1822-2022: museus e memória da nação/Anais do Museu Paulista/2022
Os museus são instituições que participaram ativamente da construção dos Estados nacionais a partir do século XIX. O caráter público que ganharam paulatinamente, acelerado após a emblemática conversão do Palácio do Louvre no Museu Central de Artes da República, em 1793, tornou essas instituições em um instrumento de transformação das sociedades. Espaços de instrução científica e artística, estabelecimentos de narrativas históricas e pedagogia cidadã, os museus tanto foram constituídos como espaços privilegiados de produção de conhecimento, quanto ambientes de construção e reprodução de práticas de dominação que perduram até hoje.
A grande expansão das coleções museais ao longo do século XIX acabou por impulsionar ainda mais o papel dessas instituições como produtoras de narrativas e hierarquias sociais e culturais. A estatização ou abertura das coleções artísticas monárquicas à visitação expandiu os museus de arte, que passaram a construir e enrijecer um cânone narrativo que dava centralidade às escolas italianas, francesas, espanholas, flamengas e germânicas em relação a todos os outros contextos europeus. A formação das coleções arqueológicas musealizadas fortaleceu a convicção de uma centralidade das civilizações do Crescente Fértil e Mediterrâneo como bases da civilização ocidental. A reunião de objetos pertencentes às elites políticas e lideranças militares se somaram a encomendas de pinturas e esculturas que representavam episódios e personagens do passado para a construção das narrativas nacionais de inspiração romântica. A expansão dos impérios coloniais garantiu ainda uma entrada avassaladora de coleções biológicas e geológicas que se tornaram a base dos museus de história natural, aos quais também se somavam os despojos de sociedades conquistadas, várias delas reduzidas à condição de povos primitivos.
O surgimento dos primeiros museus em território brasileiro fugiu quase totalmente dessas tendências. A formação de coleções de história natural, de etnologia e arqueologia foram largamente privilegiadas desde a criação do Museu Real em 1818, na cidade do Rio de Janeiro. Expandia-se assim um interesse pela natureza e pelos povos indígenas já presente no período colonial, quando expedições científicas, como a do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (realizada entre 1783 e 1792 na Amazônia), alimentaram as coleções metropolitanas em Portugal. Nesse sentido, o surgimento dos museus no Brasil no século XIX não foi capaz de romper com essa visão colonial redutora, que desestimulava a criação de museus de história ou de arte. Nem mesmo a qualificada produção de pinturas de história elaboradas pelos mestres e alunos da Academia Imperial de Belas Artes, resultou na criação de um museu público de arte na Corte carioca.
A criação do Museu Paraense em 1866, o Museu Paranaense em 1876 e o Museu Paulista em 1893 consolidaram no Brasil o primado museal das ciências naturais, consolidando o país no circuito de intercâmbios científicos e de coleções entre os museus ocidentais, como apontado por Maria Margaret Lopes.3 Esta primazia seria contrastada apenas no decurso do século XX. Nem mesmo o caráter múltiplo do Museu Paulista — nascido com seções de História Natural e História, desempenhando também a função de primeira coleção pública de Belas Artes — foi suficiente para que a proeminência da zoologia e da botânica pudessem ser abaladas. Foi apenas com a criação da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1905, e da progressiva conversão do Museu Paulista numa instituição prioritariamente voltada à história, a partir de 1917, que o Brasil passou a contar com tipologias museais já presentes em diversos países do continente americano, especialmente nos Estados Unidos e na Argentina.
Essa trajetória específica, em comparação com outros contextos ocidentais, redobra o interesse em compreender o papel dos museus ao longo dos duzentos anos do Brasil como país independente. Tais instituições desempenharam, por vezes tardiamente, uma mediação que integrava o país num circuito cultural e científico internacional e, ao mesmo tempo, reduzia-o hierarquicamente perante os espaços centrais do Ocidente, reforçando a interpretação de sua formação como uma ‘extensão da Europa’. As perspectivas críticas decoloniais têm favorecido para que se aumente ainda mais a atenção sobre como os museus não apenas operaram estas diferenças em dimensão transcontinental, mas as reproduziram internamente no Brasil.
