protestos contra o mundo pós-guerra e as ocupações imperialistas. Segundo os autores, o protesto começou em 22 de março de ‘68, em Nanterre, liderado pelo estudante Daniel Cohn-Bendit em virtude da prisão de membros do Comitê contra a Guerra do Vietnã. Alguns dias depois, os protestos ocorreram simultaneamente em Paris e Nanterre, com conflito de estudantes e policiais.
O movimento estudantil acabou influenciando os operários franceses, que protestavam através de passeatas, greves, manifestos em rádios e televisões contra a brutalidade da repressão dos militares. Muros foram pichados com “quanto mais faço amor, mais quero fazer revolução; quanto mais faço revolução, mais quero fazer amor” e “é proibido proibir”. As greves, inclusive, chegaram a atingir a montadora de carros Renault e companhias de energia elétrica, industrial e petroquímica. Os jovens franceses foram influenciados por inúmeros intelectuais, como Wilhelm Reich, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse, trazendo para a França leituras contra a opressão do Estado e os poderes abusivos dos militares, e a favor do fim da Guerra do Vietnã e de movimentos de cunho pacífico.
A morte do jovem estudante brasileiro Edson Luís no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, marca os primeiros sinais de protestos e manifestações no Brasil. Aconteceu no dia 26 de junho a Passeata dos Cem Mil, protesto contra a Ditadura Militar. O principal líder do movimento estudantil brasileiro de ‘68, Vladimir Palmeira, reivindicava juntamente com grande parte da população brasileira a liberdade de expressão, liberdade sexual e uma revolução dos padrões familiares, além de melhorias no quadro da educação e protestos contra os abusos exercidos pelo Estado e pelos militares. Assim como o alemão Daniel Cohn-Bendit, Vladimir Palmeira também mobilizou os estudantes, conscientizando-os, permitindo uma reflexão crítica da sociedade e possibilitando a leitura contra o sistema capitalista, repressivo e opressivo.
No oitavo capítulo, “Agosto: Mês do desgosto”, os autores recuperam as manifestações ocorridas no referido mês no Brasil, entre elas as dos operários em greve em Osasco, protestos contra a prisão do líder estudantil Vladimir Palmeira, a nova invasão da Polícia Militar à Universidade de Brasília e os ataques ao Teatro Opinião no Rio de Janeiro. 1968 é um ano de tensão política e física por conta do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), o qual sufocou as liberdades individuais e coletivas, suspendendo quaisquer garantias constitucionais e direito de expressão. Foi uma resposta imediata ao discurso do deputado Márcio Moreira Alves, o Marcito.
Já no último capítulo, “Dezembro: Nuvens cinzentas no horizonte”, Zappa e Soto pontuam sobre as corridas armamentistas e espaciais que marcaram aquele ano. Estados Unidos e União Soviética disputaram uma corrida em busca de armamentos e pela conquista da Lua, um novo espaço a ser descoberto. Na véspera do Natal, a agência americana NASA lançou a nave Apolo 8 e as primeiras fotos da Lua chegaram ao noticiário, inspirando poetas e músicos. Por fim, os autores apontam como a Igreja Católica, através da Teologia da Libertação (TL), movimento de releitura marxista, inspirou os fiéis e contribuiu para as lutas políticas e sociais. Entre as principais críticas trazidas pela TL, encontram-se denúncias contra o latifúndio, o capitalismo e as opressões patriarcais. Inspirada por Frei Betto e Leonardo Boff, a TL se posiciona contra as injustiças sociais, inaugurando as chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
O livro “1968: Eles só queriam mudar o mundo” contribui como um levantamento de ações e eventos ocorridos na década de ’60, a saber, as experiências, mobilizações, lutas e protestos no Brasil e ao redor do mundo por um mundo mais democrático e justo. Os jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto, através de imagens, reportagens e textos, recuperam as resistências e as batalhas travadas contra o regime militar, o Estado e a opressão, procurando analisar as causas e os efeitos provocados por esses eventos. Desse modo, a partir de uma cronologia dos fatos, apontam como o ano de 1968 inaugurou no campo da resistência e da luta uma nova forma de se expressar a coletividade, trazendo a valorização da democracia e da consciência pública cidadã. O livro permite entender os principais movimentos articulados no final da década de ‘60 como resposta às insatisfações políticas do período e auxilia na discussão do presente momento, em que os valores conservadores e as políticas opressoras se mantêm dominantes, isto é, em que os poderes exercidos pelos governantes sufocam as opiniões públicas e oprimem a liberdade.
Resenhista
Lucas da Silva Luiz – Mestre em História – Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Uberlândia, MG – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: lucao.ufu@gmail.com
Referências desta Resenha
ZAPPA, Regina; SOTO, Ernesto. 1968: Eles só queriam mudar o mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Resenha de: LUIZ, Lucas da Silva. História e Cultura. Franca, v.9, n.2, p. 610-621, 2020. Acessar publicação original [DR]