1808 / Revista de História / 2008

1808 em perspectiva

Na apresentação do primeiro número de seu periódico Correio Brasiliense, Hipólito José da Costa declarava uma das pretensões de sua tarefa: “feliz eu se posso transmitir a uma Nação longínqua e sossegada, na língua que lhe é mais natural e conhecida, os acontecimentos desta parte do mundo, que a confusa ambição dos homens vai levando ao estado da mais perfeita barbaridade”.1 A “nação longínqua e sossegada” a que se dirigia era a porção americana dos domínios portugueses, que deveria estar interessada no que ocorria em uma Europa – Costa escrevia de Londres – confusa, revirada de cabeça para baixo pelos acontecimentos de uma época prenhe de incertezas. A data de suas palavras: 01 de junho de 1808.

Como de costume, o diagnóstico histórico de Hipólito da Costa era muito acertado. Não à toa, preocupado com as coisas do Império Português, mas especialmente com aquelas relativas ao Brasil, sua terra natal, deveria doravante publicar em seu jornal, em grossas edições semestrais ininterruptas até dezembro de 1822, notícias, documentos e análises relativas a todas as partes de Europa e Brasil, mas também à América espanhola, Estados Unidos, Ásia, África… Para homens e mulheres, como ele, profundamente envolvidos na política, o que ocorria em 1808 não cabia em uma única região ou país. Todas as partes do mundo pareciam interessar.

Embora ao historiador não seja recomendável a reificação cronológica de um momento sem dúvida marcante na configuração de realidades históricas em larga escala territorial, tampouco convém ignorar que, na história da humanidade, o ano de 1808 parece ser um daqueles de concentração de acontecimentos e fenômenos especialmente relevantes. À época, tentar entender o que ocorria implicava um olhar diversificado e amplo sobre o mundo.

Duzentos anos depois, pode-se dizer o mesmo. Não se trata, porém, de tarefa fácil. O peso das tradições historiográficas nacionais, inventadas justamente ao longo daquele século XIX, ainda é forte, do que decorre que certos temas, problemas e contextos dificilmente escapam à limitação a posteriori a eles conferida pelos vícios de formação dos historiadores e / ou por seus comodismos acadêmicos. Felizmente, em 2008 parece haver fortes indícios de superação desse estado de coisas, ao menos no que toca ao estudo dos acontecimentos de 1808 que geralmente são ligados aos processos de independência da América ibérica e ao advento de novas formas políticas e sociais na Europa pós-Revolução Francesa. Tal superação não implica o abandono de estudos especializados, monográficos e específicos; ao contrário, implica considerar seus resultados à luz de investigações semelhantes, cotejando-as umas com as outras, e articulando-as a sínteses globais.

Um aspecto particularmente relevante desse movimento está na criação das condições para definitivo abandono da perspectiva singularista da trajetória histórica luso-americana das primeiras décadas do século XIX, e que durante muito tempo insistiu em um olhar que acabou por isolar e “retirar” o Brasil dos demais contextos históricos coevos, americano, ocidental, mundial. E é aqui que, de modo oportuno, a Revista de História atende a uma de suas vocações tradicionais: a de divulgar resultados inovadores de pesquisas acadêmicas em uma perspectiva cosmopolita, ampla e abrangente, sem abdicar de sua condição de órgão acadêmico brasileiro.

Neste número 159, a Revista de História apresenta um conjunto de artigos que, de variadas formas, contemplam acontecimentos do ano de 1808. Elaborados estritamente de acordo com os critérios de excelência exigidos pela revista, formam um conjunto plenamente afinado com a necessidade de se tomar tais acontecimentos em muitas faces: espaços e tempos específicos, por vezes divergentes, mas também de muitos modos convergentes, conduzindo a leitura dos artigos aqui reunidos, naturalmente, ao estabelecimento de diálogos transversais entre eles.

Nessa perspectiva, é possível que o ano de 1808 surja de modo algo distinto do que o percebera, duzentos anos atrás, Hipólito da Costa: uma Europa um pouco menos confusa, e uma América bem menos sossegada.

Nota

1.Correio Brasiliense ou Armazém Literário, v. I, n.1. Londres, 06 / 1808.

João Paulo G. Pimenta – Departamento de História – FFLCH / USP


PIMENTA, João Paulo G. Apresentação [1808 em perspectiva]. Revista de História, São Paulo, n. 159, 2008. Acessar publicação original [DR]

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