Maria Odila Leite da Silva Dias4 já apontara, em meio ao ano de comemorações do sesquicentenário da Independência, como o processo de ruptura política desencadeado em 1822, largamente marcado pela continuidade institucional, estabeleceu uma “interiorização da Metrópole”, na qual o Rio de Janeiro assumira o papel centralizador, imperial e opressor de Lisboa por meio de pactos políticos que favoreciam uma metamorfose colonial dentro do que fora a América Portuguesa. O Museu Real e os demais museus de história natural e de coleções antropológicas, etnográficas e arqueológicas concentrados nas áreas litorâneas do país formaram coleções que representavam uma concentração “metropolitana” de acervos, gerando uma situação análoga às que hoje são tão questionadas internacionalmente no âmbito das antigas relações coloniais Norte-Sul. Assim, as pesquisas científicas e de coleta do Museu Nacional, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP acabaram por estabelecer uma hierarquia inversa, Sul-Norte, que dava a ainda dá ao Sudeste brasileiro, a proeminência científica e a detenção de coleções semelhantes à de instituições coetâneas europeias e estadunidenses sobre os antigos mundos coloniais. Não escapa desse aspecto centralizador nem mesmo o Museu Goeldi, que reúne acervos coletados em toda a gigantesca Amazônia — o que torna Belém também uma metrópole, à beira do Atlântico.
No âmbito dos museus brasileiros de história, as hierarquias se apresentam com outros contornos. O Museu Histórico Nacional, criado apenas no centenário da Independência do país, passa a narrar a trajetória do país a partir de um viés político conciliatório, em que a hegemonia de suas elites atravessava as rupturas políticas, sem quebra da ordem e das hierarquias sociais. Até mesmo a Abolição é compreendida como uma expressão dos embates das elites, desencadeando o fim da escravidão, processo que jamais foi visto como resultado de movimentos sociais mais alargados. Regina Abreu apontou, em seu estudo clássico sobre o MHN,5 como as elites republicanas, que tinham raízes coloniais e imperiais e que haviam orbitado a Corte, utilizaram a doação de coleções como instrumento para tornar entidades públicas extensões de suas expectativas memoriais privadas. Esse padrão se repetiu exaustivamente em instituições públicas como o Museu Imperial, o Museu da República, o Museu Paulista, o Museu Republicano Convenção de Itu, o Museu da Casa Brasileira, o Museu do Estado de Pernambuco e também nos numerosos museus históricos e pedagógicos do interior do estado de São Paulo. Por meio dessas doações, estes museus estabeleceram a hipervisibilidade não apenas das elites, mas dos legados culturais europeus aqui apropriados e reelaborados — lançando à opacidade ou à radical ausência aqueles ligados a matrizes indígenas, africanas ou imigrantes, que engendraram a sociedade brasileira. A evidente intransigência da maior parte dos museus de história perante as revisões historiográficas elaboradas a partir da década de 1960 redobra a necessidade de atenção crítica sobre essas instituições, que atuam como instrumentos de uma visão classista, excludente e celebrativa — cristalizada no exemplo do Museu Imperial, como apontou Myriam Sepulveda Santos.6
Também no âmbito dos museus de arte, cujas coleções foram quase exclusivamente formadas segundo os princípios europeus de belas-artes, as narrativas históricas se esforçaram para atrelar a produção nacional aos circuitos eruditos de filiação eurocêntrica. Expressões artísticas ligadas a outras tradições culturais foram raramente incluídas nessas coleções, não escapando de rótulos redutores, como arte popular ou arte naïf. Os padrões altamente excludentes da Academia de Belas Artes, que se desdobravam nos Salões, nas premiações e nos critérios curatoriais de formação de coleções artísticas, acabavam também por excluir imensamente as mulheres artistas das coleções museais, muito embora sua presença fosse significativa desde as décadas finais do século XIX e crescente ao longo de todo o século XX. Raros também foram os estados que conseguiram formar expressivas coleções museais de arte fora do eixo Rio-São Paulo, logrando construir outras narrativas que escapassem dos cânones associados aos movimentos e artistas reconhecidos nas duas maiores cidades do Brasil. A mais consistente exceção a esse padrão pode ser atribuída ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, fundado em 1954, que construiu um acervo que abrange toda a história da arte brasileira, assim como seus coetâneos, o Museu Nacional de Belas Artes, aberto em 1937, e a já mencionada Pinacoteca do Estado de São Paulo.
