1968 – 50 anos depois: Culturas – artes – políticas: utopias e distopias do mundo contemporâneo | Alcides Freire Ramos e Rosangela Patriota
Em história, é abstrata toda “doutrina” que recalca sua relação com a sociedade. Ela nega aquilo em função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que a situa de fato, sem que ela o diga ou o saiba: o poder que tem sua lógica; o lugar que sustenta e “mantém” uma disciplina no seu desdobramento em obras sucessivas, etc. O discurso “científico” que não fala de sua relação com o corpo social é, precisamente, o objeto da história. Não se poderia tratar dela sem questionar o próprio discurso historiográfico. Michel de Certeau
Po di Sangui 1, filme de Flora Gomes, discute questões amplas sobre a produção do conhecimento racionalista e a magia espiritual de Guiné-Bissau. Na aldeia Amanha Lundju, sempre que uma criança nasce, os demais adultos plantam uma árvore para simbolizar o seu crescimento espiritual. A árvore cumpre a função de duplo, de extensão corpórea e existencial, que em muitos casos opera na posição de escuta dos sofrimentos do sujeito, gerando um efeito terapêutico que dilui a agonia interna. A dramatização é desfeita pela fala, dissemelhante, por exemplo, ao drama vivido por Willy Loman, no filme Death of a Salesman 2, de Volker Schlöndorff, que sofre internamente sem a presença de um outro que o pudesse escutar para a elaboração dos seus sofrimentos, ponto dramático que o leva ao trágico falecimento/suicídio.
Desmatar ou cortar uma árvore seria o mesmo que destruir a si. O filme estabelece esse contraponto ao apresentar um pesquisador que chega à aldeia para catalogar, nomear e extrair madeira para comercialização. 3 A obra não exibe a luta entre a aldeia – representada pela feitiçaria de Calacalado – e o pesquisador, porém, marca a importância do encantamento para a mobilização, resistência e reestruturação daquele povo. É por meio da magia que a unificação se materializa, assim como a imagem e o símbolo de Dona Carmelita para a luta do povo de Bacurau. 4
Do ponto de vista epistemológico, a perspectiva apresentada no filme compreende a produção de conhecimento a partir da urdidura dialógica entre sujeito e objeto. Os sujeitos, as árvores e a elaboração de sentidos são organizadas de maneira mútua, diferente da relação dicotômica do racionalismo do século XVIII, em que são idealizados sujeito e objeto “puros” aos quais seriam desnudados para exporem a sua forma objetiva. Debate teórico-metodológico muito bem discutido por Adalberto Marson (1984) no texto Reflexões sobre o procedimento histórico.
O livro 1968 – 50 anos depois: Culturas – Artes – Políticas: utopias e distopias do mundo contemporâneo é organizado5 no âmago desta discussão. Ao longo da obra, o acontecimento maio de 1968 não é tratado como fato que precisa ser resgatado ou posto à luz no presente por meio de instrumentos eficazes e confiáveis para o alcance da objetividade histórica. Algumas discussões presentes no livro mostram-se divergentes no campo teórico e epistemológico, contudo, a constância ou o ponto em comum entre eles é a preocupação em pensar o passado enquanto documento/monumento para assim refletir acerca dos efeitos no presente. O objeto analisado não é concebido como matéria de que precisa ser lida no seu interior para alcançar a verossimilhança. A própria urdidura dos motivos para a existência de tal objeto também é levada em conta. Não em um sentido fragmentado, mas dialógico entre sujeito, objeto, passado e presente, assim como no filme de Flora Gomes.
É investigar como este objeto foi produzido, tentando reconstituir sua razão de ser ou aparecer a nós segundo sua própria natureza, ao invés de determiná-los em classificações e compartimentos fragmentados, pelo que “não é”, por estar “fora de lugar”, ou por ter nascido “tardiamente”. É, finalmente, entender a objetividade como o ato de fazer emergir a trama de relações que tecem a síntese histórica que é o objeto, não uma coisa abstrata (separada) e observada à distância pelo investigador, mas algo que, ao mesmo tempo, contém (e participa de) uma explicação do real histórico, tanto o real do passado quanto o do presente. (MARSON, 1984, p. 49).
