O Golpe de 1964, sua natureza e suas características básicas, começa somente agora, cinquenta anos depois do ocorrido, a ter sua história reconstruída de forma rigorosa e diversificada. Logo após o fim do Regime, entre 1984 e 1985, proclamada a “Nova República” por Tancredo Neves (em 1984), “vencidos” e “vencedores” concordavam em um ponto: “virar a página da História”. Tratava-se, ou ocultava-se, sob tal fórmula, de uma permissão e um desejo de “esquecer” os vinte anos de arbítrio, de autoritarismo e censura, pontuados por torturas, mortes e desaparecimentos. Para os “vencidos” estes vinte anos teriam sido necessários, e um dever patriótico, para o reordenamento do país em face da corrupção, inépcia administrativa e de “comunização” das instituições nacionais. Ao longo do tempo, a ordem destas premissas da “Revolução de 1964”, serão reequilibradas, ora com ênfase na “inépcia” (em especial João Goulart, o presidente deposto em 1964), ora com maior acento na “comunização” do país. Ante a dificuldade de focar com objetividade cada um destes “princípios fundadores” do Regem-me de 1964, muitos dos seus atores buscaram no chamado “clima da Guerra Fria” (como em “O Globo”, em 31 de março de 2014), a explicação plausível para a interrupção de um governo constitucional e eleito democraticamente. Esmiuçar, documentar, testar, criticar tais “hipóteses” seria voltar a 1964, tratar-se-ia de “revanchismo” ou “reescrever” a História, afirmariam seus defensores. Aqui, esqueciam-se exatamente a natureza do procedimento básico do historiador: voltar ao passado, reexaminar os fatos, questionar as razões estabelecidas e criticaras fontes.
Para os “vencedores”, por sua vez, em sua ampla maioria em 1984, “esquecer” o passado recente era um artificio fundamental para garantir a própria continuidade do processo democrático, evitando o risco de ruptura presente na possibilidade de levantar as responsabilidades pela ruptura democrática de 1964, pelas torturas e desaparecimentos e pela inépcia administrativa e corrupção, em especial nos últimos anos do regime (dívida externa, obras superfaturadas, conflitos de interesses, etc.).
Assim, para “vencidos” e “vencedores”, em 1985, o “esquecimento”, expresso de forma lapidar na Lei da Anistia de 1979 e sua reafirmação pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, construía-se no próprio fundamento da nova democracia. Importava, desta forma, em deixar para trás os fatos característicos e a própria natureza da ditadura, evitando que os bolsões “sinceros, mas radicais” do regime, colocassem em risco a nova e frágil democracia.
Da mesma forma, a composição das elites dirigentes da “Nova República”, em especial a chamada “Aliança Democrática” – formação dos partidos com Frente Liberal, ex-ARENA e ex-PSD, partido, até então, de apoio à Ditadura; PMDB, a liderança de oposição ao Regime de 1964 e sua dissidência, o PSDB, entre outros – impunha necessariamente um limite ao processo de revisão da História e de estabelecimento de responsabilidades. Assim, nomes fundamentais da Ditadura, começando pelo novo presidente, José Sarney (1930), e os condestáveis da Nova República, como Antonio Carlos Magalhães (1927 – 2007), Marco Maciel (1940), entre outros, tinham sido figuras de proa da Ditadura. Como estabelecer responsabilidades de um regime, quando a própria “Nova República”, era uma herança, e sob certa forma – como no protagonismo de vários atores – uma continuidade do regime decaído?
Desta forma, explicar-se-ia a longa, e sempre incompleta, transição do Brasil para a democracia. Um regime de transição tutelado, onde os próprios militares assumiriam papéis fundamentais na direção, ritmo e extensão da democracia – desde Ernesto Geisel (1907 – 1996) e sua abertura “lenta, gradual e segura” até o papel fundamental do general, e ministro, Leônidas Pires Gonçalves (1921), na presidência José Sarney (1985 – 1990). Por tais razões, a democratização do país e de suas instituições (a alta burocracia do Estado, as polícias, o sistema tributário e judicial, entre outros) foi parcial e a continuidade de práticas do tempo da Ditadura – como a tortura, os sequestros e desaparecimentos, o desprezo pelas necessidades populares – mantiveram-se para além de 1984, exemplificando-se numa linha reta entre os casos de sequestro, tortura e desaparecimento de Stuart Angel e Rubens Paiva até o Caso Amarildo.
Uma consequência lateral, mais absolutamente fundamental, da política de “esquecimento” foi a destruição dos documentos sobre o Regime de 1964. Os arquivos militares, e de órgãos de informação, foram aparentemente, destruídos. Contudo, a implantação da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Nacional “Memórias Reveladas”, bem como a atuação do Arquivo Nacional, no governo Dilma Rousseff, resultou, até o momento, na identificação, levantamento e produção – via depoimentos – de milhares de documentos que revelam, largamente, os traços marcantes da natureza do Regime de 1964.
Na oportunidade dos 50 Anos do Golpe de 1964, a pesquisa universitária pode, em fim, produzir um número significativo de novos trabalhos, inéditos, sobre a Ditadura. Assim, novos livros, trataram das instituições do regime, do apoio civil, do papel da Igreja, da mídia, da imprensa, da universidade, da política externa e da economia, dos partidos e o perfil de vários atores do período. Trabalhos de Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Marcos Napolitano, Carlos Fico, Rodrigo Patto Sá, Herbert Klein, Angela Castro Gomes, Lilian Schwartz, Marco Antonio Villa, entre outros e em chaves explicativas bastante diversificadas (além de um extenso esforço de reedições), abriu o caminho para uma releitura de 1964.
A Revista de História do Tempo Presente, visando marcar os 50 Anos do Golpe de 1964, decidiu-se pela publicação de alguns documentos significativos sobre o período, demonstrando a relevância da documentação disponível e ampla possibilidade de revisão do fenômeno histórico da última ditadura brasileira.
Francisco Carlos Teixeira Da Silva – Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ/UCAM. Membro da Comissão Nacional Memórias Reveladas.
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