A criação de museus de arte moderna em São Paulo (1948), Rio de Janeiro (1948) e Salvador (1960) reforçou mais uma vez os vínculos dos museus de arte com os parâmetros artísticos europeus e norte-americanos, ainda mais acentuado no caso paulistano por sua articulação direta com a Bienal de Arte. O Museu de Arte de São Paulo (MASP), fundado em 1947, intensificou novamente essa estreita ligação dos museus de arte brasileiros com o Atlântico Norte em função do seu perfil curatorial, marcado por se concentrar em reunir a mais importante coleção sul-americana de old masters e impressionismo francês. Apenas no século XXI o acervo passou a agregar segmentos de arte africana e um comodato de artes andinas pré-colombianas, consolidando seu perfil de um museu cosmopolita, ainda que as coleções europeias sejam largamente majoritárias e tragam ao museu maior reconhecimento internacional. Na década de 2010, o MASP contrastou seu perfil tradicional de museu voltado à arte estrangeira, passoando a priorizar a aquisição de arte brasileira, estimulada por novos critérios decoloniais e de gênero.
A riqueza econômica e concentração demográfica do estado de São Paulo ao longo do século XX foram fatores que propiciaram a essa unidade da federação não apenas o estabelecimento de muitos dos museus de maior extensão e complexidade no país, quanto uma evidente concentração estatística. Coletados na primeira edição de Museus em números, editada pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), os dados oficiais federais indicam que, em 2010, o país contava com 3.025 instituições museológicas, sendo: 517 instituições no estado de São Paulo, num total de 1.151 no Sudeste; 878 museus na região Sul; 632 no Nordeste; 218 no Centro Oeste; e 146 na região Norte. Estas discrepâncias regionais mantém uma profunda desigualdade museológica no cenário nacional, o que reorganiza as instituições por sua condição de produção de conhecimento e de discursos e narrativas — num devir ainda bastante complexo.
Ao se completar o bicentenário da independência do Brasil, já se somam 204 anos desde a fundação do primeiro museu brasileiro: o Museu Real, atual Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A proximidade das duas datas reaviva o trauma vivido em 2 de setembro de 2018, quando essa instituição teve seu principal edifício devastado por um incêndio avassalador, que destruiu quase integralmente as coleções etnológicas e arqueológicas, além de eliminar o arquivo histórico e parte das coleções de ciências naturais. Esse episódio também impactou segmentos estrangeiros do acervo, como a coleção egípcia, a de afrescos pompeanos e a do Reino do Daomé — que tinha o trono do rei Adandozan/Adanuzam, único conservado fora do Palácio Real de Abomey (Benin), segundo informou Pierre Verger, e que foi perdido para as chamas.
Esse incêndio, certamente um dos maiores ocorridos em instituições museais no mundo, integra uma sucessão recente de outras ocorrências trágicas no Brasil, que, apenas na cidade de São Paulo, aniquilaram as coleções mais antigas de serpentes e de artrópodes do Instituto Butantã (2010), quase toda a coleção de moulages obtidas pelo Liceu de Artes e Ofícios na Europa durante a Belle Époque (2014), as instalações e equipamentos do Museu da Língua Portuguesa (2015) e as reservas técnicas da Cinemateca Brasileira (2016 e 2021), onde foram consumidos filmes de curta e longa metragem, cinejornais e documentos. Essa sequência desastrosa não pode ser tomada como coincidência fortuita, mas sim como uma crise de investimentos públicos e privados que sequer poupa a cidade mais rica do país e que já provocara, no Rio de Janeiro, o incêndio que dizimou o Museu de Arte Moderna, em 1978.