O pesquisador, ao investigar as condições de produção do objeto, elabora instrumentos capazes de demonstrar e recordar vícios interpretativos que foram conservados no tempo, no qual, segundo Freud (2010), são rememorados pela repetição. O que para nós, no presente, parece ser crítico e revolucionário, muitas das vezes são reproduções de memórias históricas. O dualismo alienado/revolucionário é um exemplo desse recalcamento. O primeiro seria sentimental, egoísta, feminino – carrega até um tom misógino – e desprovido de debate político; já o segundo seria racional, público, ético e preocupado com as transformações políticas e sociais. Ler uma obra à luz do dualismo alienado/revolucionário não se caracteriza como leitura crítica, mas, como aponta Freud, a expressão da memória recalcada que, não elaborada, manifesta-se como repetição.
A preocupação do livro 1968 – 50 anos depois ao transitar entre passado e presente gira em torno desse desenlace histórico. Os textos abordados não retratam o passado como acontecimento que precisa ser lembrado para no presente ser reproduzido. O movimento interpretativo é outro, uma vez que o deslocamento à outrora auxilia na compreensão dos vícios e das repetições de memórias históricas, como a mitificação do passado, a reprodução de marcos e o apagamento de contradições do processo histórico. Elaboração que retira o passado do esquecimento e nos ensina a lidar com a sua dimensão traumática no presente. Estevão Rezende Martins faz isso ao mostrar a articulação orgânica entre cultura e sociedade; Roberto Romano mediante às acepções de utopia e a contribuição do maio de 1968; Pedro Spinola Pereira Caldas articula a descontinuidade a partir de Hayden White; Durval Muniz por meio da produção de presença de Hans Ulrich Gumbrecht; Ismail Xavier através do cinema brasileiro dos anos 1960 e o conceito de drama barroco para Walter Benjamin; Heloisa Selma Fernandes Capel pelo fogo das ideias, de Marcelo Brodsky; Thaís Leão Vieira pela narrativa do sentir em Clarice Lispector; Rosangela Patriota através das resistências pelas brechas da dramaturgia da década de 1970; Edvaldo Correa Sotana por intermédio das redes sociais e as continuidades e rupturas sobre o imaginário do anticomunismo; e, Alcides Freire Ramos, ao nos lembrar de que mesmo inseridos em memórias históricas comuns, a recepção sempre apresenta um grau de polissemia, o discurso nunca é unívoco.
Recordar, falar e desvencilhar-se de uma memória histórica ou de um trauma é conflitoso e, por esse motivo, carrega grandes chances de provocar resistência que se expressam pela repetição. A questão fica ainda mais complexa quando o Estado e uma parcela da sociedade tentam impor um pacto de silêncio acerca das violências cometidas pelos militares, por exemplo, a anistia de 1979 e a formação da Nova República; tempos de “ruptura” com a Ditadura Militar. No entanto, como elaborar um trauma que não é falado? Podemos pensar o mesmo em relação à escravidão. São inúmeras as tentativas de quebra do pacto de silêncio dos horrores da Ditadura, talvez, a Comissão da Verdade de 2012 seja a tentativa mais expressiva na esfera institucional. Porém, rememorar mexe com os sentimentos das pessoas, tanto dos torturados, quanto dos torturadores, que farão de tudo para saírem ilesos aos crimes que cometeram. Atitudes como a do pastor Cláudio Guerra 6 são raras, um ex-torturador que concordou em contribuir com a Comissão da Verdade e falar tudo o que sabe e fez, desde assassinatos até incineramento de corpos ilegalmente em fazendas, no Rio de Janeiro. É neste imbróglio entre fala, recordação, repetição, resistência e traumas da Ditadura que André Luis Bertelli Duarte levanta a sua hipótese.
A hipótese central que defendo aqui é que a política pública de memória e reparação, que desencadeou a criação da Comissão da Verdade, foi responsável pela “quebra” do consenso em torno do esquecimento (delineado pela lei de anistia) que deu origem à Nova República. (DUARTE, 2020, p. 252).
Falar da memória da Ditadura Militar, por envolver questões sentimentais e de extrema violência, parece perturbar mais os corações das pessoas do que outras temáticas, que em alguns casos são consideradas triviais. No entanto, se a trivialidade a constituísse, as resistências não seriam tão expressivas, por exemplo, o debate acerca da importância das linguagens artísticas no fazer e pensar histórico. Em alguns casos, no calor do debate teórico, a resistência ao tema eclode na consciência ao buscar uma suposta objetividade científica em fontes oficiais; movimento sintomático de um passado que não foi elaborado, mas, segundo Freud, por estar recalcado, retorna como repetição. No entanto, não é por que algumas pessoas se colocam resistentes de que precisamos parar de falar do tema. Pelo contrário, é nesse momento que a saturação se torna necessária.