Apesar dessas ocorrências, o quadro geral dos museus brasileiros tem se fortalecido. Em 2022, atualizando os dados da década passada, a plataforma Museusbr, do IBRAM, totaliza 3.916 instituições no país, estando entre elas 683 museus no estado de São Paulo, que mantém a liderança entre os 1.552 museus do Sudeste; 1.059 no Sul; 852 no Nordeste; 278 na região Centro-Oeste; e 175 no Norte. O crescimento é verificado em todas as regiões, dado que certamente se beneficiou de uma conjuntura favorável gerada pela criação do Estatuto dos Museus e do IBRAM, em 2009, e de investimentos gerados pelo Programa Nacional de Incentivo à Cultura (Pronac). A liderança paulista foi ampliada entre 2010 e 2022, ainda que em crescimento mínimo, passando de 17,09% do total nacional para 17,44%, enquanto o crescimento total de museus no país foi para 29% em 12 anos.
Os números indicam, portanto, que os museus brasileiros estão em franca expansão, o que sinaliza sua crescente centralidade no âmbito das políticas públicas da esfera patrimonial e do apoio de patrocinadores privados. Permanece, para essas instituições museológicas, o desafio de equilibrar paulatinamente as desigualdades regionais de sua localização, a disputa por investimentos e patrocínios e, especialmente, o embate perante uma trajetória que ainda é marcada por outras hierarquias, advindas de sua gênese eurocêntrica e de seu compromisso tradicional com narrativas excludentes. São essas dimensões que se constituem cada vez mais como objeto da autocrítica institucional e de diferentes campos disciplinares que têm os museus como tema e desafio de reflexão.
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Este dossiê reúne sete artigos que tratam de alguns dos mais importantes museus brasileiros, abordando sua história, suas políticas de aquisições, a apropriação de suas coleções por exposições e a pesquisa curatorial que desenvolvem. Eles também registram iniciativas museais cujos projetos e realizações fazem emergir reflexões significativas acerca dos desafios passados e atuais da sociedade brasileira e como os museus e seus acervos se integraram a essas dimensões. Além de compormos uma vitrine expressiva do campo, um outro objetivo nos serviu de motor. Por ocasião do bicentenário da independência do Brasil, buscamos compor um painel sobre o papel das instituições museais na configuração de práticas memoriais que construíram, constroem, e vêm sustentando muitas das narrativas centrais sobre a sociedade brasileira ao longo dos últimos 200 anos.
Em 2018, quatro anos antes das comemorações do bicentenário da independência, o Museu Nacional, o mais antigo do país, festejava seus 200 anos de vida, sabendo que seria peça-chave nas comemorações nacionais que se anunciavam no horizonte. O incêndio que o devastou abriu, mais do que nunca, a ferida das dificuldades financeiras e estruturais das instituições museais brasileiras. Luiz Fernando Dias Duarte, antropólogo, docente do Museu e seu diretor entre 1998 e 2001 nos aproxima da longa e complexa história dessa instituição criada em 1818. Seu texto percorre as diferentes coleções que a alimentaram e os projetos expositivos ali estabelecidos e revistos em diferentes momentos da história republicana do país, até a ruptura imposta pelo fogo. Dias Duarte nos introduz no amplo e profundo processo de reflexão institucional, iniciado paralelamente à urgência da reconstrução do prédio, de seus espaços de trabalho e exposição e da restruturação geral do Museu. O futuro da instituição passa então por um programa para novas instalações (restauradas ou construídas) e pela recomposição das coleções (84% delas foram levadas pelas chamas) a partir das necessidades ditadas pela pesquisa e pelos novos projetos expositivos. Tudo isso levando em conta as evoluções sociais e culturais em curso a nível global, nacional e também local. O Museu Nacional sempre foi uma referência para a construção da identidade nacional brasileira. Assim, ao renascer, literalmente, das cinzas, a instituição enfrenta o desafio de retomar o fio de sua história curatorial complexa sob perspectivas renovadas.
Também fundado no século XIX, o Museu Goeldi compartilha com o Museu Nacional, além de sua longevidade, um perfil de museu de história natural, de arqueologia e de etnologia. Diferencia-se deste, porém, por estar distante do coração do Império e da República — em Belém e às portas da Amazônia —, tendo gerado uma nova centralidade científica e museal, fato nada desprezível, tendo em vista as imensas distâncias e desigualdades regionais brasileiras. Por outro lado, esse pertencimento ao espaço amazônico implica numa relação singular com as populações indígenas. O artigo proposto por Nelson Sanjad, Claudia LópezGarcés, Matheus Coelho, Roberto Araújo Santos e Pascale de Robert examina, assim, na longa duração, as relações do Museu com os Mebêngôkre (mais conhecidos como Kayapó), detendo-se em três momentos-chaves. No início do século XX, a primeira coleção de peças Mebêngôkre chegou ao museu; na época, missionários católicos haviam perdido subvenções governamentais e, a fim de resolverem a situação financeira de sua missão, fizeram com que os indígenas por eles aldeados (já então fora de seus espaços de vida originais) fabricassem peças que foram vendidas ao museu. Numa relação desigual, mas de caráter ambíguo, tanto os missionários quanto os cientistas garantiam, a seu modo, a sobrevivência física dos indígenas e a preservação de sua cultura material. Hoje, esse conjunto de peças constitui uma das maiores e mais importantes coleções do Museu. No final da década de 1930, outras duas coleções foram adquiridas de outro modo, sinalizando uma mudança na relação do Museu com os Mebêngôkre: um grupo de indígenas que visitou a instituição e ali foi acolhido produziu, no local, a pedido do então diretor, um conjunto de peças a partir de materiais não usuais, encontrados no entorno. Pouco tempo depois, um pesquisador do museu, em visita a uma missão, adquiriu outro conjunto de peças. Naqueles anos, tanto o diretor do Goeldi quando esse pesquisador se comportavam como aliados dos indígenas diante das missões religiosas e do Estado. Nos anos 1980-1990, projetos de pesquisa em Etnobiologia, desenvolvidos pelo Museu, assinalaram a emergência de uma sensibilidade socioambiental, acompanhada do reconhecimento do protagonismo dos indígenas na Amazônia. Os conhecimentos dos Mebêngôkre passaram a constituir, assim, a base de tais projetos. Dessa maneira, o ativismo das equipes do Goeldi se aliou a esse posicionamento científico nas relações já tecidas com os indígenas. Enfim, na atualidade, essas relações têm como horizonte a simetria: pesquisas colaborativas elegem questões que respondem às prioridades dos indígenas e ao estabelecimento de uma museologia participativa, incorporando curadorias realizadas pelos próprios Mebêngôkre e que valorizam, ao mesmo tempo, a qualidade científica e os saberes indígenas. Trata-se, assim, de uma experiência notável, com implicações não apenas curatoriais, mas políticas, sociais e ambientais de monta.