Com frequência fui consultado a respeito de casos em que o médico se queixou de haver mostrado ao doente sua resistência, sem que no entanto algo mudasse, a resistência havia mesmo se fortalecido e toda a situação se turvado ainda mais. Aparentemente, a terapia não estava indo adiante. Essa expectativa sombria resultou sempre errada. Em geral a terapia fazia progresso; o médico tinha apenas esquecido que nomear a resistência não pode conduzir à sua imediata cessação. É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida, para que a elabore, para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. Atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento. (FREUD, 2010, p. 154 – 5).
Nomear não é o suficiente, como aponta Freud, mas diz respeito a uma parte importante do processo. O livro 1968: 50 anos depois contribui com a elaboração urgente do passado, não no sentido teleológico de refinamento do tempo, ou da colagem direta de exemplos de resistências e de lutas do maio de 1968 no presente. A obra empenha-se em vasculhar as condições das calcificações das memórias históricas da década de 1960 e, a partir da fala, encontrar outras formas de se colocar no mundo para romper com as repetições; assim como Dou faz no filme Po di Sangui ao conversar com a sua árvore gêmea e Calacalado no intuito de encontrarem mecanismos para combater os sofrimentos internos e externos causados pelo saber/poder que sectariza a vida e o movimento dialético entre sujeito e objeto.
Notas
1 Po di Sangui. Direção: Flora Gomes. Montagem: Christiane Lack. Produção: Arco Iris, Cinétéléfilm, SB Films, Les Matins Films. Intérprete principal: Ramiro Naka. DVD. 90 min. Color: Colorido. 1996.
2 Death of a Salesman. Direção: Volker Schlöndorff. Escritor: Arthur Miller. Produção: Roxbury Productions, Punck Productions. DVD. 136 min. Color: Colorido. 1985.
3 TzvetanTodorov discute, a partir de Cristóvão Colombo, a importância da palavra e da nomeação das coisas para o processo de colonização da América, para mais informações, ver: TODOROV, 1982.
4 Bacurau. Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Produção: Saïd Ben Saïd e Michel Merkt. 131 min. Cor: Colorido. Agnês Chabot. 2019.
5 A obra é fruto de reflexões do IX Simpósio Nacional de História Cultural organizado pelo GT Nacional de História Cultural.
6 NETTO; MEDEIROS, 2012.
Referências
Bacurau. Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Produção: Saïd Ben Saïd e Michel Merkt. 131 min. Cor: Colorido. Agnês Chabot. 2019.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Death of a Salesman. Direção: Volker Schlöndorff. Escritor: Arthur Miller. Produção: Roxbury Productions, Punck Productions. DVD. 136 min. Color: Colorido. 1985.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Obras completas volume 10 – Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo. Companha das Letras. 2010.
MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, Marcos A. (Org.). Repensando a história. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
NETTO, Marcelo; MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2012.
Po di Sangui. Direção: Flora Gomes. Montagem: Christiane Lack. Produção: Arco Iris, Cinétéléfilm, SB Films, Les Matins Films. Intérprete principal: Ramiro Naka. DVD. 90 min. Color: Colorido. 1996.
RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). 1968 – 50 anos depois: Culturas – artes – políticas: utopias e distopias do mundo contemporâneo. São Paulo: Editora Liber Ars, 2020.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1982
Resenhista
Felipe Biguinatti Carias – Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da mesma Universidade. Estudante de doutorado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) também da UFMT. Bolsista CAPES com projeto orientado pela professora Dra. Thaís Leão Vieira. E-mail: felip.ufmt@gmail.com
Referências desta Resenha
RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). 1968 – 50 anos depois: Culturas – artes – políticas: utopias e distopias do mundo contemporâneo. São Paulo: Editora Liber Ars, 2020. Resenha de: CARIAS, Felipe Biguinatti. Do acontecimento ao texto: o livro 1968 – 50 anos depois e a escrita como elaboração no presente. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 17, n. 2, p. 760- 766, Jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]