Apartando-se de uma visão panorâmica, Michele de Barcelos Agostinho se concentra, em seu artigo, em acervos do Museu Nacional relacionados ao tratamento dado pela instituição à escravidão e às populações negras. A autora se volta à Coleção Quintino Pacheco, cujos objetos foram tomados pela polícia do Rio de Janeiro durante a invasão da casa de seu proprietário, e também à trajetória da jangada Libertadora, símbolo forte do fim do cativeiro no Ceará, que precedeu a Abolição de 1888 em alguns anos. A primeira é composta por objetos de culto (idés, edans, abebés e espada) que foram parcial ou totalmente transformados pelo fogo em 2018. A jangada, por sua vez, desapareceu no século XX sem deixar rastros. Trata-se de itens adquiridos pelo Museu nos anos 1880, em plena luta pelo fim da escravidão. Agostinho nos mostra, por meio da história desses objetos no interior do Museu, como as tensões suscitadas por eles e seu significado político se transformaram com o passar do tempo. Da mesma forma, trata sobre a leitura feita pela instituição em seu espaço expositivo e nos registros que guardou de cada um deles, com seus deslocamentos entre as salas e vitrines e a denominação e descrição que receberam. No momento de sua aquisição, quando a escravidão caminhava para o fim, negros livres perceberam o significado da musealização e buscaram adentrar o espaço expositivo do Museu ou dialogar por escrito com seus responsáveis. Foi assim que Quintino Pacheco, proprietário expropriado do primeiro acervo, reivindicou, sem sucesso, sua restituição, numa iniciativa inédita e memorável. Mesmo assim, como lembra a autora, somente no século XXI as coleções africanas e afro-brasileiras do Museu receberam tratamento de maior destaque, respondendo a projetos de pesquisa e de curadoria que transformaram criticamente o olhar que a instituição lhes confere. Aline Montenegro Magalhães examina, por seu lado, a presença da história e dos acervos afro-brasileiros nas exposições permanentes do Museu Histórico Nacional (MHN), de 1980 a 2020. As quatro décadas escolhidas foram marcadas não apenas por uma ampla revisão historiográfica sobre as experiências sociais afrobrasileiras — impulsionadas pelas universidades e movimentos sociais no país —, mas também por esforços de revisão histórica e museológica e das políticas de aquisição do Museu, investindo em objetos referentes às populações afrodescendentes. O MHN foi beneficiado por dotações financeiras mais consistentes e melhorias em suas instalações, além de ter contado com parcerias que aproximaram especialistas universitários de suas equipes. Atualmente, contudo, enfrenta o contexto de redução drástica de gastos com educação e cultura, geral no país. A análise detalhada das sucessivas alterações expositivas permite constatar um impacto ainda insuficiente na escolha, apresentação e leitura de objetos que poderiam aumentar a visibilidade das populações afro-brasileiras na história do Brasil, contada pelo Museu. Magalhães afirma que o conjunto das intervenções observadas sobre a história das populações negras brasileiras é fundamentalmente representado, nas vitrines do MHN, pelo trabalho escravo ou pelos objetos de cunho religioso ou lúdico, estes acompanhados de uma leitura folclórica. O Museu resistiu, apesar de tudo, a perspectivas renovadas de leitura histórica, embora, no final do período, não obstante as limitações financeiras e as posturas conservadoras, os contatos criados pelas equipes do Museu com a sociedade civil permitiram experiências curatoriais compartilhadas promissoras, capazes de estimular a renovação metodológica das abordagens da instituição.
Já Nerian Teixeira de Macedo de Lima se refere a museus de arte e suas relações com os legados modernistas que se desdobraram a partir da Semana de Arte Moderna, que este ano completa seu centenário. A autora segue o fio das exposições de curta duração dedicadas à pintora Tarsila do Amaral, realizadas entre 2008 e 2019. O artigo examina e confronta, durante esse decênio, uma exposição internacional (inaugurada no The Art Institute of Chicago e concluída no Museum of Modern Art – MoMA) e duas nacionais (Pinacoteca do Estado de São Paulo e Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP). Lima pretende compreender se (e como) as leituras feitas no Brasil sobre a pintora se distinguem daquelas feitas pelos museus estadunidenses, além de avaliar a evolução do olhar das instituições sobre Tarsila. Assim, após um retorno sobre a carreira da artista e as exposições que antecederam o período selecionado, a autora examina os contextos expositivos das quatro mostras antes de se focalizar mais detidamente, de modo comparativo, na abordagem curatorial recebida pela obra A Negra, de 1923. Além de expressar, de modo singular, o projeto da primeira geração modernista, o quadro evoca questões raciais próprias à sociedade brasileira do período de sua elaboração, que impactam as reflexões hoje levadas a cabo pelos museus. Ainda que as exposições examinadas contassem com uma seleção semelhante de obras da artista, as narrativas propostas pela curadoria diferiram. A abordagem da exposição estadunidense enfatizou filiações europeias da artista, minimizando as questões colocadas localmente pelo modernismo. Não se colocou em questão a recepção tardia da pintora pelas instituições de seu país. No caso das duas exposições brasileiras, a leitura feita pela Pinacoteca do Estado se manteve próxima das análises clássicas dedicadas à pintora e ao modernismo num âmbito local, enquanto o MASP se distanciou tanto na seleção de obras, quanto nos textos que compuseram o catálogo da mostra, em que as questões raciais e sociais suscitadas por A Negra foram enfrentadas com ênfase.
Bruno Brulon e Lia Fernandes Peixinho nos levam para fora das grandes instituições museais, focalizando a experiência da criação do Museu das Remoções, na Vila Autódromo, uma comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro. A Vila fora atingida pelo processo de remoções, executado pela prefeitura da cidade, entre 2014 e 2016, como parte das transformações urbanas preparatórias aos Jogos Olímpicos. A iniciativa do Museu coube aos moradores e ex-moradores da comunidade (das 700 famílias que a compunham, 20 conseguiram permanecer), apoiados por uma rede de colaboradores externos que incluiu museólogos, arquitetos, cientistas sociais, além de outros ativistas ligados à cultura e a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. Trata-se de uma iniciativa memorial e de resistência, na qual os moradores recorreram a métodos experimentais para evitar o apagamento da violência envolvida nas remoções e registrando, justamente, suas perdas durante esse processo de destruição urbana. A musealização envolvida nesse caso registra e expõe os destroços e o vazio deixado no bairro após a remoção e a experiência vivida pelos moradores. Para o artigo aqui apresentado, Brulon e Peixinho focalizaram a coleção do fotógrafo amador Luiz Claudio da Silva, morador do bairro e curador de exposições. O caráter ao mesmo tempo político e experimental da iniciativa se materializou graças a essas imagens produzidas na esfera privada que, ao se tornarem públicas, ocuparam os espaços esvaziados após as remoções feitas pelos agentes do Estado. Nesse sentido, as mostras itinerantes retratam o espaço urbano desocupado e a violência usada para esvaziá-lo, (re)ocupando-o musealmente. Foram utilizados suportes improvisados, como barbantes e pregadores (“exposição de varal”), o verso de placas de rua, encontradas em meio aos detritos ou canos de água e quaisquer outros que facilitassem o deslocamento e exibição das imagens nas itinerâncias. As apresentações são também projetadas nas paredes da igreja local e fora da Vila Autódromo, ocupando diferentes espaços do Rio de Janeiro, transitando para outras cidades do país e para o exterior. As imagens são associadas aos depoimentos de moradores e retratam, ao mesmo tempo, as ações de resistência contra as remoções (barricadas) e as ruínas deixadas, além do próprio Museu, que integra essa iniciativa coletiva de patrimonialização e musealização de um espaço social em ruínas.
Iara Lis Schiavinatto e Carlos Lima Junior, por fim, tratam do Museu Paulista da USP (cuja sede na cidade de São Paulo é conhecida popularmente como Museu do Ipiranga), peça chave das comemorações do bicentenário da Independência. Inaugurado em 7 de setembro de 1895, sobretudo como um museu de história natural, mas também como marco histórico da independência, o Museu chegou ao fim do século XX com grandes modificações em seu foco curatorial. Fechado ao público desde 2013, reabriu suas portas no último 7 de setembro, completamente reconfigurado. A recente inauguração ocorreu depois de obras que transformaram tanto o edifício quanto o perfil de suas exposições. O artigo, que fecha o dossiê, percorre a história da instituição, começando pela longa gestão de Afonso d’Escragnolle Taunay (1917-1945), que foi convidado para preparar o Museu para as festividades do centenário da Independência, comemorado em 1922. Para tanto, retirou a ênfase da história natural, deslocando-a para o fortalecimento de um museu histórico. Sua concepção curatorial e historiográfica fortalecia a narrativa gloriosa da independência do país como um processo desencadeado na cidade de São Paulo, atrelado à história nacional dos paulistas, desde o povoamento de São Vicente e a expansão territorial gerada pelos bandeirantes. A construção narrativa vingou, tendo permanecido como encenação visual e como perspectiva histórica dominante durante várias décadas. Se o Museu foi incorporado à USP em 1963, foi somente no final dos anos 1980, sob a direção de Ulpiano Bezerra de Meneses, que suas equipes procederam a uma nova avaliação do acervo (e do edifício-monumento sede) segundo interpretações historiográficas renovadas. Em sua gestão, o Museu finalmente se tornou especializado exclusivamente em história, o que implicou numa restruturação geral dos partidos curatoriais, de suas linhas de pesquisa e do funcionamento da instituição enquanto museu universitário — entrelaçando de modo durável a pesquisa dos acervos às exposições, sob o foco da cultura material. Schiavinatto e Lima examinam os redirecionamentos do Museu, na gestão de Bezerra de Meneses, a partir da entrada de certos conjuntos de documentos e objetos em suas coleções e do tratamento que lhes foi reservado nas exposições que se seguiram — na contramão do projeto de Taunay. O texto termina com uma sequência dedicada ao “novo” Museu do Ipiranga, ainda fechado no momento de sua escrita, descrevendo o processo de restruturação dos espaços e das exposições da seda paulistana do Museu Paulista. Mais uma vez — e mais do que nunca —, o distanciamento crítico em relação à cena museal criada por Taunay no palácio do Ipiranga está em pauta. Se a restruturação abre novos caminhos ao Museu e a suas exposições, o desenho conceitual e político traçado durante a gestão de Ulpiano Menezes permanece fortemente ancorado no trabalho das equipes da instituição. O Grito do Ipiranga e a hegemonia paulista, de suas elites sertanistas e cafeicultoras, não dão mais o tom da narrativa histórica. Agora, múltipla, inclusiva e crítica reforça o papel do Museu na construção de novos parâmetros conceituais para uma revisão profunda das narrativas históricas e museais brasileiras.
Na ocasião do Bicentenário da Independência do Brasil, quisemos dar visibilidade para as inúmeras, complexas, ousadas e libertadoras narrativas que vêm sendo elaboradas pelos museus do país e pelos que se esforçam em estudá-los de maneira crítica. Trata-se de uma já longa trajetória marcada por violências, exclusões e atravessada pelas chamas mas, incontestavelmente, portadora de sua flama de inquietações e de construção de cidadanias ampliadas.
Notas
- Lopes (1997).
- Dias (1972).
- Abreu (1996).
- Santos (2006).
Referências
LIVROS, ARTIGOS E TESES
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da Metrópole. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Dimensões 1822. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.160-184.
INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Museus em números. Brasília, DF: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. v. 1.
LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
Organizadores
Paulo César Garcez Marins – Historiador, docente do Museu Paulista da USP, instituição em que chefia atualmente a Divisão de Acervo e Curadoria. Orientador no Programa de Pós-Graduação em Museologia da USP. Pesquisador do projeto temático “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Membro do Conselho Internacional de Museus (ICOM). E-mail: pcgm@usp.br https://orcid.org/0000-0001-8776-5708
Mônica Raisa Schpun – Pesquisadora do Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain (CRBC) da École des hautes études en sciences sociales (EHESS). Responsável pelo Grupo de trabalho “Migrations et espaces urbains” (CRBC- -EHESS). Docente em História das migrações internacionais (EHESS, Paris). Diretora editorial da revista Brésil(s). Sciences humaines et sociales. E-mail: moschpun@ehess.fr https://orcid.org/0000-0003-4807-9689
Referências desta apresentação
MARINS, Paulo César Garcez; SCHPUN, Mônica Raisa. Museus no Brasil: impasses do passado, desafios para o futuro. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 30, d1e51, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]